Faz cinco anos desde que Jaloo lançou seu último álbum, ft., composto completamente em colaboração com outros artistas. Mesmo que não tenha exatamente saí de cena e lançado outros projetos paralelos nesse meio-tempo, o hiato da carreira solo foi quebrado nesta quarta-feira (25) com MAU, um disco que compôs, cantou e produziu completamente só pela primeira vez e que, nas suas próprias palavras, mostra uma vontade de “sair do casulo e olhar pra fora”.

“Era o carro-chefe desse disco, que não tivesse mais ninguém envolvido. Eu queria que contrastasse com o que tinha sido feito antes e eu sabia que dava conta”, conta à Híbrida.

Juntos com os feats, Jaloo deixou pra trás também o visual e a identidade “bofe”, como ela mesmo descreve, e surge agora mais feminina do que nunca. Ainda que se defina como uma pessoa de gênero fluído (“Nunca tive disforia de me sentir estranha no meu corpo”), a mudança externa e interna influenciou a forma como vive, se relaciona e sua própria arte.

“Tem aquela coisa da garota de 15 anos que é apresentada pra sociedade. Parece que a gente debuta também para outros olhares”, diz.

É por isso que MAU traz canções hedonistas, românticas, eufóricas e angustiantes, equilibrando bom humor e vulnerabilidade nas letras. Ao mesmo tempo, Jaloo, nascida em Castanhal, no Pará, entrega uma versão evoluída da produção eletrônica e das suas influências do Norte que já apareceram nos primeiros discos.

MAU encerra a trilogia de álbuns iniciada por Jaloo em 2015, com #1, e abre um panorama de possibilidades que a artista pretende explorar em intervalos menores no futuro próximo. Mas por ora, seu foco é o presente: “Eu tô curtindo o momento, do jeito que tá, e tentando viver plenamente nele. Porque o que importa é o agora.”

HÍBRIDA: Quando começou a pensar no disco? Eu sei que ele faz parte de uma trilogia, então imagino que você já estava planejando há bastante tempo…

JALOO: Ele já tava programado. Na verdade, o intervalo entre ele e o ft. é de quatro anos, que coincidentemente é o mesmo intervalo entre o primeiro e o ft., então tem um caráter meio de Olimpíadas, assim. E eu espero sair dessa maldição e lançar discos com mais frequência. Ou outros projetos também – eu meio que fiz isso, com o Purakê, da Gaby (Amarantos) e Os Amantes, que foi um disco cheio. Mesmo intercalando bastante, eu acabei trabalhando mais.

H: E teve uns feats aqui e ali.

J: É, eu sempre tô pingando em algum canto. O processo começou de fato durante a pandemia. O disco respira bastante desse momento meio encapsulado. Teve a minha questão de sair um pouco da cena também. Vi que tinha outros projetos, então não precisava estar tão presente como Jaloo. E foi bom ter dado um tempo, de mim mesma também. O trabalho do artista é muito narcisista, né? A RuPaul até fala uma frase, “O problema não é você se amar bastante e falar muito sobre si, é o quanto você consegue esconder isso”. Aí aproveitei pra dar essa escondida enquanto vivia de outras formas, até falei que tava na hora de voltar. E queria voltar de uma maneira bem ousada. Acho que sempre caminhei por esses lugares. O primeiro disco tinha o seu lugar de ousadia, aí o segundo era todo colaborativo (uma coisa que eu nunca tinha feito), e o terceiro é um disco 360º, não tem ninguém mais envolvido além de mim.

H: Fazer tudo sozinho foi uma escolha consciente?

J: Foi. Era o carro-chefe desse disco, que não tivesse mais ninguém envolvido. Eu queria que contrastasse com o que tinha sido feito antes e eu sabia que dava conta.

Tinha muito medo de desapontar as pessoas. […] Nesses últimos anos, comecei a pensar mais em mim

H: Você já disse anteriormente que ser reconhecido na rua era algo que te incomodava e te deixava meio na nóia. Essa relação com o reconhecimento mudou? Hoje você lida melhor com isso?

J: Com certeza. Já relaxei em relação a isso. Não tenho controle da situação e sou uma pessoa de viés muito controlador. No começo da minha carreira, tinha muito medo de desapontar as pessoas. A maneira como elas se aproximavam, queria que tivessem a melhor experiência possível. Nesses últimos anos, comecei a pensar mais em mim. O que é saudável pra mim? Antes, acho que pensava mais no artista, não no ser humano. Agora, me poupo mais e tento me proteger. E acho que, com isso, consegui uma relação muito mais saudável e tranquila com o público. Cuidando de mim, acabei cuidando do outro.

