Ao longo da era moderna, Hatexepsute, a Rainha Faraó, serviu como prisma acerca das crenças sobre sexo, gênero e poder entre os especialistas do Egito Antigo. Porém, seu legado subversivo na história (queer) – com suas representações em figuras masculinas -, assim como sua própria existência, nem sempre foi tão evidente assim.

Em 1927, o egiptólogo Herbert Winlock, chefe da equipe arqueológica do Museu Metropolitan, o MET, nos Estados Unidos, descreveu cenas brutais de destruição de monumentos no grande complexo de templos e tumbas de Deir El-Bahari, no Egito. Para ele, as obras haviam sofrido “quase todas as indignidades imagináveis”.

Os atos foram vistos como violentos porque egípcios antigos acreditavam que se o nome de uma pessoa sumisse da Terra, seu espírito também desaparecia, por isso a obsessão dos faraós em construir tumbas e demais artefatos que celebrassem suas próprias existências. Se algo fosse rasurado, ou neste caso, destruído, significaria que tal faraó havia sido amaldiçoado com uma morte sem fim.

Tais destroços encontrados por Winlock pertenciam a Hatexepsute, uma das rainhas mais influentes e longevas do Egito Antigo que, em muitas representações, aparecia com corpo masculino e uma barba falsa. Ela também foi uma das únicas mulheres a governar aquela civilização e ainda reivindicou o direito de ter o trono para si enquanto um sucessor homem vivia, tornando-se, portanto, uma faraó.

Complexo de templos e tumbas de Deir El-Bahari, no Egito [Foto: Ian Lloyd]
Complexo de templos e tumbas de Deir El-Bahari, no Egito [Foto: Ian Lloyd]
Pertencente à XVIII Dinastia do Reino Novo do Antigo Egito, Hatexepsute nasceu em Tebas, filha mais velha da rainha Amósis e do rei Tutemés I, que também era pai do príncipe Tutemés II, fruto da relação com uma rainha secundária.

Antes de sua morte, Tutemés I ordenou que Hatexepsute e Tutemés II se casassem – algo comum entre a realeza daquela época – para que pudesse proteger a linhagem real. Após o falecimento do patriarca, os meio-irmãos, já casados, herdaram o trono.

Tutémes II teve um filho com Isis, mulher de seu harém, chamado de Tutémes III. Quando morreu, já coroado, Tutémes III era o único sucessor homem disponível para seguir o reinado. Porém, como era muito novo e sem preparação, Hatexepsute se tornou a rainha regente e, anos depois, foi alçada à posição de faraó.

Ao longo de seus 20 anos de reinado, Hatexepsute fez com que a tradição acomodasse suas necessidades. Dourado, cedro e ébano fluíram no Egito Antigo durante seu império, e os templos, santuários e obeliscos criados em seu nome foram tão impressionantes que os próximos faraós tentaram ser enterrados perto deles. Enquanto Tutemés III comandou os exércitos egípcios, a Rainha Faraó supervisionou uma campanha militar na Núbia – feito que só poderia ser realizado por um rei respeitado, não uma rainha regente ou a esposa de um rei.

Apesar da posição de semideusa, inscrições mostram que ela também estava interessada em mostrar seu valor ao povo egípcio. Embora a inclinação populista possa tê-la levado a cometer alguns atos controversos durante o reinado – como alimentar o medo público de que o povo hicso voltaria para o Egito -, seu interesse pelo povo comum era algo raro para um integrante da realeza da época.

Hieroglifos no templo de Hatexepsute [Foto: Vyacheslav Argenberg]
Hieroglifos no templo de Hatexepsute [Foto: Vyacheslav Argenberg]
No entanto, por muitos anos, Hatexepsute foi vista como uma espécie de vilã. Quando suas primeiras efígies quebradas foram redescobertas no começo do século XX, egiptólogos viram os ataques de Tutemés III contra seu legado como evidência de que a Rainha Faraó fora cruel e tirânica contra seu enteado. William Hayes, curador do MET nos anos 1950, chegou a descrevê-la como “o tipo mais vil de usurpadora”.

Porém, anos mais tarde, quando Hayes e outros especialistas foram substituídos por uma nova onda de pesquisadores, muitas delas mulheres, a narrativa em torno de Hatexepsute começou a mudar. Ela não mais era uma vilã sedenta por poder, mas sim uma grande estrategista e mulher do povo.

“Eu acredito que ela era bastante astuta e sabia como jogar uma pessoa contra a outra – sem matar e sem ela mesmo morrer em decorrência disso”, Catharine Roehrig, a atual curadora da arte egípcia no MET, disse certa vez ao National Geographic.

