18 abr 2024

CORPO, CONTEXTO E CONTESTAÇÃO COM ÉLLE DE BERNARDINI 

COMO UMA DRAG QUEEN COMBATE O SENSO COMUM NUMA PLATAFORMA INFESTADA POR IDEAIS DA EXTREMA DIREITA COM BOM HUMOR E FATOS

por RAPHAEL FONSECA

Aos 28 anos, Élle de Bernardini tem o compromisso de questionar através da sua arte as crenças sociais sobre gênero e política. Bailarina, Élle é uma mulher transexual e já tem no currículo uma passagem pela Royal Academy of Ballet, em Londres, onde estudou ballet clássico e sapatilha de ponta, categoria exclusivamente feminina que admitiu pouquíssimas dançarinas trans até hoje.

Em seu trabalho, Élle opera como reflexo e válvula de escape para uma sociedade doente e confusa, colocando seu corpo como instrumento ora vulnerável e ora impenetrável desse contexto. Ela tanto abordou a presença de transexuais na história da arte (com a série “A Imperatriz”) como já evocou Marielle Franco, lembrou os 242 mortos no incêndio da boate Kiss, em 2013 e fez uma festa no próprio cu.

Na performance-protesto “Bárbaros”, por exemplo, Élle tinha um objetivo: gritar sem parar, até perder a voz. “Gritar por gritar é muito pouco produtivo, só gera um ruído. Eu quero gritar essas mazelas do mundo – as coisas que estão erradas, a necessidade de pensar outro modelo de sociedade”, explica na entrevista que você encontra abaixo.

Com obras presentes em acervos como os do Museu de Arte Contemporânea (de Niterói e de Porto Alegre), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, além de vários outros, Élle participou de uma conversa com Raphael Fonseca, curador do MAC-Niterói, onde o papo vai desde a potência do artista ao uso do corpo como ferramenta de questionamento. Leia:

Foto: Acervo Pessoal

ENTREVISTA

Raphael Fonseca: Você pode me contar um pouco sobre a primeira vez em que apresentou a performance “Bárbaros”?

Élle de Bernardini: Foi em 2015, na praça Saldanha Marinho, em Santa Maria. A cidade já havia passado por aquele incêndio que aconteceu em 2013 [na boate Kiss] e, em 2015, tínhamos acabado de sair das eleições terríveis de 2014, a última da Dilma [Rousseff]… Eu sempre tinha essa palavra na cabeça quando alguém me fazia alguma coisa de ruim. Por exemplo, quando eu estava em um local e alguém me tratava mal, eu sempre dizia “ai, que bárbaro!” ou “ai, que pessoa bárbara!”. Tem duas concepções para esse termo: o “bárbaro-Hebe-Camargo”, que é “ai, que maravilha!”; e tem o “bárbaro”, que é “ai, que pessoa sem educação!”.

Eu tive a ideia de fazer uma performance-protesto. Estava acontecendo um evento na cidade, o “Grito rock”, e fui convidada para fazer uma performance pública e na praça, onde os shows ocorreriam. Tive a ideia de convidar a equipe toda do festival para gritar no microfone, mas ninguém topou (risos). Daí eu decidi que faria a ação sozinha.

Como em tudo que eu faço, fico muito preocupada com os detalhes. Tudo em uma performance tem que ter sentido – por que eu estou gritando “bárbaros”? O espaço onde vou gritar, a roupa que vou vestir, a postura corporal… e um dos elementos que me preocupava era o tempo desse grito. Aí, me veio à memória as primeiras performances históricas da Marina Abramovic, que levavam o corpo até a exaustão. Tive a ideia: “Vou gritar até perder a voz”. Simbolicamente, parecia fazer muito sentido também – gritar e depois voltar à vida normal, como se nada tivesse acontecido.

Eu não queria parecer que não era bárbara também – somos todos bárbaros, eu não me excluo disso. No teatro, quando a gente quer representar o estereótipo de uma mulher louca, ela está sempre descabelada. Então entrei assim, descalça, com uma roupa preta e os olhos pintados de vermelho. Achava que o fato de gritar no meio da praça, em frente ao gabinete do prefeito, já me fazia bárbara. A cena era muito simples: tinha um microfone, eu chegava lá e ia gritando de forma sequenciada. Não cheguei a perder totalmente a voz, mas ela começou a falhar e fiquei muito fraca.

Fui censurada duas vezes: pessoas desligaram a caixa de som para impedir que a voz fosse disseminada, um senhor começou a conversar comigo, adolescentes pararam, as pessoas dos escritórios ao redor todas viram a ação. Foi uma verdadeira loucura.

