Na última quarta-feira (8), a coluna de Mônica Bergamo na Folha relatou bastidores sobre o Palácio do Planalto que provocaram uma onda de respostas nas redes sociais pela comunidade LGBTQ. De acordo com a jornalista, Jair Bolsonaro se nega a usar máscara de proteção facial e constrange quem o faz em sua presença, mesmo depois de ter testado positivo para o coronavírus. “Máscara é coisa de viado”, em sua percepção.

“Coisa de viado” segue uma linha bem específica de comentários homofóbicos que até mesmo os homens heterossexuais que se dizem “aliados” costumam deixar passar em rodas de conversa e nas mesas de bar. “Para de viadagem” também é uma derivação comum, assim como atribuir a qualquer ação que fuja do estereótipo de machão como sendo de bicha, boiola, baitola etc.

É uma brincadeira infantil, ensinada desde cedo e cujo objetivo foi e continua sendo minimizar o que foge à regra da masculinidade tradicional. Não há um consenso sobre como o animal veado passou a representar homossexuais no português brasileiro. Alguns acreditam que seja por associação às palavras “transviado” ou “desviado” (aquele que foge à normalidade) ou à fragilidade de Bambi, no filme da Disney, apesar de o inglês “deer” não ser usado assim. Há quem diga que tem a ver com policiais do Brasil colonial e o hábito que tinham de perseguir veados e viados, ambos os grupos correndo dos oficiais “aos saltos”. A versão mais popular, entretanto, dá conta de que o veado representa a 24ª dezena no jogo do bicho e, por isso, seria associado aos homens gays.

Se você, assim como eu, demorou anos para atentar por que o 24 corresponderia a algo gay, a resposta é “simples”: a sonoridade do número se assemelha a “vim de quatro”, algo que, na cabeça dos heterossexuais, parece ser atribuída única e exclusivamente a gays. Existe ainda a noção de que o 11 tenha efeito parecido, uma vez que simbolizaria “um atrás do outro”. Ainda assim, só o 24 tem desempenhado esse papel na cultura brasileira de forma tão forte que é igualmente recusado por jogadores de futebol e por senadores que, por anos, não aceitam ocupar um gabinete com esse número.

Que o presidente do segundo país mais atingido pela pandemia do coronavírus considere proteger a si e aos seus como “coisa de viado” não chega a ser exatamente uma surpresa. Esse tipo de comentário na boca de Bolsonaro surpreende mais por ser dito em cunho privado e não em uma coletiva de imprensa. Afinal, não é nem de longe a primeira vez que ele se opõe à comunidade, e se formos sinceros ele já o fez de maneiras piores, mais violentas e públicas que isso.

Também não é a primeira vez que ele mostra total desconsideração pelas medidas seguidas no resto do mundo contra o coronavírus. Ele foi um dos principais e mais ferrenhos opositores ao isolamento social, encontrando seus apoiadores e circulando por Brasília inúmeras vezes desde que o vírus começou a se espalhar pelo Brasil, em muitas dessas ocasiões sem máscara.

Mas um detalhe na nota de Monica Bergamo chama a atenção: a forma como o círculo próximo de Bolsonaro surfou nessa onda e preferiu arriscar a própria saúde a ser visto pelo presidente como alguém que faz “coisa de viado” ou se importa com a “besteira” de não contrair um vírus que já matou quase 70 mil pessoas só nesse país.

Essa inércia está no centro de comentários como o “coisa de viado” e tudo o que a expressão e suas derivações implicam. Esse é exatamente o tipo de coisa que se diz quando não existe uma pessoa LGBT presente. É uma homofobia quase velada e muitas vezes encarada como inofensiva. E não me anima ter que afirmar isso, mas dificilmente o namorado da sua amiga, seu pai, seu colega de trabalho ou seu amigo da faculdade condenariam esse comentário imediata e publicamente se ele fosse dito numa roda composta exclusivamente por homens héteros.

No fundo, eles podem até não concordar e enxergar que o comentário é ofensivo, mas é mais fácil acreditar que “o cara não quis dizer isso”, “ele não é homofóbico de verdade” ou “o presidente é brincalhão assim mesmo rs” do que causar um desconforto em nome de um grupo que sequer está presente na conversa. Isso apesar de que, no caso de Bolsonaro, ele tem plena ciência de que seu discurso pode sim ser considerado como homofobia, vide o aparente medo que tem de ser condenado pelo ato, como bem mostrou na reunião ministerial de abril deste ano.