Os percalços da vida de Tutemés III e a noção tardia de que ele talvez tenha iniciado os ataques aos legados de Hatexepsute, anos após sua morte, também dão uma nova ótica para o relacionamento que tiveram. O jeito mais seguro de garantir seu direito ao trono seria eliminar seu enteado completamente. No entanto, a Rainha Faraó permitiu que ele comandasse o exército e vivesse para depois reinar.

Em vez de buscar vingança contra sua “malvada madrasta”, Tutemés III reescreveu as normas da história de Hatexepsute para evitar que outra filha pudesse utilizar seu precedente para clamar o trono, de acordo com Peter Dorman, presidente da Universidade Americana de Beirute. Independente do sucesso de Hatexepsute como faraó, outra mulher não poderia seguir sua trajetória pela imposição de Tutemés III. A dinastia entre homens, para ele, precisava continuar.

Esfinge de Hatexepsute no MET [Foto: Metropolitan Museum of Art]
Esfinge de Hatexepsute no MET [Foto: Metropolitan Museum of Art]
A transformação de Hatexepsute, de megera a astuta, demonstra como noções sociais modificam nossas visões sobre a história. Embora a escravidão no Egito tenha atingido seu auge durante a era do Novo Reinado, Hayes viu nela uma “vaidosa, ambiciosa e inescrupulosa” líder, não por conta das normas como rei, mas por ser uma mulher.

De forma semelhante, enquanto mulheres cisgênero da geração de Roehrig agora admiram abertamente as conquistas da Rainha Faraó, a relativa ausência de historiadores queer permitiu que pesquisadores do Egito Antigo se apegassem à ideia de que ela estava tentando “enganar” alguém. De acordo com estudiosos do periódico Smithsonian, a escolha de ser representada como homem em sua arte era um “ato audacioso de enganação, de comportamento depravado ou ambos”, uma fala semelhante ao que pessoas transgênero enfrentam atualmente.

“Ela não estava fingindo ser um homem! Ela não era uma cross dresser“, disse Cathleen Keller, professora da Universidade de Berkeley, na Califórnia, para a mesma publicação.

Mas quem disse que ela estava fingindo e como Keller poderia saber? As verdadeiras motivações por trás da Rainha Faraó se perderam no tempo. Com base nos registros disponíveis ao público, não é possível saber, por completo, o que acreditava alguém que governou há 3 mil anos. Assim como o sexismo não deu legitimidade a seu reinado durante o século XX, a cisheteronormatividade pode muito bem ter evitado que pesquisadores entendessem por completo quem Hatexepsute foi.

Estátua de Hatexepsute no MET [Foto: Metropolitan Museum of Art]
Estátua de Hatexepsute no MET [Foto: Metropolitan Museum of Art]
A visão de Hatexepsute como mulher cis parece ancorar-se no fato de que ela utilizava simultaneamente pronomes de títulos femininos e masculinos em suas inscrições. O argumento é baseado em uma noção simplista de gênero que ignora completamente a existência de pessoas queer e outros sujeitos não-binários na história.

Também é possível que, assim como muitos LGBTI+ do presente, Hatexepsute não pudesse se identificar plenamente como gostaria. Talvez não fosse seguro para ela, até como faraó, usar algo além da linguagem feminina – ela devia estar ciente das regras do que podia e não podia fazer para se tornar rainha numa sociedade tão rígida – ou a concepção de gênero dos antigos egípcios fosse realmente diferente da nossa.

“Ela é como um iceberg”, disse a biógrafa Joyce Tyldesley ao Smithsonian. “Na superfície, descobrimos muito sobre ela. Mas há muito o que não sabemos”, escreveu.

E muito do que não sabemos sobre Hatexepsute talvez jamais será descoberto.

Mesmo que saibamos que a múmia encontrada num túmulo do Vale dos Reis do Egito era Hatexepsute, não podemos afirmar com plena convicção que ela era queer. Independente de como pudesse se identificar atualmente, a realidade de que ela nasceu mulher e decidiu governar como rei permanece – nenhuma faraó mulher antes ou após ela sentiu a necessidade de governar como homem para legitimar seus direitos.

Também é difícil de negar, ao menos, que Hatexepsute deu um toque queer ao conceito de reinado, e sua memória serve como exemplo de alguém que borrou o binarismo e não apenas triunfou, como se transformou em um deus para os homens.


Este texto faz parte de uma parceria entre a Híbrida e o projeto Making Queer History, cuja existência só é possível graças a doações. Se tiver interesse, você pode fazer uma doação única no Paypal ou tornar-se um Patrono.