AS MUITAS DIMENSÕES HUMANAS DA “ANTOLOGIA TRANS”
por JOÃO KER
Com 62 poemas de 30 poetas transexuais, travestis e não-binários, a “Antologia Trans” (Ed. Invisíveis Produções, 2017) lançou um mergulho tão inesperado quanto inevitável na profundidade das vivências LGBTs brasileiras. É talvez a maior coleção de obras assim na literatura brasileira, trazendo narrativas que não são raras apenas no mercado editorial, mas na maior parte do Brasil que cisma em varrer essa população pra debaixo do tapete e do chão, sempre que possível.
Tudo começou com o Cursinho Popular Transformação, em São Paulo, que oferecia aulas comunitárias para a população trans. De repente, o que era para ser “apenas” educativo se tornou válvula de escape para que a turma desse vazão no papel às vulnerabilidades que enfrentava nas ruas.
“Por mais que eles precisassem aprender redação para o ENEM e o vestibular, eu tinha essa ideia de que tudo seria mais fácil se tivessem o contato com a vivência poética primeiro”, explica Élida Lima. Formada em comunicação social e cursando doutorado em Psicologia, ela foi uma das professoras do curso e, ao lado lado de Carmen Garcia, Carolina Munis, João Pedro Innecco e Raísa Martins, ajudou a organizar a “Antologia Trans”.
“Esse é um sonho que fomos alimentando e, finalmente, nasceu”, conta João, que também deu aulas no Transformação. Inclusive, foi através desse contato durante o curso que a equipe percebeu o quão poderoso e transformador era o trabalho que estavam desenvolvendo. Tanto que, um semestre depois, eles já estavam se inscrevendo e ganhando o edital que possibilitou a impressão do livro.
Ainda assim, a equipe faz questão de frisar, durante encontro em uma tarde de sábado no Copan, que o objetivo inicial do curso não era esse. “Os encontros que o cursinho proporcionou ajudaram a criar essa intimidade com a poesia”, observa João.
Inclusive, a intenção foi despertar essa relação com a poesia para que, a partir disso, o grupo de alunos e alunas tivesse mais afinidade com o conteúdo “tradicional”. “Através da leitura de poesia, o foco e a atenção se readaptam. É uma forma de educação pelo corpo e não só pela mente. Quando você aceita esses corpos, você os coloca no jogo”, observa Élida.
“É uma estratégia de alfabetização utilizada em várias escolas: partir do poema, para provocar crianças a entenderem a língua”, explica João, acrescentando que a poesia despertou nos participantes da oficina uma maior intimidade com a língua portuguesa. Essa afinidade, ainda inédita para muitos dos estudantes ali, abriu caminho para que a turma pudesse construir narrativas poéticas através de exercícios e gatilhos técnicos de escrita.
Carmen Garcia, Élida Lima, Patrícia Borges, Naná DeLuca, João Innecco e Téo Albuquerque (Foto: Arquivo Pessoal)
CAPILARIZANDO CONHECIMENTO ATRAVÉS DA CULTRURA
Hoje, dois anos depois de seu lançamento e com dois mil exemplares vendidos, a “Antologia Trans” não é o único fruto que perdura do Cursinho Popular de Transformação. Além do livro, que tem sido tema de ensino em instituições como a UERJ e a USP, os participantes do curso seguiram de forma coletiva a relação com a poesia e criaram o TRANSarau, que já ocupou os SESCs e museus de São Paulo, dando origem também à festa TRANSarrada.
“[O Curso Popular Transformação] era um espaço com outras pessoas trans, mas também tinha pessoas cis cientes de sua responsabilidade, além de educadoras dispostas a ensinar”, explica Téo Albuquerque, um dos poetas presentes na “Antologia Trans”, sobre o impacto da experiência em sua vida.
