Escolhido para abrir a programação do 27º Festival Mix Brasil, o francês “Retrato de uma jovem em chamas” (“Portrait de la jeune fille en feu”) não é seu típico filme de romance lésbico. Ambientado na França do século XVIII, o longa escrito e dirigido por Céline Sciamma já indica desde a primeira cena um dos seus principais objetivos: uma aula sobre o olhar feminino.

O filme começa com Marianne (Noémie Merlant), pintora renomada que, durante uma de suas aulas, é confrontada pelo retrato que dá nome ao filme e, a partir daí, relembra sua história com Héloïse (Adèle Haenel). A história de amor entre as duas começa quando a artista é convidada por uma Condessa (Valeria Golino) a ir até uma ilha no litoral norte da França para fazer um retrato de sua filha, para que o quadro sirva como um “aperitivo” do que será entregue ao futuro marido da moça.

Adèle Haenel e Noémie Merlant em "Retrato de uma jovem em chamas"
Adèle Haenel e Noémie Merlant em “Retrato de uma jovem em chamas”

Héloïse não conhece seu pretendente italiano e muito menos está feliz com a ideia de que seu destino será entregue a um homem que nunca viu antes, sem que ela possa fazer nada a respeito. Retirada do convento onde se encontrava após a morte da irmã, ela se recusa a posar para o retrato, última moeda na negociação que a Condessa tem travado pelo seu destino. A missão de Marianne é pintá-la sem que a jovem saiba, fingindo ser apenas uma dama de companhia contratada pela matriarca e guardando na memória os traços e trejeitos de sua modelo.

É na diferença entre o destino entregue a Héloïse e a liberdade de Marianne como artista independente e livre do casamento que a fragilidade da relação entre ambas se fortalece e abre espaço para um romance construído aos poucos, enquanto elas descobrem a si mesmas e suas possibilidades. Durante sua exibição no Festival de Cannes, onde levou os prêmios de Melhor Roteiro e a Palma Queer, Céline Sciamma explicou que seu objetivo com o filme era mostrar o romance entre duas mulheres a partir do olhar feminino, raridade no audiovisual.

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Classificar “Retrato de uma jovem em chamas” apenas como um “romance lésbico” é diminuir a amplitude do trabalho de Sciamma, que consegue retratar com riqueza de detalhes as frágeis e subliminares relações interpessoais que mulheres viviam em 1770. O resultado entregue é um filme que retrata com maestria a época na qual se passa (a diretora trabalhou com um historiador de arte para montar o universo do longa), e quais as (poucas) chances que mulheres encontravam na sociedade francesa do final do século XVIII fora de um casamento heterossexual.

Em "retrato de uma jovem em chamas", olhar feminino da diretora Céline Sciamma mostra evolução gradual do romance entre duas mulheres (Foto: Reprodução)
Em “retrato de uma jovem em chamas”, olhar feminino da diretora Céline Sciamma mostra evolução gradual do romance entre duas mulheres (Foto: Reprodução)

Para isso, a ambientação esmiúça o contato precário e, ao mesmo tempo, primordial com a arte, a música e a literatura, principalmente considerando que a história se passa em uma ilha isolada do mundo externo. Além da relação entre as protagonistas, brilha também a participação de Luàna Brajami no papel de Sophie, a jovem cúmplice do romance entre Marianne e Héloise. Aos poucos, a personagem expande o leque de relações e questões possíveis no universo feminino da época, o que, no fim do dia, traz problemas similares até demais com o século XXI.

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A cada cena, Céline Sciamma expande lenta e cuidadosamente a evolução do afeto entre Marianne e Héloïse, renegando a narrativa simples do “amor à primeira vista” e indicando a descoberta desse amor através de toques desencontrados, respirações controladas e olhares literalmente incendiários. Há também a analogia traçada entre o romance das protagonistas e o mito grego de Orfeu e Eurídice, uma forma devastadora de ilustrar como o amor dessas personagens é igualmente épico e trágico.

Com um elenco completamente feminino, apoiado por mulheres na direção, produção, fotografia e em praticamente todos os seus processos criativos, o filme evita os clichês construídos por homens no cinema e expande as possibilidades de uma narrativa romântica para duas personagens LGBTQ. Ao mesmo tempo, “Retrato de uma jovem em chamas” traz o apelo universal e irresistível de uma boa história de amor que transcendem tempo, espaço e gênero.

 

“Retrato de uma jovem em chamas” será exibido no Festival Mix Brasil neste sábado (16) às 21h30, no CineSesc. Assista ao trailer abaixo: