Numa esquina da Zona Portuária do Rio, berço da escravidão e herança africana do Brasil, uma aglomeração de corpos negros e LGBT+ destaca-se nas ruas. Divas do pop como Beyoncé e Rihanna se misturam ao hip hop e ao funk, embalando a estética de corpos negros projetados nos prédios ao redor. É mais uma edição da Batekoo, dessa vez em clima de carnaval, o Carnakoo.
“É importante ressignificar a ideia do lugar e trazer novas narrativas e outras lembranças para o espaço”, destaca Maurício Sacramento, um dos fundadores e produtor da festa. “Uma aglomeração de pessoas negras se divertindo é algo muito raro. E em um lugar desses torna tudo ainda mais importante.”
A Batekoo é uma festa acessível, chamativa e democrática, dedicada a pessoas negras e LGBTs+ que tomou conta da cena de diversas cidades do Brasil e vem conquistando outros espaços. O nome tem como referência os ritmos para “bater o cu no chão”, de acordo com os fundadores, e foi pensando como um espaço seguro para essa população, tornando-se um marco da libertação e representação desses jovens.
Além do público alvo, o que difere a festa é sua estética musical, já que ela toca apenas ritmos negros, historicamente classificados como inferiores ou reproduzidos apenas em guetos. Especialmente o funk, que foi e é fortemente exposto à criminalização, especialmente após a prisão do DJ Rennan da Penha, que hospeda a maior e mais popular festa do gênero, o Baile da Gaiola, no Rio.
Por que ele acabou na cadeia? Porque é acusado de associação com o tráfico. Ao mesmo tempo, há outras muitas festas de clubes fechados na Zona Sul, onde as drogas têm garantia de consumo e comercialização. Incidentes de criminalização do funk como esse tornam as festas alternativas (como a Batekoo) ainda mais importantes, apesar de não limitarem seu som, que passa por hip-hop, rap, funk, R&B, trap, twerk, kuduro, dancehall, r&b, pop e muits outros.
Para o jovem negro e hétero Abner Braga Ramos (23), que participa pela primeira vez da Batekoo, ela tem um papel importante no empoderamento negro e LGBT por ser um espaço dedicado a essas pessoas: “É onde você sabe que pode ir sem nenhum tipo de receio ou medo. Como a galera que está aqui é parecida contigo e geralmente tem gostos parecidos, tudo flui naturalmente”, comenta, enquanto curte a festa na rua.
O sentimento de segurança é compartilhado por outro frequentador, o atleta negro e gay Jonathan Guilherme (26), que frequenta o espaço há um ano e brinca ao declarar a festa como “o melhor bloco do carnaval carioca”. Ele destaca: “Só o fato de ter pessoas da minha cor já faz com que esse espaço seja diferente de outros”.
“A Batekoo começou como uma tentativa despretensiosa de fazer uma festa que trouxesse as referências negras e o acolhimento ao público LGBT negro, às mulheres negras e às minorias em geral”, conta Maurício. “Depois da primeira edição, percebemos a sua potência. Não era um plano ela ser o que é hoje. Percebemos que ela não era uma necessidade que só eu e meus amigos sentiam falta, mas sim um espaço que a juventude negra precisava.”
Batekoo, de Salvador para o Brasil
A Batekoo nasceu em Salvador e foi criada pelos produtores e DJs Maurício Sacramento e Wesley Miranda, em dezembro de 2014. A criação da festa não poderia ser em uma outra cidade, já que a capital baiana é o lugar com maior número de africanos fora da África no mundo todo, além da capital com maior população negra do país, que representa 80% de seus moradores, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estática (IBGE) de 2010.
“Salvador é uma cidade muito racista, onde a desigualdade social ainda é presente e pessoas negras, em sua maior parte, ocupam as classes baixas”. Segundo Sacramento, o negro era mantido fora do circuito cultural da cidade, voltado às pessoas brancas: “Antes da Batekoo, eu frequentava a cena soteropolitana e os espaços eram brancos e elitistas, com histórias de racismo e preterimento da cultura negra”, afirma.
A festa nasceu então como alternativa e proposta de mudança desse cenário excludente e paradoxal da capital baiana. “Sua proposta é contar a história de uma outra narrativa, de outro olhar, que seria o negro. Nosso foco é a população negra, e o público LGBT+ vem dentro desse recorte porque sabemos que ser LGBT+ negro é uma identidade que te deixa em posição inferior e vulnerável do que ser só negro”, destaca Sacramento.
O começo da festa se deu meio que pelo acaso, por meio de uma despedida de Miranda, que estava de mudança para São Paulo. Ele convidou Sacramento para ajuda-lo na produção da festa, já com vontade de criar um projeto para a música negra alternativa. O sucesso dessa primeira edição foi tanto que a festa não parou desde então.