Téo conta que já escrevia poesia desde a adolescência, mas foi através da chamada pública para a Antologia e do seu contato com os organizadores que ele finalmente se enxergou como poeta: “Aquilo se desdobrou em uma coisa que eu não esperava, bem maior do que eu entendia na época. Muito tempo depois da publicação, as pessoas vinham falar comigo, porque tinham lido o meu texto”, relembra. “Hoje, já estou mais ciente da potência nas coisas que eu faço.”
O impacto do curso também foi sentido por Patrícia Borges, que encontrou na poesia uma forma de expressar as particularidades de ser transexual e travesti. “A vulnerabilidade já existe e é social. Ela só é verbalizada na poesia, que é um lugar onde posso me expressar de maneira livre. É como se vozes silenciadas por muito tempo ecoassem dentro desse trabalho”, avalia Patrícia sobre a importância e o pioneirismo da “Antologia Trans”.
O seu contato com o curso, além de ter lhe rendido os primeiros lucros com a poesia, também ajudou a poetisa a superar o medo do palco. Hoje, além de presença cativa nos TRANSaraus, ela também se juntou a Élida e João para ministrar uma nova oficina: “As pessoas procuram a Patrícia porque sabem que ela consegue facilitar coisas que outros não podem”, observa Élida.
“Foi um amadurecimento coletivo, porque você normalmente não vê mais do que dois ou três travestis em um lugar. Então,estávamos em um ambiente seguro estabelecido. Tudo o que acontece ali, tem que ficar ali. É muito empoderador você fazer as pessoas entrarem no seu mundo”, explica Patrícia, que observa também a importância do acolhimento que o espaço e os professores proporcionavam durante a aula. “São pessoas que estão ali te escutando e te dando valor”.
É como se vozes silenciadas por muito tempo ecoassem dentro desse trabalho
– Patrícia Borges
Essa horizontalidade do curso gerou uma mão-dupla de conhecimento para todos os envolvidos. “Eu tive um aprendizado sobre estar e transitar entre pessoas trans, algo que anos de graduação não haviam me proporcionado. Isso me fez aprender muita coisa sobre pessoas trans, sem que elas precisassem me explicar”, conta Élida.
Trabalhando com educação popular há quase 10 anos, Naná DeLuca participou do “Antologia Trans” como um dos poetas que chegaram pela chamada aberta e também como revisor dos textos. Na segunda função, ele relembra, se deparou com um dos maiores desafios e prazeres da carreira.
“Foi um processo muito difícil porque era muito visceral, e eu não podia sentir isso como revisor. Meu trabalho é cirúrgico, então eu não podia me encantar”, explica, afirmando que, mesmo propondo ajustes textuais, não conseguiu conter a empolgação com os trabalhos recebidos. “Eu vi o quanto revelamos uma nova dimensão do humano que nem sempre está na literatura. Se você conhece a literatura canônica e acadêmica, você percebe que existe uma hegemonia de pontos de vista e vivências.”
Revelamos uma nova dimensão do humano que nem sempre está na literatura
– Naná DeLuca
Enquanto exercícios de composição e “chaves de produção” faziam aflorar versos sobre as dificuldades e vulnerabilidades da vivência trans, a produção cultural que esse grupo criou através da poesia e pelas ruas de São Paulo é impossível de ser medida em tão pouco tempo. Há dimensões que extrapolam o espaço físico e se infiltram no imaginário coletivo, criando ali inúmeras figuras desconhecidas até então.
Mais ainda, apresenta contranarrativas sobre as inúmeras particularidades e possibilidades vivência trans que o público, no geral, não está sequer ciente de existirem. Como Patrícia coloca: “É aquela pergunta: na sua vida inteira, quantas pessoas trans, travestis, não-binárias e intersexo você conheceu? São 10 dedos nas mãos. Quantas?”.
JOÃO KER
Mineiro de nascença e carioca de alma, João é formado em jornalismo pela UFRJ e já passou por empresas como Canal Futura, Jornal do Brasil, Sony, Yahoo e The Intercept, antes de lançar a Híbrida. É também repórter do jornal O Estado de S. Paulo.