O AFRORROMANTISMO DE ISAAC SILVA
por JOÃO KER
N
ão foi surpresa quando, em seu último desfile na Casa de Criadores, Isaac Silva mesclou novamente moda e política em uma passarela que declarou a mensagem social de sua marca da trilha sonora ao casting, formado inteiramente por modelxs trans. Com uma coleção embebida em referências à cultura afrobrasileira, o estilista baiano de 30 anos direcionou o olhar do público para um novo lugar: as violências sofridas pela população transgênero, simbolizadas na figura histórica de Xica Manicongo.
Xica foi a primeira travesti preta e não-índia a figurar em registros históricos do Brasil, ainda em 1519. Isaac, que teve seu primeiro contato com a personagem através de conversas com Neon Cunha, colaboradora de sua marca homônima e ativista dos direitos trans, então mergulhou em uma pesquisa que o levou até o trabalho de Luis Mott, antropólogo e principal nome por trás do Grupo Gay da Bahia.
Nos documentos do Santo Ofício obtidos por Luis, Isaac deparou-se com a carta de um sapateiro baiano à Corte Portuguesa, denunciando para a Inquisição a existência de um escravo que vestia roupas de feiticeiras da quimbanda, “se comportava como mulher fosse e queria ser tratado por Xica Manicongo”. Para o estilista, não restou dúvidas: “O tema caiu como uma luva para a coleção”, ele conta.
Corta para o desfile e, a primeira informação apresentada ao público é um manifesto de Angela Davis sobre como os povos africanos e índios “foram reduzidos a apenas uma nação” pelos colonizadores, seguido de um texto assinado por Neon Cunha e lido por Magô Tonhon, falando sobre a violência brasileira contra os corpos e vivências trans, ao mesmo tempo em que clamava pelo entendimento das mulheres transexuais como símbolos de feminilidadade: “Só faremos algum progresso quando mulheres, que sempre foram marginalizadas na categoria ‘mulher’ e sempre tiveram que batalhar, tornarem-se o símbolo dessa categoria”.
Ao final, gritos de “Xica Manicongo, presente!”, “Dandara, presente!” e “Matheusa, presente!”. “Veio a pesquisa com Xica, cujo maior crime foi se vestir com os trajes de uma feiticeira africana, mas eu não poderia jamais apagar dessa história nem a Matheusa e nem a Dandara”, explica Neon. Na sequência, Urias abriu a passarela, interpretando sua própria versão de “Geni e o Zapelim”, composição de Chico Buarque para “A Ópera do Malandro”.
“Temos aí a Urias, uma cantora jovem e maravilhosa, de uma geração que normalmente não conhece Chico [Buarque]. Na versão dela, vários desses jovens têm acesso à obra dele. Minha responsabilidade também é trazer isso. Nós temos que fazer essa moda com orgulho”, comenta o estilista.
Foto: Agência FotoSite | Divulgação
UMA INDÚSTRIA EM METAMORFOSE
Isaac é uma voz singular em um horizonte de moda que, a cada temporada, se torna mais comercial e menos inspirado, com a maioria dos estilistas e marcas brasileiras preferindo apostar na velha combinação de tendências internacionais com algumas referências já cansadas à flora e à fauna brasileiras.
Esse resgate histórico com recorte social apresentado em suas confecções é raro na indústria e, quando colocado em prática numa passarela, mostra por que o estilista tem se destacado tanto em um tempo relativamente curto de sua marca homônima.
“Na moda brasileira, temos os estilistas que trabalham Carmen Miranda, Amazônia e papagaios, todas essas coisas. Mas eu estou sempre fazendo o recortre afro nas minhas coleções. Pra mim, ser afrodescente é resgatar essa história, que nem sempre foi vista com bons olhos”, ele explica, com plena consciências das oportunidades que sua plataforma pode abrir.
E tem sido assim desde o início, em 2015, quando ele estreou na Casa de Criadores pelo Projeto Lab, a encubadora de novos talentos do evento. Em suas passarelas, modelos plus size, pretas e trans sempre tiveram vez. “A gente sempre se pergunta ‘Pra quê fazer desfile?’. Eu acredito muito nessa plataforma, é onde temos o nosso espaço. Porque desfile é um teatro. Se não fizermos um show para as pessoas se emocionarem, fica sem sentido”, Isaac comenta.
E se a moda global tem batalhado para acompanhar as mudanças propostas há já quase uma década pelas redes sociais, é fácil dizer que a indústria no Brasil também não descobriu ainda a fórmula exata de como alinhar o lucro à criatividade e à relevância cultural do desfile, um formato de apresentação que vem exigindo mais empenho e artifícios por parte dos estilistas.
Ainda este ano, a São Paulo Fashion Week, maior semana de moda do país, anunciou que 50,1% de suas ações foram compradas pela IMM Participações, empresa árabe especializada em organização e venda de ingressos para eventos de entretenimento. A tentativa é a mais nova artimanha para resgatar a influência, o lucro e o alcance dos estilistas participantes do evento, que muitas vezes conseguem resultados melhores com uma única blogueira do que em cinco dias de desfile.
Por outro lado, a Editora Abril anunciou neste mês que também estaria “descontinuando” a versão brasileira da Elle, uma das melhores e mais instigantes revistas de moda do país, além de apoiadora oficial da Casa de Criadores, servindo como um dos seus principais veículos difusores na mídia.
Os efeitos desse desfalque, apesar de ainda incertos, provavelmente serão sentidos na próxima edição do evento, que se tornou sinônimo de vanguarda criativa inovação na moda nacional.
