A ARTE DE JLO BORGES E AS LESBIANIDADES NEGRAS
por VICTOR SORIANO
Agrafiteira JLo Borges, de 30 anos, é moradora de Irajá, subúrbio do Rio de Janeiro. Formada em História, chegou a fazer também sete períodos de Letras e trabalha na área de comunicação da Rede Nami, uma ONG que usa as artes urbanas para promover o direito das mulheres. Como artista visual e grafiteira, suas obras pautam o sexo lésbico, a violência lesbofóbica e a rejeição desse mesmo corpo lésbico pelo patriarcado.
Atualmente com o projeto “Transar-te”, uma série de antropometria sexual lésbica, Jlo Borges busca a arte com referências urbanas como uma expressão contra a invisibilidade e a fetichização do corpo feminino.
JLo Borges iniciou sua relação com o grafite em 2014, mesmo ano em que teve seu primeiro contato com uma mulher grafiteira: “A irmã de uma amiga se hospedou em minha casa para fazer uma prova.
Era a Carolina Fôlego, que na época estava começando a grafitar e veio pro Rio. “Ela queria muito fazer um grafite na rua, mas acabou fazendo na minha sala e, enquanto ela grafitava, eu perguntava sobre a arte dela”.
Naquele mesmo ano, participando do projeto Mais Educação, JLo sugeriu uma oficina de grafite para crianças, mesmo sem nunca ter grafitado. Naquela mesma escola, fez seu primeiro trabalho: um retrato de Nelson Mandela com a frase “A educação é a mais poderosa arma que você pode usar para mudar o mundo”.“Poucos meses depois me inscrevi no AfroGrafiteiras, da Rede Nami, onde conheci todo o universo da arte de rua”, relembra.
O interesse por arte começou cedo, através de “Cavaleiros do Zodíaco” e outros desenhos japoneses: “Desenhava com muita frequência para fazer os personagens do desenho. Quando minha mãe tinha um pouco mais de grana, ela comprava revistinhas como a ‘Herói’ e a ‘Herói do Futuro’. No meio dessas revistinhas vinham dicas, com proporções do desenho japonês, e eu ficava praticando para desenhar”.
Irmã da poeta Stephanie Borges, JLo lembra que desenhava intensamente até começar a se relacionar com homens, quando parou de praticar seus desenhos por oito anos: “No dia em que descobri ser lésbica, que foi quando transei pela primeira vez com uma mulher, a primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi desenhar. Então, isso é muito marcante. A saída da heterossexualidade compulsória com a volta da compulsão artística”, desabafa.
No dia em que descobri ser lésbica, que foi quando transei pela primeira vez com uma mulher, a primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi desenhar.
– JLO
Segundo ela, a arte tem papel fundamental enquanto fator de questionamento social:
“Vejo a arte como um movimento de libertação que funciona de duas formas – da libertação pessoal, que é aquele momento que você está expurgando algumas coisas enquanto faz seu trabalho, quando ele é verdadeiro; e o processo de modificação cultural que o trabalho pode gerar em longo prazo”.
Falando sobre liberdade na arte, JLo critica a construção de uma história da arte branca e heterossexual, salientando sua preocupação em pensar a representatividade durante seu processo criativo:
“Estamos falando sobre invisibilidade. No caso da invisibilidade lésbica, no sentido em que ela pode ser fetichizada e, dependendo do tipo de representação, também ser lida como uma arte heterossexual que vai excitar o homem. Quando você está falando sobre corpos negros, está falando de corpos que normalmente não têm o mesmo acesso a espaços de cultura, o que exige uma preocupação sobre como tornar essa arte acessível”.
Segundo ela, o grafite torna-se fundamental enquanto processo não só estético, mas também de pluralização desse debate, uma vez que, estando na rua, é quase impossível que ele não seja consumido.
