Em 2021, o soteropolitano Hugo Porto apresenta seu segundo livro, “Amor, e eu com isso?”, em que reúne alguns de seus poemas inéditos e outros publicados durante a pandemia em seu Instagram, com mensagens que sugerem exercícios de racionalização e autoconhecimento, exploram a afetividade e a individualidade, propondo perspectivas objetivas de compreensão da vida e das realidades possíveis.

Em “Amor, e eu com isso?”,  Porto poetiza para racionalizar. O lançamento ganha ainda uma edição especial com tiragem inicial de 330 exemplares, dos quais apenas 210 estarão disponíveis para venda, em três opções diferentes de capas duras possíveis (compre aqui). “Mais de uma capa, vários prefácios. Eu não fiz um livro para mim. Embora, com certeza, o tenha feito através de mim”, conta o poeta.

Tem-se, aqui, a metáfora de valorização do leitor, através do empoderamento do seu direito de escolha da aparência do livro, como melhor lhe convier, em redução das escolhas ditadas pelo autor. “Eu não seria bobo de perder a oportunidade de crescer. Crescer me lendo através de outros olhos. Crescer lendo outras visões, provenientes destes outros olhos. Crescer consciente de que minha escrita morre em mim”, conta, enfatizando com o desejo de que “cada leitor construirá a sua visão” sobre o trabalho.

A pluralidade é reforçada nos prefácios: sete, de personalidades distintas, mas com algo em comum. Na obra estão homenageados e representados com suas respectivas hashtags, através dos “vazios aleatórios” (páginas em branco) que, no entanto, são parte da narrativa da obra. “Um livro aberto.”

Hugo pondera o motivo de não escrever seus poemas no gênero neutro: “Pensar no gênero masculino como coletivo, em detrimento e diminuição do feminino, ou do que exista por entre este espectro de subjetividade, que vai de um polo ao outro, é manter sustentada a opressão que diminui o que não seja masculino. O que proponho é que pensemos na ressignificação das referências coletivas como sendo masculinas”.

No entanto, o autor considera que toda mudança social precisa ser tomada coletivamente: “Nós não estamos preparados, ainda e mesmo eu, pra isso. O que poderia ser um desserviço à obra. Tanto porque eu poderia errar e acabar deixando o texto uma bagunça, ou porque poderia haver ruído na comunicação”.

O livro foi projetado, desde sua construção ampla da narrativa à curadoria dos poemas e disposição dos capítulos ou projeto gráfico, de forma conectada à contemporaneidade, à internet. A internet é o meio em que se desenvolvem as experiências sociais e literárias do autor, inclusive, a ideia do próprio livro – uma existência subjetiva, tal como o texto.

As três versões da edição limitada de "Amor, e eu com isso?" (Foto: Divulgação)
As três versões da edição limitada de “Amor, e eu com isso?” (Foto: Divulgação)

H: Como você decidiu que se tornaria escritor?

HP: Foi um processo um pouco confuso. A escrita vem em minha mente. Normalmente a minha mente produtiva é mais rápida que a racional. Então, quando eu entendo o que estou fazendo (escrevendo) é porque já estou no caminho, ou revisando. Acontece muito.

Meu avô era escritor e poeta. Ele foi meu grande incentivador em termos de publicação. Negou ajuda para achar uma editora, mas me incentivou e prontamente patrocinou a minha primeira obra, o “Bóris, meu amigo gay”. Ele, todavia, foi o primeiro a me desaconselhar entender a escrita como sendo uma profissão, sempre aceitando o fato da baixíssima valorização dos autores em nosso país. É um tanto triste, pensando que ele amou tanto, produzindo até o fim dos seus dias de capacidade motora.

Então, depois do Bóris eu acabei brigando comigo, porque achei que poderia ter sido melhor em vários aspectos. Não tinha entendido o processo de aprendizagem da vida, afinal, foi Bóris quem me trouxe aqui. Como eu digo num poema, “vitória, a sua derrota”. Nossa vida, em verdade, ainda que “vencedora”, é feita e alicerçada na derrota, nos erros anteriores e construtores dos acertos.