Além de ter sua equipe toda composta por pessoas negras, dos organizadores aos atendentes, uma das preocupações dos fundadores da Batekoo era criar um espaço acessível financeiramente. Desde sua primeira edição, a entrada da festa custa R$ 10, quando feita em lugares fechados, ou é gratuita, quando na rua.
Depois de sete meses em Salvador, a Batekoo começou a se expandir para outras cidades. Além da Bahia, hoje ela tem edições mensais no Rio, São Paulo, Fortaleza, Recife e Belo Horizonte, com um produtor responsável para cada cidade. No último ano, eles estrearam um trio elétrico no carnaval paulista, com cerca de 40 mil pessoas, fora os dois anos de edições temáticas no carnaval carioca.
Sacramento destaca que cada cidade tem suas características, fazendo com que cada edição seja particular em cada território: “As cidades têm uma cultura marginal que dita muita coisa, como comportamento, estilo e música”, observa, destacando também como 70% do público da Batekoo é formado por mulheres negras. “O que mostra como é impossível ignorar a influência da festa para o movimento negro, e não só o LGBT negro.”
Apesar do sucesso, ele afirma que a equipe ainda esbarra em algumas dificuldades: “Sem dúvida, nossa principal barreira ainda é o poder aquisitivo e as questões financeiras. Como somos uma frente independente, todos os projetos que realizamos é com nosso dinheiro”.
Festa- manifesto: pertencimento e empoderamento negro e LGBT+
A dimensão e influência da Batekoo já ultrapassou a cena noturna e hoje se firma como um manifesto e um movimento de empoderamento e libertação da juventude negra e LGBT brasileira. E busca promover a representação de jovens negros periféricos no cenário cultural a partir de um movimento livre de preconceitos, embalado por ritmos pretos.
“[O movimento] foi se construindo de forma muito coletiva, por causa do discurso e da bandeira de liberdade e respeito que a gente levanta. Porque trabalhamos com a cultura negra e entendemos a cultura marginalizada das periferias do mundo como cultura também”, explica Sacramento.
Thaís Pio (21), jovem negra e bissexual que frequenta a festa, explica como se sente representada em suas edições: “O espaço é importante pois me reconheço nele, nas pessoas que frequentam e na sua própria ideia que, na prática, é a celebração da beleza, da afetividade, da cultura e do amor desses corpos negros”.
Ela destaca que, no país onde a cada 23 minutos morre um jovem negro, a juventude preta também tem todo direito de se divertir, celebrar, amar e sorrir: “Nossa alegria também é revolucionária!”. Já a DJ carioca Gláucia Tavares, a mais nova integrante do coletivo Batekoo, comemora a experiência de tocar e fazer parte desse projeto: “É um espaço de pertencimento e lugar para ser quem você é, sem medo de julgamentos”.
Tavares toca há dois anos na festa, e já participou de edições no Rio, São Paulo e Salvador. Este ano, ela foi convidada por Sacramento para integrar o coletivo e conta que, na Batekoo, foi a primeira vez que fez um set voltado só para o público negro e com música preta. “A maior diferença para as outras festas é essa noção de que estarei tocando para pessoas iguais a mim e conectadas com a nossa cultura. Eu me sinto em casa”, comenta.
Mudanças na cena cultural e queer
Para Sacramento, a criação da Batekoo impulsionou o nascimento e expansão de festas negras e da cultura negra, principalmente levando em conta a cena artística em que artistas pretxs têm sido mais valorizadxs. “As pessoas entenderam que há outras formas de negócio e de trabalho, e que não podem mais nos deixar à margem.”
Hoje, a Batekoo tornou-se uma empresa negra que fomenta cultura e entretenimento para juventude negra e LGBT. Desde então, o coletivo e toda a equipe têm buscado se profissionalizar para aperfeiçoar o trabalho: “Não tínhamos intenção de ser quem somos hoje, mas abraçamos o caminho que conseguimos traçar”.
Hoje, a Batekoo já realizou parceria com a Nike, foi tema de um documentário da Red Bull TV e uma parte da produção paulista da festa foi convidada para assinar a coreografia de “Farofei”, da Karol Conka. Além de planejar para este ano sua expansão em outras cidades, a Batekoo também prepara seu primeiro festival, com apoio da Natura Musical, e voltado à cultura negra, LGBT+ e periférica.
Há também um portal dedicado à cultura, moda e comportamento no futuro próximo, , além da primeira edição gringa da festa, no Festival Afropunk NY 2019, onde serão os únicos brasileiros do lineup. Sacramento comemora o sucesso e não dá sinal de desacelerar: “A ideia é estender a Batekoo como uma plataforma múltipla, na qual conseguimos trabalhar com diversas vertentes da cultura negra centralizando a nossa marca”.
Este texto faz parte de uma parceria entre a Revista Híbrida e a SPEX. A SPEX tem sido a a principal fonte para jornalismo de ponta sobre cultura pop na Alemanha, desde 1980. Ela contextualiza música, literatura, cinema, artes e tudo nesse meio, com uma visão crítica sobre acontecimentos políticos e sociais.