GABRIELA LORAN E A IMPORTÂNCIA DO PROTAGONISMO TRANS
por PATRICK MONTEIRO
O olhar firme de Gabriela Loran mostra uma segurança que poucas jovens de 25 anos carregam. Ela, mulher negra e artista, já é dona de um título muito representativo para si e todo um grupo de pessoas: o de primeira atriz transexual a atuar em “Malhação”, o seriado adolescente exibido há 24 anos pela TV Globo, emissora de maior alcance do país.
Vivendo a professora de dança Priscila, Gabriela diz buscar muito mais do que visibilidade com seu papel: “Não tive essa referência no passado e ok. Mas hoje, eu posso ser referência para essas pessoas. Talvez pela falta de representatividade, eu tenha demorado mais para começar a minha transição. Hoje, tendo isso, vou ajudar a formar um público que daqui a 10 anos estará assistindo à novela das 21h e se imaginando lá”, comenta à Híbrida.
Hoje, esse público – jovem, em sua maioria – debate nas escolas e na internet temas como estupro, bulimia, alcoolismo, discursos de ódio e intolerância religiosa, tópicos que “Vidas Brasileiras”, a atual temporada de “Malhação”, tem levado às telas todos os dias.
Em conversa com a Híbrida, Gabriela fala como sua chegada à TV Globo, a segunda maior emissora de televisão do mundo, muda perspectivas. “Estou entrando na casa de diversas pessoas. Inclusive, pessoas que não sabem o que é ser transexual, pessoas que têm preconceito. Essas pessoas vão ligar a televisão e verão pessoas trans ocupando esses espaços”, disse.
Leia abaixo a entrevista completa:
Foto: Rede Globo | Maurício Fidalgo | Divulgação
“NÓS, PESSOAS TRANS, SOMOS MUITO ALÉM DO GÊNERO”
Você é a primeira trans em Malhação. Como é esse momento? O que ele representa para você?
Gabriela Loran: Fico muito feliz de ter sido a primeira, mas não quero ser a única. É um momento de muito empoderamento, de fazer história na televisão. Depois de 24 anos de Malhação, eles escolheram uma atriz trans para fazer um papel, mesmo que uma participação. Para ser vista. E o importante é que foi uma atriz trans fazendo uma personagem trans, o que traz a nossa identidade para a televisão. Isso é muito importante.
Como você enxerga a importância de atrizes trans interpretarem personagens cis, no que diz respeito à normatização do corpo trans?
GL: Sem dúvidas, é um passo para a normatização do corpo trans. Óbvio que é importante retratar a minha vivência, mas, enquanto atriz, quero interpretar o maior número de personagens que eu puder. Nós, pessoas trans, somos muito além do gênero. O debate trans é importante por conta de o Brasil ser o país que mais mata transexuais no mundo. Mas somos muito mais do que isso. Tenho orgulho de ser trans e sei que posso me experimentar em diversas áreas e ir muito além de uma determinada caixinha.
Interpretar uma personagem cis é, sem dúvida, muito importante. Mostra que nós não somos ligadas a um estereótipo, que conseguimos viver outros tipos de personagens de forma crível. A possibilidade é enorme e, sem dúvida, ajuda a criar o espectador. Não tive essa referência no passado, e ok. Hoje, eu posso ser essa referência para as pessoas. Talvez pela falta de representatividade, eu tenha demorado mais para começar a minha transição. Hoje, tendo isso, vou ajudar a formar um público que daqui a 10 anos estará assistindo à novela das 21h e já estará mais educado. Ou não.
Você é uma mulher trans com grande passibilidade. Acredita ser um privilégio para a carreira de atriz?
GL: Depende o que você entende como passibilidade. Não acredito que isso exista. Sou mais aceitável, mas passibilidade eu posso ter em diversos ambientes e, em outros, não. Sou mais aceitável por conta disso do que passável, mas sem dúvidas é um privilégio. Acredito que tudo que foge do estereótipo do dia a dia é julgado e eu sou julgada para caramba no momento que digo que sou trans.
Então, sem dúvida, é um privilégio, porque as pessoas estão mais familiarizadas com uma imagem mais ‘aceitável’. Estamos falando sobre televisão, mas sabemos que outros meios de comunicação são muito ofensivos e invasivos com pessoas trans. É uma forma de ser mais aceita, mas me coloca em outro universo que me classifica e me constrange.
As pessoas precisam ver que nós existimos. Muito do preconceito caminha ao lado da ignorância.
– Gabriela Loran
Como ocupar esse espaço na TV Globo ajuda na sua militância?
GL: É muito importante. A TV Globo é o maior veículo de comunicação do país e ser uma transexual lá é muito grande. É uma responsabilidade muito grande, estou entrando na casa de diversas pessoas. Inclusive, pessoas que não sabem o que é ser trans, pessoas que têm preconceito. Essas pessoas vão ligar a televisão e ver pessoas trans ocupando esses espaços.
Quero que isso se multiplique cada vez mais, porque as pessoas precisam ver que nós existimos. Muito do preconceito caminha ao lado da ignorância. Quando não se conhece uma coisa, temos o hábito de repelir. Não temos que repelir, temos que buscar entender. Quando entendemos, respeitamos. Não queremos ser apenas aceitas, queremos ser respeitadas.
Qual foi o retorno que você recebeu da militância sobre a sua entrada na novela?
GL: Não recebi nenhum feedback negativo das pessoas que estão sob a mesma bandeira que eu, a LGBT+. Só eleitores do [Jair] Bolsonaro, que caíram em cima das postagens da TV Globo para me arrasar, mas enfim. Achei importantíssimo também, porque é ótimo ter haters. Isso mostra que a mensagem está chegando a lugares que antes não chegava.
A militância, o público LGBT+, só me deu feedback positivo. Veículos da causa repercutiram e esse ganho não é só meu, ele é de toda a classe. Óbvio que, com ênfase nas pessoas trans, mas todas as siglas ganham. É uma minoria que está no ar, que está lá. E estar lá significa que nós podemos, que outras pessoas também podem.
Enquanto estivermos morrendo, sendo assassinadas, queimadas nas ruas e levando pauladas, quero sim que as pessoas trans tenham liberdade para contar suas próprias histórias
– Gabriela Loran
Personagens trans têm aparecido cada vez mais nas produções nacionais e internacionais. Na mesma medida, muitos deles são interpretados por atores cis. O que você fala sobre transfake?
GL: Acredito que nós, atores, podemos viver todos os tipos de personagens possíveis. Quero chegar no dia que uma pessoa cis interpreta uma pessoa trans sim, mas que existam outras pessoas trans trabalhando e com a mesma visibilidade que as cis. Por que falamos sobre transfake? Porque é falso.
Vivemos no país que mais mata pessoas transexuais e não temos a oportunidade de contar a nossa história na TV? Quero que um dia o país não seja o primeiro no ranking de assassinatos de pessoas trans. Que existam pessoas trans em todos os postos de trabalho do país, para que isso não seja mais um debate.
Enquanto estivermos morrendo, sendo assassinadas, queimadas nas ruas e levando pauladas, quero sim que as pessoas trans tenham liberdade para contar suas próprias histórias. É importante termos esse protagonismo. Essas pessoas ignorantes que nos matam nas ruas não sabem o que somos. Nesse momento, uma pessoa cis fazer um personagem trans é desserviço.
PATRICK MONTEIRO
Jornalista apaixonado por contar histórias e crente que há bondade na humanidade. Adora entrar em uma treta na internet quando o que falta ao outro é apenas informação real. Formou-se no Espírito Santo, mas encontrou a profissão no Rio de Janeiro. Já trabalhou para o Vírgula, Purepeople, Quem Acontece, MTV Brasil e Cosmo. Troco likes, mas não sigo de volta ?
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