 

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Foto: Acervo Pessoal

RF: Em 2017, você apresentou essa performance no SESC Santos e, no ano passado, dentro do Pivô, em São Paulo. Qual a diferença do eco desse grito no espaço público e a dimensão dele em um espaço voltado para as artes visuais?

EB: No espaço público, as pessoas não veem aquilo como uma ação simbólica como em um espaço artístico. O pessoal que vai no Pivô, por exemplo, minimamente entende que sou uma artista lidando com o capital simbólico. Já no espaço público, não há questionamento se é arte ou não – a ação é vista como parte da realidade. É como um protesto mesmo, não há essa leitura de um caráter simbólico. Como me falaram algumas vezes: “É um protesto”.

RF: Quando pensamos a palavra “grito”, geralmente vem à nossa cabeça a associação com o som e a palavra. Por exemplo, nessa performance você grita “bárbaros”, mas poderia gritar outra coisa. Já em outro trabalho, “Efeito colateral”, você não grita, mas usa a palavra “Marielle” escrita no seu corpo. Como você opera nesses trabalhos que metaforicamente são gritos, mas onde não há a palavra literalmente? Como é possível gritar sem o som e sem as palavras?

EB: Acho que através do choque. Até o título de um texto meu publicado na Performatus é uma frase de Clarice Lispector: “Se há direito ao grito, então eu grito”. Acho que o grito é sempre uma reação a algo que ocorreu a uma pessoa. O grito é uma reação de choque; isso acontece no meu trabalho quando eu desperto o mesmo no público.

Élle de Bernardini em "Efeito Colateral - Marielle Presente"
Élle de Bernardini em "Efeito Colateral - Marielle Pesente"

RF: É como se o grito não estivesse no seu corpo e fosse jogado para o corpo do outro.

EB: Exato. Eu gosto de criar situações mentalmente complexas. Como, por exemplo, nessa série de trabalhos chamada “Campos de contato”. Em um desses trabalhos, convido o público a bater no meu rosto. No outro, em um dia frio, as pessoas são convidadas a jogar um copo de água na minha cara. Se uma pessoa tem consciência do que é ética e moral, do que seria uma ação moralmente correta ou errada, ela estaria em um dilema perante esses trabalhos.

Talvez a única solução fosse gritar – não há o que fazer porque, se ela não der o tapa, não está colaborando com o trabalho; e se ela convencer as pessoas a não darem o tapa, ela sabotará a ação. Se ela der o tapa, ela terá consciência de que cometeu um ato agressivo. Então, chega-se a uma situação mental em que talvez só haja a opção de gritar.

Eu acho que o grito entra no meu trabalho quando eu coloco as pessoas nessas situações de confronto moral, psicológico e físico também. O que eu quero é, de certa forma, gritar sem precisar gritar. Gritar por gritar é muito pouco produtivo, só gera um ruído. Eu quero gritar essas mazelas do mundo – as coisas que estão erradas, a necessidade de pensar outro modelo de sociedade.

Eu utilizo outros subterfúgios para levar essa mensagem de revolução. Porque, quando a gente fala em mudar o modelo de sociedade, estamos falando nisso – em crise, grito. E, possivelmente, também em algumas mortes. Não vamos mudar pequenas coisas. Não, vamos mudar o modelo.

RF: Quantos decibéis pode ter um grito de uma artista visual nesse momento tão opressor da história?

EB: Eu sou uma pessoa bem realista. Não sou aquela artista que pensa que a arte vai mudar o mundo. Acho que ela cumpre um dos papéis, mas há outras esferas da sociedade que funcionam independentemente da arte – como a ciência, por exemplo. Em uma escala de 0 a 10, o grito de uma artista é 5, é no meio.

Nós, como artistas, fazemos uma parte do trabalho que é trazer proposições, formas novas, figuras novas. E os outros 50% do trabalho é o público que terá de fazer – interpretando essas obras, tirando proveito disso, carregando adiante essa ideia de revolução. E fazendo jus a uma causa. Acho então que, como artista, eu consigo um êxito de 50%. Os outros 50% dependem do público. O artista não age sozinho no mundo.

Raphael Fonseca

RAPHAEL FONSECA

Raphael é pesquisador nas áreas da curadoria, história da arte, crítica e educação. Curador do MAC Niterói e professor do Colégio Pedro II. Doutor em Crítica e História da Arte pela UERJ. Recebeu o Prêmio Marcantonio Vilaça de curadoria (2015) e o prêmio de curadoria do Centro Cultural São Paulo (2017). Entre seus projetos recentes, destaque para “Vaivém” (CCBB-SP, 2019); “Lost and found” (ICA Singapore, 2019); “The sun teaches us that history is not everything” (OAF, Hong Kong 2018), dentre outros.

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