H: Você também disse que MAU é o capítulo da trilogia que fala especificamente sobre a morte. A sua transição de gênero foi algo que motivou o disco, uma consequência, parte do conceito…? Qual é a relação disso na música?

J: Tem uma história disso com o (Carlos Eduardo) Miranda, que foi o diretor musical do meu primeiro disco. E a gente tinha uma relação bem legal e longa – ele não tá mais aqui, mas deixou um legado que eu tento seguir, respeitar e exaltar de alguma forma. Mas o bizarro é que eu tive essa conversa com ele, lá em 2014 ou 2015, que eu queria contar essa história ao longo de três discos. É uma forma fantástica de falar um pouco sobre mim.

Gosto de exaltar o gênero, o que eu tenho de mulher e de homem também

Eu me identifico com o gênero fluído. É até uma conversa diferente. Nas pessoas que eu me relaciono, tenho muitas amigas mulheres trans, e eu gosto de navegar entre os gêneros. Na verdade, não é nem navegar. Acho que todos eles tão em mim. Tanto que o não-binário não é um lugar que eu me identifico, porque entendo como “nenhum”, a negação do gênero. E eu gosto de exaltar o gênero, o que eu tenho de mulher e de homem também. E tá tudo bem, eu nunca tive disforia de gênero, por exemplo, de me sentir estranha no meu corpo.

Não quero chegar em algum lugar. Não estou percorrendo (algo) porque quero ser feminina e chegar num ápice. Eu tô curtindo o momento, do jeito que tá, e tentando viver plenamente nele. Porque o que importa é o agora. Mas, claro, essas são minhas reflexões sobre mim mesma. E o meu caso é esse, de gênero fluído.

H: Na nossa última entrevista, há cinco anos, você disse que, no ft., queria “ter os dois gêneros”. Revisitando, tive a impressão de que você sempre planejou isso mesmo.

J: Isso faz parte de mim desde sempre. Lembro de fotos minhas, quando eu era criança com a minha irmã mais velha, e ninguém sabia dizer quem é quem. Isso confundia entre os próprios parentes e eu gosto disso, acho legal. Mas foi uma coisa que eu neguei muito, principalmente na adolescência, quando era vista de forma feminina e fiz de tudo para parecer masculina na época.

H: Em um texto sobre “Quero te ver gozar”, você fala muito sobre a importância do olhar do outro e na influência que isso tem sobre nós. Como você percebeu a mudança desse olhar enquanto você mesma estava mudando por fora e por dentro?

J: Isso é muito doido. Eu tento não me colocar como uma pessoa que precisa da aprovação do outro pra se legitimar de alguma forma. Mas a gente é ser humano, então de alguma forma isso acaba acontecendo – e até faz parte do processo de se ver e se relacionar de uma forma nova. Tenho muitos amigos gays que claramente ainda me enxergam como um gay cis. E eu acho tranquilo, porque cada um tem a sua trajetória psíquica – tem gente que me conhece há muito tempo e ainda enxerga aquela pessoa.

Eu não tô procurando muito uma validação, juro (risos)

Mas quando a gente tá no rolê e eles veem alguém que bate de frente comigo e já me enxerga de uma outra forma, com essa leitura nova, dá pra sentir até um tilt na cabeça de perceber que o mundo já tá me validando de outra forma. Eu não tô procurando muito uma validação, juro (risos). Ao mesmo tempo, até as minhas relações românticas são outras.

H: Eu tava pensando mais nisso, inclusive. Pensei em como deve ter sido pra você mudar o foco dos relacionamentos ou de os relacionamentos mudarem o foco com você.

J: Isso é legal, até fofo e bonito, mas é uma nova puberdade. Tem aquela coisa da garota de 15 anos que é apresentada pra sociedade.

H: Como uma debutante?

J: Isso, parece que a gente debuta também para outros olhares. Até mulheres lésbicas olham com uma cara meio de me devorar. E, claro, tenho até tentado não falar sobre eles, mas os homens héteros também estão começando a fazer parte da minha vida. O problema maior é que é homem e hétero. Mas também tem muitos gays que se relacionaram comigo pra além do gênero. Gostam da menina e do menino que habitam em mim, sentem atração por isso, que era uma coisa que eu não entendia.

H: A música “A verdade é que a cidade vai me matar” tem a ver com seus 12 anos morando em São Paulo e no que a cidade te provocou?

J: Com certeza. Essa cidade tá sempre no meu imaginário, desde o primeiro. O segundo tem “Céu Azul” (com MC Tha), que é uma conversa com ela. E no terceiro não podia faltar, já que é uma trilogia. Acho essa música tão apocalíptica, sem esperança e sem amor. Ela aceita a realidade cruel das coisas e mergulha tanto nesse lugar que acaba sendo cheia de vida.