É nesse contexto que se encontra Isaac Silva e a importância do investimento que ele coloca em seus desfiles.
“Fazer moda na Casa de Criadores é muita responsabilidade”, ele comenta, acrescentando que seu sonho como jovem estudante de moda sofreu um baque quando chegou a São Paulo: “Tudo o que eu via dos estilistas durante o curso foi uma negação e nada do que eu imaginava aconteceu. O amor que eu tenho pela moda é isso: voltarmos para a estaca zero e, daqui, fazermos coisas incríveis”.
Foto: Agência FotoSite | Divulgação
NEON E ISAAC, O MATCH PERFEITO
Obra do destino ou um encontro inevitável para quem não acredita na primeira hipótese, foi também após uma série de desilusões e descontentamentos com a indústria da moda que o caminho de Neon cruzou com o do estilista.
“Meu sonho é ter convivido com o Isaac antes. Demorou para a moda do Brasil me dar alguém como ele”, ela comenta, por telefone, frisando a importância do amigo em sua vida pessoal e profissional: “O Isaac é um sonhador. E, no momento em que fica tudo pesado e denso, nós precisamos mais do que nunca ter o direito de sonhar”.
A colaboração entre os dois começou com a coleção “Dandaras do Brasil”, em 2016, uma das mais reverenciadas do estilista, que homenageou a guerreira negra Dandara dos Palmares.
“Eu estava trabalhando na Casa de Criadores, quando a gente se encontrou por acaso. Conversamos e ele disse que queria a minha ajuda, de forma bem informal”, conta Neon, que nesta última temporada também colaborou com a coleção de Weider Silvério, cujo tema foi a população LGBT em situação de rua. A partir daí, os dois estreitaram os laços e, lado a lado, ajudaram a mudar a percepção que o público geral tinha do trabalho assinado pelo estilista.
“É sempre assim: começamos com uma conversa e explode tudo em um brainstorming de política, valores éticos ou morais, moda, estética etc., e é sempre prazeroso”, ela explica, contente com a parceria. “Eu tenho buscado encontrar a humanidade no nosso trabalho. O Isaac tem um olhar sobre isso que é muito único, ele tem uma magia, mas não é ingênuo e entende muito bem o que é dor”, complementa.
Juntos, eles começaram a pensar em formas inusitadas de o estilista apresentar seu trabalho, aventurando-se pela streetwear e pelo sportswear.
Na última coleção, por exemplo, sumiram as estampas ultracoloridas e tão marcantes no trabalho de Isaac – presentes também em “Dandaras do Brasil” – para entrarem peças exclusivamente em preto e branco, um reflexo do tema de binaridade e contrastes abordados na passarela.
“A moda ainda é uma coisa produzida em sua maioria pelo olhar de mulheres brancas e de classe média, quando não produzida por homens também brancos, cis e de classe média”, pontua Neon. O próprio estilista assume que a nova direção pode ter surpreendido o público acostumado ao seu trabalho: “Quando pensam em mim, as pessoas veem logo algo colorido”.
Nessa coleção, ele investiu na samakaka, tecido popular na Angola, “como se fosse a nossa xita aqui no Brasil”, e espalhou o preto e branco por viscoses estampadas com folhagens e complementadas por acessórios inspirados nos balangandãs e nas figas usadas pelas mulheres baianas contra o mau olhado.
A beleza assinada por Max Weber foi inspirada em tribos africanas que vieram para o Brasil, mas com uma pegada afrofuturista. Neon, por sua vez, afirma que nada a emocionou tanto quanto a trilha sonora que, além da Geni de Urias, ainda teve “Deus é Mulher” (Elza Soares), “Mimar você” (Caetano Veloso) e “You make me feel” (Sylvester James).
“Foi a maior demonstração de afeto do Isaac, além da roupa e de tudo. Eu só vi [a trilha] pronta no dia e me emocionou muito por reconhecer Geni na minha própria história de vida. No final, ele coloca Sylvester, uma figura tão importante que explode na dance music com mulheres não-binárias e queer”, relembra.
Nascido em Barreiras, no interior da Bahia, Isaac mudou-se para Salvador e depois foi tentar a sorte na capital paulista, mas sempre trazendo consigo as referências culturais, estéticas e sociais que observou em sua terra natal.
E claro, como estamos falando da região com maior população negra fora da África em todo o planeta, não é exatamente um espanto quando percebe-se que o estilista sempre investiu no recorte racial desde sua primeira coleção, Lady Bahia Tropical.
A mistura desse olhar singular com a excelência na técnica acabou por levar as roupas de Isaac a algumas das mulheres negras mais famosas e importantes do Brasil, como Taís Araújo, Gaby Amarantos, Djamilla Ribeiro e Elza Soares, para quem o estilista confecciona roupas exclusivas.
“Vestir uma mulher com a importância da Elza, que simboliza tudo o que estamos falando nesse momento, é como um prêmio. No círculo delas, elas falam ‘você já tem seu Isaac Silva próprio?’. Isso é muito legal para mim, mas se uma celebridade quer usar minhas peças, eu sou muito franco e disgo que tem que comprar e ajudar quem está começando”, conta o estilista.
O próximo desafio de Isaac é abrir sua primeira loja física, no bairro de Santa Cecília, centro de São Paulo. A estreia, prevista para 22 de setembro, promete marcar uma nova fase na carreira do estilista, que ainda tem uma trajetória de mais sucesso pela frente: “Vou abrir na cara e na coragem, como tudo na minha vida”.