No percurso, aprendi que o amor não era apenas minha essência, mas a chave mestra das conexões humanas

Depois de sete anos exatos, resolvi fazer as pazes comigo. Eu só senti, depois entendi. Entendi que a melhor forma de me concretizar no mundo, e transmitir o amor estruturado que sinto era justamente esta. No percurso, aprendi que o amor não era apenas minha essência, mas a chave mestra das conexões humanas. Assim, compreendi, depois de pronto, o que era que havia ali – havia em mim.

H: De onde vem o título do seu livro?

HP: O título inicial era “A poesia toca, mas quem age sou eu”. E é justamente neste contexto da resposta anterior que eu me aprendi e entendi: todos somos amor. Mas, amor não é só de sentir. E eu? E eu com isso? E você? E nós? Quantos sujeitos de amor não existem, ou podem existir? Como que nós podemos nos encaixar de maneira tão simbiótica, em relações afetivas (diversas), sem ter tido a oportunidade de poder, antes, nos encontrarmos? Para amar é preciso racionar. Do contrário, é mero fogo, é a vontade que dá. Daí eu entendi. Daí eu escrevi…

H: ‘Amor e eu com isso?’ foi escrito em 30 dias. Você pode nos contar sobre o processo criativo da obra?

HP: Eu sou executivo de startup, um gestor. Sou extremamente subjetivo em mim, sou hiperativo e faço acompanhamento psiquiátrico há sete anos também. Por isto, tive que aprender a ser objetivo. Contínuo. Meu processo é, creio (porque não conheço outros) muito autoral e singular. Para tudo eu tenho planilha de programação, roteiro, diretrizes, linha argumentativa previamente desenvolvida. Minha cabeça sai corrida. Daí eu vou organizando a bagunça das saídas. Nisto, fui costurando os poemas, que já estavam prontos. Aqui eu fui me encontrando. Encontrando quantas ligações e uniões existiam entre as minhas produções. Aqui eu me vi e pude me rever, retomar o que senti, retroagindo na sequência temporal, e me aprender. É tudo fruto de mim, logo, há inúmeras formas possíveis de serem conectados os poemas – entendi. Mas todos perfazem um único caminho mental, o do meu existir. Meus poemas são o extrato do que há em mim.

No mais, foi sentar, e descarregar. Ligar o som, eu só escrevo ouvindo house music (e edito com deep house, pois me acalma). Cada virada da música, ou acelerada, as palavras saem engatadas. Eu me arrepio e saio desenfreado. Eu saio sentindo enquanto digito tudo que me vem. Tudo é muito amado, pensado. Sentido, sobretudo. Não tenho muita dificuldade, só sinto. E eu vou… Inclusive, tenho um poema intitulado “Palavras”.

Aproveito para finalizar a resposta com poesia e uma abertura à compreensão subjetividade do leitor, seguindo o referido poema:

Palavras

Palavras.
Taí uma coisa que eu sou bom: com palavras.
Deus me abençoou e mandou, com palavras.
Porque as tiro do meu coração; ou do tesão…

Palavras: quem quer, sabe usá-las como armas.
Basta sentir e falar suas palavras.
Mas somente as que venham com imensidão,
Com vastidão!

Palavras.
Se não sentir, de que adiantam suas lavras?
Pobre dizer, sem deter suas marcas.
Pobre dimensão de um coração, tão ao chão…

…sem:
Palavras…

H: O ‘amor’ parece um afeto particularmente complexo agora na era do Tinder/Grindr e outros aplicativos de relacionamento. Como você enxerga o amor atualmente?

HP: Tudo é particularmente complexo. Nós sempre fomos complexos, inclusive na tentativa falida de entender ou enquadrar os conceitos. O ser humano não é fácil, não foi um dia. As pessoas buscam respostas prontas e fáceis, em detrimento da necessidade de parar e refletir. Todas as ferramentas de socialização são apenas o que são: utilidades. Nada mais do que isso, não.

O que eu enxergo é isso. É que precisamos, todos, nos pensar. Nos repensar. Sempre. Principalmente em relações afetivas, tão ou mais diversas quantos os indivíduos, pois elas podem ser múltiplas inclusive. Poliamor, não é mesmo? Cada um deve poder parar pra se entender e pensar o que lhe faz bem.

