Tracey Norman, Caroline Cossey, Roberta Close, Andreja Pejić, Lea T e Valentina Sampaio. Todos os nomes citados são exemplos de mulheres que, ao longo dos séculos XX e XXI, marcaram a indústria da moda, mostrando como campanhas, passarelas e capas de revistas podiam ser ocupadas por pessoas transexuais.

Hoje, a presença de modelos como elas no mundo fashion é uma realidade consolidada. No entanto, essa visibilidade atual é resultado de uma longa luta enfrentada por pioneiras que desafiaram normas para conquistar seus merecidos espaços.

Uma dessas mulheres é a socialite britânica April Ashley, tema do História Queer de hoje. Figura essencial no ativismo trans, ela segue, mesmo após sua morte, inspirando os movimentos pelos direitos de identidade e expressão de gênero, dentro e fora da indústria da moda.

A modelo e ativista trans April Ashley (Foto: Mirrorpix)
A modelo e ativista trans April Ashley (Foto: Mirrorpix)

Quem foi April Ashley?

April Ashley nasceu no dia 29 de abril de 1935, na cidade de Liverpool, Inglaterra. Filha de um pai católico e de uma mãe protestante, ela passou parte da infância convivendo, desde pequena, com um profundo desconforto em relação ao seu gênero de nascença.

Ansiando sair de casa, alistou-se na Marinha Real Britânica aos 14 anos. Seu período por lá, no entanto, foi doloroso: na tentativa de se encaixar nos padrões perpetuados pela profissão, Ashley se transformou numa pessoa infeliz. Deprimida, tentou tirar a própria vida.

Em função disso, veio a ser demitida e internada em clínicas psiquíatricas, por onde passou por terapias de choque elétrico, sendo, inclusive, submetida a uma tentativa de “conversão” ao receber aplicações de testosterona.

Essas experiências só aumentaram a solidão da jovem, que além de não se sentir confortável com o gênero a que foi atribuída, via seu corpo mudar de maneira díspar à dos demais garotos de seu convívio. Posteriormente, chegou a sugerir que talvez tivesse nascido intersexo.

Apesar das aflições a que foi submetida, Ashley sobreviveu e decidiu, resilientemente, que mudaria de vida. Ao final dos anos 1950, partiu para a França, onde começou a trabalhar nos shows do famoso cabaré Le Carrousel de Paris.

Pouco depois, voltou ao Reino Unido, migrando para Londres. Lá, se tornou uma das modelos mais requisitadas da época, aparecendo em importantes revistas, como a Vogue, além de trabalhar com desfiles e campanhas publicitárias.

April fotografada por David Bailey para a Vogue (Foto: Vogue/Reprodução)
April fotografada por David Bailey para a Vogue (Foto: Vogue/Reprodução)

A presença na moda e em círculos sociais influentes colocou Ashley em contato com algumas das figuras mais proeminentes da época, como Mick Jagger e John Lennon. De acordo com a biografia April Ashley’s Odyssey, lançada em 1982 no exterior, Salvador Dalí e Pablo Picasso também não resistiram ao charme da musa e convidram-na para trabalhos artísticos, que ela rejeitou.

Foi durante esse período também que se tornou oficialmente April Ashley, ao passar por uma cirurgia de redesignação sexual. Naquele tempo, o procedimento era extremamente raro e envolvia desafios médicos e sociais. Com o sucesso da operação, manteve sua identidade de gênero como segredo, até não poder mais.

No dia 19 de Novembro de 1961, um amigo informou ao jornal The Sunday People que April não era uma mulher cisgênero. A notícia foi bombástica e fez com que a modelo perdesse trabalhos e até mesmo o papel que havia conquistado no filme Dois Errados no Espaço (1962), de Norman Panama.

Perseverante, April encontrou formas de resistir e tomar as rédeas da narrativa: ao jornal The News of the World, decidiu contar sua própria história, nos seus próprios termos.

Foi em 1963 que ela conheceu o amor, quando se casou com o aristocrata britânico Arthur Corbett. O relacionamento, porém, não perdurou, e o que parecia ser um conto de fadas acabou como um verdadeiro campo de guerra.

April e o ex-marido Arthur Corbett (Foto: Mirrorpix)
April e o ex-marido Arthur Corbett (Foto: Mirrorpix)

Corbett pediu o divórcio 7 anos após a união, alegando que Ashley não era uma mulher de acordo com a lei britânica. Sua intenção era a anulação do matrimônio, na expectativa de que pudesse evitar o pagamento de pensão à ex-esposa.

Em 1970, o tribunal decidiu a favor de Corbett, anulando o casamento e gerando um precedente jurídico que negava a identidade de gênero de Ashley e de outras pessoas transexuais. A decisão foi um golpe devastador para ela, que viu sua vida pessoal e dignidade sendo atacadas publicamente.

Nos anos seguintes, já afastada do trabalho como modelo, Ashley continuou a lutar pelos seus direitos e os de outras pessoas trans.

Em 2005, conseguiu uma nova identidade após a promulgação da Lei de Reconhecimento de Gênero. Sete anos depois, foi condecorada com o título de Membro da Ordem do Império Britânico por sua contribuição ao ativismo LGBTQIA+ e, mais tarde, em 2016, recebeu um diploma honorário na Universidade de Liverpool por seu trabalho a favor dos direitos da comunidade trans no Reino Unido.

April em 2016, recebendo um diploma honorário da Universidade de Liverpool (Foto: Liverpool Echo/James Maloney)
April em 2016, recebendo um diploma honorário da Universidade de Liverpool (Foto: Liverpool Echo/James Maloney)

Já na década de 2020, sua luta ganhou ainda mais destaque, quando uma exposição no Museu de Londres celebrou sua vida e legado. A mostra destacou as contribuições de Ashley para a visibilidade de pessoas trans, consolidando sua importância histórica e impacto duradouro na sociedade.

Em 2021, faleceu na própria casa, aos 86 anos. Amigos próximos não chegaram a revelar a causa da morte à imprensa, afirmando apenas que ela já vinha enfrentando alguns problemas de saúde em função da idade.

Hoje, o pioneirismo de April Ashley continua a ser sentido em várias frentes. Sua vida e trabalho ajudaram a abrir portas para uma maior aceitação e compreensão das questões trans, dentro e fora das passarelas.

Como observou a ativista e escritora Juliet Jacques, “April Ashley não apenas quebrou barreiras, mas também ajudou a abrir novos caminhos para todos nós. Sua vida e seu trabalho permanecem um farol de esperança e um exemplo de perseverança na luta pelos direitos e pela dignidade das pessoas trans”.