Em setembro de 2018, o festival Brésil en Mouvements, organizado pela associação Autres Brésils, levou à Paris o documentário “Bixa Travesty”. Ali tive o meu primeiro contato com o filme, em cartaz nos cinemas brasileiros desde o último dia 21, e terceiro com a pessoa-personagem Linn da Quebrada. Foi como se eu tivesse conhecido-a todinha. Linn, Jup do Bairro e tanto mais que as permeiam. Passei o filme inteiro arrepiada e saí da sala de cinema em êxtase. Eu precisava daquilo.
Era o mês antes das eleições no Brasil, eu estava recém-chegada de volta em Paris, carregando em mim todo o medo do mundo, a saudade de casa e tendo que escolher minha temática de pesquisa para o Mestrado. Aquele filme foi uma luz – ele me trouxe política, resistência, corpo, identidade, gênero, sexualidade, simplesmente tudo sobre o que eu queria falar. Com “Bixa Travesty”, encontrei inspiração e força para falar de cinema brasileiro, luta, política e, como matéria-prima de tudo isso, o corpo.
“Eu posso ouvir suas respirações ofegantes à medida que nos aproximamos, posso ver suas pernas tremendo quando eles se dão conta de que estamos nos aproximando cada vez mais desses espaços. Virou insustentável fingir que não existimos”
– Linn da Quebrada, na première de “Bixa Travesty”, em Paris (maio de 2019)
A força motriz de “Bixa Travesty” é o corpo de Linn da Quebrada. Para além das fronteiras que existem também entre a realidade e a ficção, o próprio corpo de Linn está na fronteira. Nem homem, nem mulher, mas sim “terrorista de gênero”, ela ultrapassa os limites e as imposições de gênero. Ela descreve o filme como “um documentário com criações e verdades”.
O próprio título, “Bixa Travesty”, é o conceito criado pela artista como identidade. Essa Bixa Travesty representa a invenção de um novo feminino e formas de feminilidade e de masculinidade. Assim como o filme, ela também é uma realidade plena de verdades e criações e faz com que nós nos interroguemos sobre os territórios que nossos corpos ocupam e como eles mesmo são ocupados. Invadidos por regras, ordens, disciplinas e fronteiras impostas por origens tantas vezes desconhecidas.
O corpo político é, então, o que ultrapassa tais fronteiras e derruba barreiras, transformando-se em território que já não quer mais ser ocupado, mas quer ocupar. É o corpo que (r)existe. A sua noção como território a ser explorado concretiza a experiência como um espaço tangível, o que fica ainda mais claro pelas últimas palavras ditas por Linn no filme, quando afirma que continuará em obras.
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Ter o corpo em obras contínuas torna-o um espaço físico, concreto, mas nunca estático. Ao contrário, ele está em constante mutação e transformação. “Eu tento usar meu corpo como minha própria ação política, criar sobre a minha própria existência, fazer da minha estética, da minha vida e das minhas relações, obras de arte” , declarou a artista na première do filme em Paris, em maio deste ano.
Linn vai além das discussões sobre o gênero. Se a origem da palavra política vem de tudo o que diz respeito à vida pública e está ligado a noções de cidadania, poder e comunidade. Então, pensar o corpo como político e, além disso, como ação política, é refletir sobre suas possibilidades a partir do momento em que ele ocupa um espaço público.
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Sua posição está totalmente ligada ao que ela diz sobre a ocupação dos espaços que não são destinados a corpos como o seu, aqueles historicamente privados de agir a partir de sua liberdade individual. Assim, o que é colocado em pauta não é apenas o gênero, são corpos e novas possibilidades de vida. Uma disputa de espaço, poder e conquista.
No país que tristemente lidera o ranking de assassinatos da população LGBTQI+, o discurso, a música e a performance de Linn reinventam as noções de arma. O corpo é arma de guerra. O seu potencial destrutivo serve principalmente para matar todas as normas em vigor que já são destrutivas por si só. Ao fazer de seu corpo uma “experiência estética”, na qual tudo se torna possível, inclusive – e sobretudo – as performances de gênero, ela mata a tradição dominante: a masculinidade e a virilidade, elas próprias violentas e perigosas.
A bixa preta de Linn vira bixa preTRÁ, cantada como um tiro, que tanto pode vir de quem historicamente mata essa população, como pode vir da própria população que busca destruir a destruição em vigor. Este corpo-arma é capaz de criar e recriar novas possibilidades de virilidades não-violentas, de performances e experiências corporais. É preciso destruir para (re)criar. Ou, nas palavras da própria Linn, “toda criação envolve uma destruição”.
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Isso é permeado por outra questão fundamental: o afeto. Sua importância traz um tom diferente do que costumamos ver em histórias LGBTQI+ no audiovisual. Em “Bixa Travesty”, o drama e o sofrimento vividos por essa população dão lugar a um retrato positivo do corpo transgênero, tão frequentemente patologizado. O afeto está ligado ao amor, que também tem sua dimensão política, considerado assim por Linn quando ela declara que é político se amar e ser feliz numa sociedade que consegue dificultar até o acesso de populações marginalizadas ao amor.
O afeto é discutido e mostrado de diversas formas, como na cena incrível em que ela e Jup conversam sobre o corpo travesti em uma sauna; no lindo momento em que ela toma banho com sua mãe; em uma cena silenciosa de puro amor; ou na maneira afetuosa em que Linn lida com o próprio corpo frágil, nas cenas de arquivo e em suas falas sobre o período em que teve câncer.
Foi a partir da figura provocadora e subversiva de Linn da Quebrada e de seu discurso sobre experiências corporais, performatividades e existência que percebi de maneira ainda mais potente como o cinema pode expressar artisticamente as angústias e lutas de uma época e de comunidades. Partindo de seus questionamentos sobre nossos próprios corpos, aprofundei uma reflexão que reside em mim há muito tempo, a do corpo como um espaço político e matéria-prima da luta.
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“Bixa Travesty” traz uma potência e uma esperança necessárias diante da enorme onda conservadora que vivemos atualmente, repleta de discursos de ódio contra certos tipos de corpos e existências. Ele faz parte de tudo o que vem contra essa realidade perversa e da ascensão de movimentos sociais que partem, acima de tudo, de um grito: nós estamos aqui. Sempre estivemos. Nós existimos. É tapa na cara merecido, é abraço bem dado. É berro do fundo da garganta, é afeto e cafuné. Eu amo tudo nesse filme.
Abaixo, leia a entrevista com Linn da Quebrada para a capa da nossa primeira edição, “Levanta e Luta”: