21 nov 2024

PATRÍCIA SOUZA É A PRIMEIRA MUSA TRANS DA MANGUEIRA

CONHEÇA A CABELEIREIRA QUE ESTÁ FAZENDO HISTÓRIA EM UMA DAS ESCOLAS MAIS TRADICIONAIS DO CARNAVAL BRASILEIRO

POR JOÃO KER

Fundada há exatos 80 anos, a G. R. E. S. Estação Primeira de Mangueira firmou-se no carnaval brasileiro como uma das escolas de samba mais conhecidas, premiadas e tradicionais do país. Mas para este ano, a gremiação do verde-e-rosa, que só admitiu mulheres na bateria em 2007, voltou a consagrar-se como uma das mais visionárias da Sapucaí, elegendo Patrícia Souza como a primeira musa transexual em toda a sua história.

Apresentada ao carnavalesco Leandro Vieira por um dos diretores da gremiação, Patrícia desfilará pela avenida no domingo de carnaval (03) como uma índia, representando a exuberância indígena antes da chegada de Cabral ao território brasileiro.

O enredo desenvolvido por Leandro pretende mostrar “um lado b” da história brasileira, reverenciando personagens, línguas, hábitos e episódios que geralmente não ganham a devida importância na construção da nossa identidade sociocultural.

“Cada dia que passa eu estou mais feliz, porque tenho recebido muito carinho do pessoal, tanto da escola quanto da comunidade”, comemora Patrícia em entrevista concedida à Híbrida apenas dias antes de entrar na Sapucaí.

Patrícia no dia que foi anunciada como musa da Mangueira (Foto: Reprodução Instagram)
Patrícia no dia que foi anunciada como musa da Mangueira (Foto: Reprodução Instagram)

Feliz e ansiosa, a cabeleireira de 25 anos confessa que sempre foi uma amante do carnaval e já frequentava os ensaios da escola mesmo antes de começar sua transição de gênero.

Esse processo, por sinal, iniciou-se há sete anos, quando ela tinha apenas 18 e trabalhava em um salão de beleza de uma das redes mais famosas do Rio de Janeiro. Com o ensino médio completo, Patrícia diz que foi fazendo intervenções em seu corpo aos poucos.

Um cabelo mais comprido, uma cirurgia facial e, então, as próteses. Mas a necessidade de adequar seu corpo ao gênero com que se identificava acabou custando-lhe o emprego.

“Eu trabalhava em um salão e comecei a me transformar aos poucos. Eu sabia que queria mudar. Fiz uma [cirurgia na] maçã do rosto e fui demitida, porque já fiquei com a aparência muito feminina. Daí, deixei o cabelo crescer e virei Patrícia, coloquei prótese e tudo”, conta.

Depois de dois anos trabalhando em outro salão, Patrícia foi convidada a voltar para seu emprego antigo. Mas não demorou muito e, com a ajuda de uma amiga, ela se mudou para Londres, onde está até hoje.

“Pra mim, o mais difícil foi encarar outra língua. Tive que estudar bastante e foi muito difícil. O pessoal lá também é meio fechado, etão tenho amigos, mas não tanto quanto no Brasil”, explica.

Há dois anos, Patrícia vive em Londres, onde trabalha como cabeleireira (Foto: Reprodução Instagram)
Há dois anos, Patrícia vive em Londres, onde trabalha como cabeleireira (Foto: Reprodução Instagram)

Na Mangueira, Patrícia garante que é respeitada por todos e que tem encontrado um clima receptivo desde que foi anunciada como musa: “Não tive problemas de preconceito em nada, nem de me olharem pore rabo de olho ou algo assim. Sempre tive um tratamento bem igualitário”.

Sobre o título, ela afirma: “Eu acho um avanço para nós que somos trans, tanto por ocuparmos esse espaço como também outros segmentos. Somos foliões como qualquer outra pessoa e é muito importante para a nossa clase que sejamos vistas assim”.