Sobre sua própria liberdade, a grafiteira conta se sentir livre no que diz respeito ao habitar do seu corpo, na medida em que ela sabe quem é, quem ama e não aceita submissão. Ainda assim, ela ressalta:
“Numa sociedade que assassina corpos pretos diariamente, em que mulheres negras são agredidas, em que mulheres negras e lésbicas são assassinadas pela polícia, como aconteceu com a Luana Barbosa [dos Reis], não dá pra pensarmos em ‘liberdade’”, diz, fazendo referência ao caso da mulher lésbica de 34 anos que morreu vítima de isquemia cerebral e traumatismo crânio-encefálico após ter sido espancada por Policiais Militares de Ribeirão Preto (SP), por exigir que sua revista fosse feita por uma policial mulher. “Então, eu sou livre para mim. Por não viver uma mentira, por viver a intensa felicidade de ser e saber, e amar ser quem eu sou. Mas ao mesmo tempo vivo na prisão do sistema capitalista, patriarcal, lesbofóbico, genocida, racista que não me permite ser totalmente livre”, completa JLo.
Sua formação no AfroGrafiteiras foi, segundo ela, essencial não só para os seus processos artísticos como para a sua militância. Ainda que tenha entrado no projeto com uma discussão bastante sólida acerca do feminismo negro, foi lá que JLo passou a transformar suas relações políticas consigo mesma:
”De 2015 a 2017, já foram dez turmas. E neste ano, estamos com mais quatro. São criados laços muito fortes entre as participantes. E esses laços te ensinam muita coisa sobre ser mulher negra, em suas zilhões de realidades. E você vai aprendendo, com cada realidade diferente da sua, que é atravessada por tantas coisas em comum”, explica.
Já na Rede Nami, com seu projeto de arte aprovado no final da sua turma, em 2015, JLo Borges participou de sua primeira exposição em um espaço de arte coletivo do AfroGrafiteiras no Rio Scenarium: “Fiz uma obra que é um mdf de 2m x 1,20m com uma escritura em latim, que significa ‘Este é o meu corpo’, e uma vagina esculpida com durepoxi. Usei sete quilos do material e duas lâmpadas frias – uma no lugar do clitóris e outra no lugar da entrada do canal vaginal Além de não ser realista, foi pintada de azul porque eu queria cores frias, que não remetessem àquela coisa quente do sexo”, lembra. A ONG foi a responsável pelo acesso a um material que, na época, JLo não teria como conseguir. Em 2016, ela começou a trabalhar na área de comunicação da Rede.
JLo conta que, além dos preconceitos por ser uma mulher negra, lésbica e periférica, também sofre por não ser feminilizada, o que a faz ser confundida constantemente com um homem negro: “Espero um tiro da polícia a qualquer momento. Porque é muito complicada a forma com que a sociedade olha pra mim, como uma ameaça. É difícil andar na rua depois das 21h e não ver alguém desesperado achando que vou assaltar. Ou voltar para casa de Uber, passar por uma blitz, e a polícia não parar o carro ou não apontar as armas na nossa direção”.
Espero um tiro da polícia a qualquer momento. Porque é muito complicada a forma com que a sociedade olha pra mim, como uma ameaça.
– JLO
A artista ficou desempregada por três anos, mesmo tendo um currículo extenso. Ela ressalta que, pelo fato de ser negra com a pele clara, passou por outras violências, mais sutis do que as passadas por negrxs de pele mais escura, como as sugestões de alisar o cabelo e usar uma maquiagem ou uma roupa entendidas como “femininas” para conseguir trabalho:
“Mulheres lésbicas, negras e não feminilizadas estão no trabalho informal, como camelôs ou trocadoras de van. O racismo já é extremamente cruel, porque nega todas as oportunidades, preferindo outras pessoas que muitas vezes não têm a sua competência”, argumenta. Segundo ela, o tratamento que mulheres lésbicas e não feminilizadas sofrem se difere entre negras e brancas, mesmo que haja pontos em comum para ambas.