Tem a questão dos vícios, por exemplo. Pra gente sair do vício, a primeira coisa é admitir. Acho que essa música tem isso de eu olhar pras coisas e perceber o meu redor. Não estou mais como um zumbi, vivendo essa coisa da cidade, acordando e repetindo tudo isso. Parece que agora eu estou realmente olhando, analisando. É um título grande, mas não tinha como ser outro. Ele bateu pé e disse que vai ficar aqui.

“MAU” foi a música onde mais me permiti ser malcriada e ousada

H: Você disse uma vez que costumava separar a vida pessoal da artística. Continua assim?

J: Acho que meu público não sabe muito, só através dos discos, que são muito biográficos e pessoais. Mas eu não mostro em rede social com quem eu tô, o que estou fazendo e se estou apaixonado ou não. Ao mesmo tempo, eu gosto de criar narrativas falsas, de brincar com simbologias que eu vejo dos artistas, fofocas e essas coisas. Gosto de me apoderar disso e me divertir, fazendo o público se divertir também.

Na pandemia, uma época que eu nem mostrava o rosto direito, criei uns quadros fakes, como o “Encontro do Grindr”. Quando eu viajava pra algum lugar, criava uma narrativa de que ia encontrar alguém, mas era sempre um amigo, só pra fazer a palhaçada.

H: Lembro de você também ficar no Twitter “brigando” com a Jup do Bairro e com a MC Tha.

J: Exato, a gente criava umas brigas fakes. Eu acho legal essas narrativas para fazer o público pensar até que ponto está sendo manipulado pelas manchetes. Eu brinco para fazer o público refletir sobre o mundo e o quanto ele manipula a gente.

H: Você enfiou mesmo um gemidão do zap na música “MAU”?

J: Sim, enfiei. Ela abre o disco e fala sobre ele, a que eu vim. Queria que as pessoas ouvissem e pensassem “que porra é essa?”. Acho que consegui. Ela assusta antes de vir a batida. E foi a música onde mais me permiti ser mal-criada e ousada. Tem a parte do meu pau, várias simbologias, o fato de eu não negar o meu falo e gostar dele… Não fazendo crítica de forma alguma, porque cada um tem uma relação com o seu sexo, mas temos a cena drag e o tuck (aquendar), de esconder, colocar pra baixo. Eu decidi não fazer isso porque tenho essa relação de “tenho sim e não só eu gosto, mas muita gente”.

Jaloo: "Eu tô curtindo o momento, do jeito que tá, e tentando viver plenamente nele" (Foto: Caia Ramalho)
Jaloo: “Eu tô curtindo o momento, do jeito que tá, e tentando viver plenamente nele” (Foto: Caia Ramalho)

H: Inclusive você foi convidada por um seguidor pra um open house com ursos ativos. (Risos)

J: (Risos) Isso é muito engraçado. Uma coisa que eu amo nos fãs é que a gente já se aproximou pelo senso de humor. Muitas mensagens que eu recebo, claramente eles querem me fazer rir e acabam se tornando presentes. Eu printei aquilo porque quem enviou sabia que ia mexer comigo. Mas claramente não existe aquela pessoa, acho que escreveu só pra ser engraçado mesmo.

H: Qual seu objetivo com esse disco? O que quer provocar com ele no público?

J: Tem uma coisa que tem me martelado muitos nos últimos anos e agora parece que eu estou enxergando mesmo sobre o encapsulamento dentro de si mesmo. É um surto de ansiedade generalizada por causa de estímulo rápido, é a dopamina das redes sociais, são os vídeos de satisfação da pessoa limpando a privada… A gente tá tão viciado nesses estímulos rápidos que não consegue prestar atenção em muita coisa e ficamos presos nesse circuito. O disco é para sair desse casulo e olhar pra fora. Pelo tanto que eu tô cuidando da minha mente, ou ao menos tentando nesses últimos tempos, percebo que a minha cura veio das relações sociais, de enxergar o outro e se curar a partir disso.

“Quero te ver gozar” narra o dia que eu encontrei alguém com quem tinha namorado e não via há anos. Ele tava feliz com outra pessoa, curtindo, e isso me deixou triste. Mas ao mesmo tempo, refleti em cima e percebi que ele gozou da situação, que aquilo deixou ele feliz de alguma forma e que, claramente, ele tava seguindo em frente. Foi uma experiência muito difícil pra mim no dia, mas segui em frente e refleti que eu não fui lá dos melhores. E ele também não foi dos piores. Cá entre nós, foi justo aquilo que tinha acontecido.

É meio que o amadurecimento a partir do olhar do outro. Então, as relações são muito importantes. Pegar o celular às vezes e bloquear para ouvir (alguém), prestar atenção, o que tá tão difícil. Acho que essa mensagem é meio urgente também.

RELEMBRE: