A expectativa de vida de uma pessoa transexual ou travesti no Brasil é de 35 anos. Ao que tudo indica, essa média, 40 anos mais curta que a do restante dos brasileiros, pode diminuir ainda mais. Em 3 de janeiro, quebramos um dos recordes mais tristes no assassinato dessa população: aos 13 anos, a cearense Keron Ravach se tornou a vítima mais jovem do transfeminicídio no País.

Keron foi morta a facadas, pauladas, socos e chutes, com todos os requintes de crueldade comuns ao transfeminicídio, pouco importando seus 13 anos de idade. Reportagem da Folha afirma que ela ainda teve “os olhos perfurados e a roupa introduzida no ânus”.

Era a primeira segunda-feira do ano e Keron completaria 14 anos em menos de um mês. Nascida em Camocim, a 373 quilômetros  de Fortaleza, a adolescente perdeu a mãe para um aneurisma cerebral no ano anterior e morava com uma tia. Era “uma menina que gostava de dançar na praça, com amigos, e depois tomava banho de mar”, como descreveu o Mães Pela Diversidade em uma nota de pesar e repúdio.

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De acordo com O Povo, o assassinato foi cometido por outro adolescente de 17 anos, que alegou ter se desentendido com a jovem por uma programa sexual, versão contestada pelos amigos de Keron. O jornal ainda afirma que a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) do Ceará “descartou que o ato infracional tenha ocorrido em razão da orientação sexual da vítima”.

Keron se torna a vítima mais jovem do transfeminicídio no País e sua morte sequer será registrada pelos órgãos públicos como deveria: motivada por transfobia. No dossiê anual de assassinatos, a ser lançado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) no próxima dia 29,  atingimos outro recorde: 175 mulheres transexuais ou travestis mortas em 2020 – seis a mais que em 2017, ano que até então mantinha o maior número de assassinatos contra pessoas trans do gênero feminino, mesmo com a subnotificação dos mesmos, e que ainda é o campeão em números absolutos com 179 casos.

Keron gostava de dançar na praça com amigos "e depois tomava banho de mar" (Foto: Reprodução)
Keron gostava de dançar na praça com amigos “e depois tomava banho de mar” (Foto: Reprodução)

Todas as vítimas se identificavam com o gênero feminino e a mais jovem delas tinha apenas 15 anos, não muito mais velha que Keron. O Ceará, onde ela morava, foi o segundo Estado com maior número de assassinatos, atrás apenas de São Paulo, que mantém a liderança no ranking. Só o Nordeste concentrou quase metade dos casos – 43%, tornando-se a região com mais ocorrências.

De acordo com a Antra, a expectativa de vida da população trans no País é de 35 anos. O restante dos brasileiros, como aponta o IBGE, vive mais que 75. Agora, entre o total de assassinatos registrados contra transexuais e travesti no ano passado, a idade média das vítimas era pouco mais de 29 anos – a maioria delas, 56%, estava entre os 15 e os 29. Para elas, chegar aos 35 não foi sequer uma possibilidade.

“Ainda são recorrentes os casos onde se reproduz de forma transfóbica o apagamento da identidade de gênero das vitimas. E se mantém a falta de dados sobre o perfil dos suspeitos, no mesmo momento em que os nomes de registro das vitimas são expostos, sem menção a seus nomes sociais”, aponta Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra e autora da pesquisa, no documento. “Seguimos vendo a insistente política estatal de subnotificação da violência LGBTIfóbica, mesmo após o reconhecimento pelo STF da violência motivada por orientação sexual e/ou identidade de gênero como crime.”

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Em 29 de janeiro, mesma data em que o dossiê completo será divulgado, comemora-se o Dia da Visibilidade Trans, instaurado em 2004 quando houve a primeira campanha institucional do governo federal contra a transfobia. Lançada pelo Ministério da Saúde, tinha por objetivo promover respeito à diversidade de transexuais e travestis. Mas 17 anos depois, o Brasil consegue estar mais distante que nunca de garantir esse direito.

Keron não foi um caso isolado, mas o prenúncio de uma tendência em matar travestis e transexuais cada vez mais jovens e de continuar assassinando a pessoa que elas foram aos lhe negar até em morte o direito à própria identidade. Começou em 2017, com uma vítima de 17 anos, e agora chegou até ela, aos 13.