“Sinto que o mundo heterossexual vê a mulher lésbica como se fosse um homem que deu errado. E aí tentam tolir a lesbianidade com estupro corretivo, ameaça de violência física e negação de oportunidades no mercado de trabalho. Quando você passa a pensar na questão afetiva, falamos muito sobre a solidão da mulher negra, e existe a solidão da mulher lésbica. O padrão de beleza da mulher lésbica é extremamente branco, com rolês formados basicamente por mulheres brancas, em eventos caros e longe da periferia. Destroem você e minam a sua autoestima. É importante pensarmos em como construirmos essa autoestima da mulher preta e lésbica, já que a autestima de toda mulher negra feminilizada passa pela questão estética, de aceitar o cabelo e o corpo. Mas para a lésbica negra não feminilizada como fica?”, questiona.
No próprio mercado de arte, a questão da visibilidade do trabalho também é difícil. Segundo JLo, que ainda está se descobrindo enquanto artista, a abertura para que novos talentos exponham individual ou coletivamente é complicada.
As referências de JLo são, principalmente, as artistas que fazem parte de seu cotidiano e as trocas que tem com elas. Ela cita os trabalhos do Slam das Minas – ressaltando a poesia de resistência de Gênesis e Dall Farra -, da poeta Letícia Brito, da cantora Bel Baroni, da artista visual Yasmin Ferreira – a Yaya –, de nomes como Thaieny Dias, Neide Vieira, Dunieto, Marsia Barbosa, Rafa Ferreira, Lara Douets e Panmela Castro, além de todas as mulheres inspiradoras de seu convívio. Há também espaço para nomes internacionais, como Judy Chicago, Howardena Pindell e Megumi Igarashi, que descobriu em uma pesquisa no Google, onde se deparou com a chamada “Mulher é multada ao esculpir caiaque no formato da própria vagina” (“Cliquei na mesma hora. Eu preciso conhecer essa criatura!”).
Em 2016, JLo Borges teve uma obra exposta no Brooklyn por um mês, com as Vinyl Vanders, um projeto de interferência urbana em capas de vinis. A Rede Nami enviou seis capas de artistas brasileiras para Nova York: “Foi massa expor junto com nomes internacionais e bem reconhecidos da arte urbana. O meu vinil teve uma grande visibilidade. A maior parte das notícias nacionais e internacionais que vi tinha a foto do meu vinil na capa ou dentro da matéria, e foi muito legal. Minha obra saiu do Brasil!”, comemora.
Em sua série mais atual, Transar-te , ela apresenta um projeto de antropometria sexual lésbica em que a artista se banha em tinta acrílica e transa com a tela. “Transar-te deixa marcas de todo o meu corpo, mas ao mesmo tempo são só cores dançando. Essa é a minha tradução do que é o sexo lésbico, de uma beleza que não existe em nenhum outro lugar do mundo”, ela conta, salientando também a relação direta entre sua militância numa coletiva lésbica separatista com a sua produção artística.
Em 2015, começaram as movimentações da Coletiva Visibilidade Lésbica, que só viria a se firmar enquanto coletiva (assim mesmo, no feminino) um ano depois, mas se tornaria fundamental para que ela conseguisse expressar suas vivências de forma tão singular: “Ela influencia na minha produção artística, na medida em que oferece espaços com mulheres lésbicas que me inspiram muito. A energia, o carinho e o amor de eventos sempre cheios no subúrbio do Rio de Janeiro me trazem muitas ideias de como tratar da lesbianidade de forma não óbvia e não fetichizante nas minhas obras”.
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VICTOR SORIANO
Victor é graduando do curso de jornalismo da ECO/UFRJ. É analista de inteligência digital e pesquisa corpo e arte. Trabalhou como gerente de branding, repórter e ilustrador de iniciativas como Revista Apuro e Portal Overdose e foi social media da websérie “Drag-se”.