Não há leituras certas, erradas, novas, contemporâneas, antigas. Toda leitura é única e subjetiva, de um sujeito, num dado tempo. A memória, tanto quanto a identidade, por mais que não se saiba conscientemente, é fluida. Tal como a vida, e linda! Ninguém que existe hoje existiu na época das caravelas, dos papiros, enfim. Eu existo no meu tempo, assim como você. Bobo é quem perde tempo com as respostas, indubitáveis, para perguntas de que não se precisa. E quem as sabe? Quem sabe quais são necessárias? Então…

Hugo Porto: "Ninguém está na minha cabeça pra entender o que eu acho normal. A língua é limitada" (Foto: Divulgação)
Hugo Porto: “Ninguém está na minha cabeça pra entender o que eu acho normal. A língua é limitada” (Foto: Divulgação)

H: Existe uma grande discussão agora acerca de linguagem neutra e as epistemologias masculinas. O que você pensa sobre isso?

HP: Eu penso, e trago a reflexão no livro, embora não dê continuidade à escrita em gênero neutro (ainda), que precisamos repensar tudo. A língua é ferramenta, é utilidade. A dinâmica de nominação estabelece uma relação semântica entre sujeitos, objetos, verbos, predicados, enfim, uma infinidade de termos. E o que são esses termos? Representação, ou criação, da vida. Da realidade. A realidade não existe. Eu entendo uma realidade. Você, outra. Alguém, mais uma, possivelmente assemelhada, mas nunca igual. Ninguém está na minha cabeça pra entender o que eu acho normal. A língua é limitada.

Então, se não ressignificarmos as relações de atribuição de sentido e valor, a epistemologia posta as manterá como são: masculinas, patriarcais, opressoras, dominadoras. Eu acho que, quem se respeita e quer ser respeitado, há de ter a honestidade de querer respeitar o outro. Mas, quem sou eu pra impor. Apenas provoco a/e/o leitora (ou quem for). Caso é: se eu continuasse, poderia haver fricção na escrita e na comunicação. Não é isso que eu quero, agora.

H: O que você gostaria de alcançar com esse livro?

HP: Eu gostaria de alcançar a provocação máxima possível, em termos de pessoas e pensamentos. Quem se conhece, quem entende as dinâmicas sociais, há de se refletir e ajudar a cocriar uma coletividade mais diversa, honesta, humana. E, principalmente, entender que todos estes signos, estes termos, têm uma significação para mim. Que busquemos as nossas, que acreditemos em nós. Que não nos deixemos ser reféns de outras significações, mas tentemos não deixar de olhar (sem se perder) para ninguém. Tentemos não dominar, na medida da possibilidade do nosso refletir. Para agir é melhor que haja tempo pra pensar. Amor é para mim, mas é para você também. Cada um com seu cada-quem.

H: O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre você que elas ainda não sabem?

HP: Não sei. Eu pareço seguro. Muitas vezes eu sou, mais porque eu saio vivendo o que sinto, do que pela certeza que possa aparentar passar, talvez? Eu sou isso. Como todo mundo. Tudo mundo não se sente, de alguma forma, seguro. Mas está tudo bem. Eu sigo. Eu tenho a consciência e o compromisso de parar e pensar, me pensar, me repensar. Entender que nada é fixo, nem poderá. Entender que eu vou pensar, mas é para tomar a melhor decisão possível (dados os elementos fáticos que eu tenha em mente para raciocinar, naquele momento, talvez em outro não). Mas é isso. Não é, não seria, nem eu busco achar que é o correto, imutável, perfeito, estável. Eu sou só mais uma pessoa tentando viver quem se é, enquanto (continuadamente) se descobre quem é que seja. Como se é. Como se permitir. Como não se mentir. Como não se omitir. Tudo o que somos e seremos passa pelo nosso eu, o ser. Mas, isso não significa que sejamos fim. Nem que deveríamos ser nada assim.

1ª Antologia Trans de poetas trans e não-binários reúne 30 autores  (leia aqui)
1ª Antologia Trans de poetas trans e não-binários reúne 30 autores (leia aqui)