Classificar aquilo que se vê como “menor” ou “inferior” para a reafirmação de um ego masculino também não está muito longe do trocadilho que saiu na imprensa ainda este ano, onde o então recém-anunciado secretário da Cultura, Mário Frias, foi criticado não pela sua inexperiência para o cargo, mas pela sugestão de que ele e Bolsonaro poderiam estar tendo um caso. Sob essa ótica, é mais condenável ser “o homem do presidente” do que um artista disposto a integrar um governo que em quase 20 meses não fez praticamente nada de significativo para o setor cultural.

Quase que simultaneamente à publicação de que o presidente consideraria máscara como “coisa de viado”, outra ocorrência do termo agitou a internet e trouxe à tona um debate certamente mais complexo do que a afirmação de Bolsonaro. Em seu Twitter, o engenheiro Gabriel Biondo denunciou que um pedreiro passou um dos piores tipos de vergonha possíveis na era dos dispositivos móveis e encaminhou uma mensagem para ele, o próprio remetente.

Após encaminhar o que o chefe escreveu, o pedreiro fez questão de frisar: “mensagem do viadinho”. Ao se dar conta que o engenheiro tinha visto o comentário, ele rapidamente pediu desculpas e disse que enviou errado. Ultrajado pelo tratamento, Gabriel foi às redes dizer que processaria o funcionário e, rapidamente, foi julgado pelo tribunal da internet por supostamente estar “promovendo o encarceramento em massa de pessoas pretas” (o pedreiro era branco) ou tirando o ganha-pão de um possível chefe de família (ele ainda assim recebeu o valor total que estava acordado para o trabalho).

Veja, o malabarismo argumentativo de outras minorias sociais para classificar homofobia como algo secundário no aparente “ranking” das opressões sociais é um ímpeto tão forte que preferiram prontamente assumir que o pedreiro era negro para atacar um homem gay e branco do que simplesmente apoiar a vítima de uma agressão verbal em ambiente de trabalho. Vale pensar se esse mesmo tipo de ultraje e suposta consciência de classe teriam sido sequer cogitados se o pedreiro tivesse ofendido outras minorias. A máxima de “a vítima não pode ser responsabilizada” deveria ser universal, não?

Na história do Brasil, desconsiderar pautas identitárias sobre gênero, raça ou a luta LGBTQ ao mesmo tempo que demanda apoio de seus membros não é fato novo para a esquerda. São muitas as provas de que, mesmo durante a ditadura militar, partidos políticos de cunho socialista se opuseram a incluir as demandas sociais de gays e lésbicas na lista de reivindicações democráticas.

Ainda em 1970, muitos ativistas que lutavam contra a “opressão de classes” consideravam a homossexualidade como apenas um “produto decadente da burguesia, que sumiria com o socialismo”. A luta de pautas identitárias era vista como “secundária”, algo responsável por “fragmentar as classes trabalhadoras” e desviar do propósito maior. Na União Soviética de Joseph Stálin ao tratamento de LGBTs em Cuba, onde ainda há muito a ser feito apesar dos progressos recentes, nossos direitos não foram só colocados em segundo plano como amplamente violados. Como contamos ainda essa semana na Híbrida, mesmo o movimento negro já teve seus episódios vergonhosos de homofobia e apagamento de figuras homossexuais. Não éramos prioridade antes e, pelo visto, também não somos agora.

Enquanto a direita acena pautas como “ideologia de gênero” e “kit gay” para barganhar nossos direitos em troca de apoio eleitoral, grande parte de quem se diz da esquerda também parece manter malabarismos teóricos e colocar demandas da comunidade LGBTQ como secundárias. Que esse último público demonstre seu próprio preconceito ao afirmar que por ser “pobre” ou “pedreiro” a pessoa não consiga entender o básico do respeito aos direitos humanos é uma triste ironia que nasce e morre no próprio argumento que tentam defender.

O objetivo aqui não é tanto implicar com o emprego do termo “viado”, que assim como outras expressões semelhantes já foi há muito ressignificado pelos próprios gays, mesmo que quando dito por pessoas de fora da comunidade LGBTQ ainda carregue um sentido inegavelmente pejorativo. Mas até que ponto estamos condenados a aceitar que piadas homofóbicas sejam ditas e repetidas ao longo da história? Até quando estaremos em segundo plano, seremos motivo de risada ou parâmetro de desmerecimento?

Da mesma forma que precisamos ser antirracistas em uma sociedade que cisma em insistir no genocídio da população negra, para mudarmos os tristes números de violência contra a comunidade LGBTQ também precisamos ser antiLGBTfobia. E isso inclui ter a coragem de repreender o emprego de termos como “viadinho” ou “coisa de viado”, venham eles da boca do presidente ou de um pedreiro.