Hoje, estabelecida na Inglaterra, ela ainda deve ficar pelo Brasil por duas semanas antes de retornar à terra da Rainha (“No carnaval eu sou musa, no resto do ano sou cabeleireira”, brinca).

Apaixonada pela folia, Patrícia conta que sempre preferiu curtir a folia em quadras de samba e na Sapucaí, mesmo antes de ser musa. Inclusive, a musa conta já até desfilou em outros anos, quando almejava ocupar o posto que tem agora.

“Eu sempre sonhei em ser musa. Sempre tive inspiração nas meninas da escola, achava todas muito bonitas. Na época, eu ia para a quadra com uma roupinha diferente, com bastante brilho, mas sem ser musa nem nada. Eu era morena ainda e ficava todo mundo olhando”, relembra.

Patrícia na época que frequetava a Mangueira e sonhava em ser musa do carnaval (Foto: Arquivo Pessoal)
Patrícia na época que frequetava a Mangueira e sonhava em ser musa do carnaval (Foto: Arquivo Pessoal)

Quem acompanhou a realização desse sonho de perto foi Dona Sônia Lopes (54), mãe de Patrícia. Mesmo não sendo muito fã de carnaval, ela acompanha e comemora todas as conquistas da filha.

“Ela é maravilhosa! Teho sorte porque minha família é muito presente. Tudo que eu faço ou deixo de fazer, minha mãe sempre sabe. E ela é uma fãzona, posta tudo meu, tira foto com banner, eu fico arrumada e ela vai lá tirar foto comigo pra postar…”, comenta a musa.

Patrícia e Dona Sônia Lopes, mãe e maior fã da musa (Foto: Arquivo Pessoal)
Patrícia e Dona Sônia Lopes, mãe e maior fã da musa (Foto: Arquivo Pessoal)

Para o desfile, Patrícia toma conta da dieta com alimentos mais saudáveis e naturais, além de cortar o refrigerante, ir diariamente à academia e, principalmente, tirar boas noite de sono.

Sua inspiração, ela diz, são as mulheres com quem convive: “As meninas de onde eu vim, da comunidade e da escola, todas têm uma energia incrível e são inspiração”.

Para além da exposição de participar do maior espetáculo do país, Patrícia ainda ocupará uma posição emblemática no enredo de Leandro Vieira, em um desfile que tem tudo para entrar na história da Mangueira.

Patrícia Souza curtindo o carnaval na Sapucaí com suas amigas (Foto: Arquivo Pessoal)
Patrícia Souza curtindo o carnaval na Sapucaí com suas amigas (Foto: Arquivo Pessoal)

Há também o fato de que o próprio carnaval tem uma função história de vitrine para o ideal do corpo feminino. E inserir um corpo trans nesse contexto é de um impacto imensurável, ainda mais considerando que toda a repressão da nossa sexualidade veio junto com as caravelas portuguesas.

Inclusive, não era raro para certas tribos que um terceiro gênero fosse encarado como uma espécie de divindade, um ser de espiritualidade superior que connseguia transitar simultaneamente entre o espectros feminino e masculino.

Talvez Patrícia e a Mangueira possam representar um primeiro passo em direção ao resgate cultural e social da nossa própria valorização como povo e dos nossos corpos possíveis.

Ainda é difícil medir como uma musa trans impactará o carnaval e a cabeça dos brasileiros a longo prazo. Mas pras menines que, assim como ela, sonham em chegar lá, ela avisa: “Nunca desista. Sempre foque em seguir em frente, porque você tem que estar preparada. Eu sinto que sempre estive preparada para isso acontecer e agora sou muito feliz”.

João Ker

JOÃO KER

Mineiro de nascença e carioca de alma, João é formado em jornalismo pela UFRJ e já trabalhou para veículos como The Intercept, Canal Futura, Jornal do Brasil, Sony e Yahoo antes de realizar seu sonho com a Híbrida. Hoje, se divide entre a rotina de foca no Estadão e a revista.

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