ONDE ESTÃO AS SAPATONAS DO CINEMA BRASILEIRO?
por THAYZ GUIMARÃES
A vida da sapatã já não é das mais fáceis quando o assunto é representatividade no cinema. Isso, claro, falando principalmente de Hollywood e de cinema europeu.
Agora, pensa que é pior ainda se trouxermos a pauta para o audiovisual brasileiro. Fazendo uma conta rápida: quantos filmes nacionais dos últimos anos você é capaz de listar, com ao menos uma personagem feminina que gosta assumidamente de mulheres (e consegue dar vazão a isso)?
Reparem aqui que estou tentando incluir apenas aqueles com a presença de uma “real lesbian” ou casal lésbico ou grupo de amigas lésbicas, retratadas com todas as suas nuanças.
Até porque, de papeis secundários como o da bonitinha descolada que num dado momento fica loucona na balada e resolve beijar a melhor amiga (alô, “Paraísos artificiais”!), o inferno está cheio.
Infelizmente, filmes com essa complexidade de personagens lésbicas são realmente muito poucos.
Eu mesma só consigo me lembrar de três: o premiado “Flores raras” (Bruno Barreto, 2013) com Glória Pires e Miranda Otto dando vida ao romance entre a arquiteta brasileira Lota de Macedo e a poeta americana Elizabeth Bishop; o intenso “Como esquecer” (Malu de Martino, 2010), no qual a personagem de Ana Paula Arósio é abandonada por sua companheira depois de dez anos e precisa recomeçar a vida, encarando novas possibilidades; e “O uivo da gaita” (Bruno Safadi, 2015), exibido no Festival de Tiradentes, mas que mal esteve no circuito comercial – o longa é o primeiro capítulo da trilogia Operação Sonia Silk, uma homenagem do cineasta aos ícones do Cinema Novo, Rogério Sganzerla e Júlio Bressane.
A edição 2017 do Festival do Rio, no entanto, deu sinais de que esse cenário pode estar em vias de transformação.
Ao menos três produções de longa-metragem da nova safra brasileira apresentaram no centro de sua trama o envolvimento entre duas mulheres, e todos de forma muito simples, bonita e natural, sem estereótipos ou maneirismos: “As boas maneiras”, “Entre irmãs” e “Vergel”.
Os dois primeiros têm em comum a presença de Marjorie Estiano.
Em “As boas maneiras”, misto de terror e fantasia dirigido pela dupla Marco Dutra e Juliana Rojas, (ALERTA DE SPOILER!) ela se envolve com Clara (Isabel Zuaá), uma enfermeira solitária da periferia de São Paulo contratada por Ana (Estiano) para cuidar de seu filho ainda não nascido. Já no “Entre irmãs” de Breno Silveiro, um faroeste épico e de época no sertão do Nordeste, ela vive Emília, uma mulher que não tem medo do “desquite” e consegue superar um casamento mal-sucedido com Degas (Romulo Estrela) para encontrar o amor verdadeiro nos braços de Lindalva (Letícia Colin).
“O filme é espelho da sociedade de uma forma global. Ele permite uma comparação entre o antes e o agora e permite que a gente perceba o tanto que evoluiu ou retrocedeu em algumas questões. Do lado feminino, são duas mulheres independentes e autônomas desde sempre, criadas pela tia em uma casa onde não tinha nenhuma figura masculina impondo autoridade. Elas seguem sem aceitar nenhum tipo de elemento externo dizendo que elas são incapazes, absorvendo as limitações impostas e separando o que é delas ou não”, explica Marjorie sobre a Emília de “Entre Irmãs”.
Letícia, cuja personagem ajuda Emília a abrir seu olhar, sua mente e seu coração para novas possibilidades de afeto, também comenta:
“Essa é uma mulher à frente de seu tempo. Dá um certo orgulho viver a vida daquela pessoa. A Lindalva é muito livre e é raro encontrarmos pessoas assim – que são abertas, não julgam e querem apenas viver da melhor forma possível. Ela ajuda muito a Emília a se livrar dessa opressão de ‘não pode’ e ‘não deve’ da alta sociedade.”
Ambientado no Brasil ultraconservador de 1940, “Entre Irmãs” mostra uma sociedade ainda inapta a lidar tanto com uma cangaceira (Nanda Costa) quanto com uma desquitada disposta a viver um romance com outra mulher. Para Letícia Colin, o Brasil de 2017 ainda aparenta alguns desses sinais de conservadorismo, mas evoluiu progressivamente, contando com a ajuda do cinema.
“Às vezes parece que não, porque vivemos um momento de retrocesso absoluto aqui. Mas eu gosto de acreditar que, mesmo devagar, as pessoas estão se respeitando mais nas suas individualidades e diferenças. A nossa voz é muito forte. Estamos nos unindo, falando, e o papel do artista sempre foi esse”.
Marjorie, por sua vez, também acredita na possibilidade da isonomia entre gêneros que as personagens de “Entre Irmãs” buscam e Letícia aponta, enxergando no feminismo uma forma de libertar homens e mulheres dessas amarras.
“Eu estou junta nessa crença [das personagens]. Acredito que as mulheres devem ter direitos iguais e é nisso que se estabelece o feminismo pra mim. E eu acho que isso é uma construção: a mulher conseguir o lugar dela ensina tanto o feminino quanto o masculino”.
Neste Festival do Rio, inclusive, Marjorie foi novamente uma das presença de maior destaque, com dois projetos aclamados pela crítica. Além de “Entre Irmãs”, que promete fazer bonito no circuito comercial com a co-produção entre Globo Filmes e Conspiração, “As boas maneiras” lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante e ainda levou para casa mais quatro troféus Redentor, como Melhor Longa de Ficção, Melhor Fotografia, Prêmio da Crítica e Melhor Ficção pelo Prêmio Félix de , dedicado aos filmes com temática LGBT+.
O sucesso do longa na premiação rendeu até uma comemoração mais entusiasmada da sua produtora, Sara Silveira: “Viva o corpo da sapatona machona que o capitalista não compra! Viva o protagonismo das mulheres, a exposição das lésbicas e a excelência técnica do cinema de gênero brasileiro! Viva a sapataria brasileira!”, bravou quando subiu ao palco.
Ainda na seleção de filmes do festival, “Vergel”, uma coprodução Brasil/Argentina assinada por Kris Niklison, lida com o sentimento da descoberta e do amor em meio ao luto e ao desamparo. No filme, Camila Morgado dá vida a uma brasileira à espera do corpo de seu marido, morto durante as férias do casal na Argentina. Devido à enorme burocracia, ela acaba perdendo a noção de tempo e o senso de realidade, mas as coisas mudam quando sua vizinha (Maricel Álvarez), uma desconhecida até então, se propõe a ajudá-la.
Essa abertura à naturalização da presença lésbica nas telas do cinema brasileiro parece acompanhar um movimento global.
Só do ano passado para cá, pudemos assistir a quatro produções internacionais de grande destaque que abordam o tema: “Carol”, indicado ao Oscar em seis categorias; “Amor por direito”, com Julianne Moore e Ellen Page, baseado num romance lésbico real; “A criada”, do premiado diretor sul-coreano Park Chan-wook; e, finalmente, “Atômica”, um thriller vibrante estrelado por Charlize Theron como mais uma heroína empoderada.
O momento reflete também o crescimento da mulher na indústria cinematográfica, dentro e fora do país, que luta cada vez mais para ocupar mais postos de trabalho, especialmente os cargos mais altos e por trás das câmeras, quase sempre delegados a figuras masculinas. Nisso, o Festival do Rio também serviu de grande vitrine dos novos tempos: dos nove longas-metragens de ficção da Première Brasil, sete foram dirigidos ou codirigidos por mulheres – as únicas exceções foram “O nome da morte”, de Henrique Goldman, e “Unicórnio”, de Eduardo Nunes.
“Se formos mirar o Festival do Rio, tivemos uma representação feminina muito grande na direção, um lugar que geralmente é mais falho. No cinema, as mulheres são muito presentes, mas no backstage e na produção…”, analisa a diretora Carolina Jabor, que assina “Aos seus olhos”, vencedor de Melhor Ficção (Voto Popular), Melhor Ator (Daniel de Oliveira), Melhor Ator Coadjuvante (Marco Ricca) e Melhor Roteiro (Lucas Paraízo).
Em entrevista à Híbrida, a diretora se mostra confiante no aumento de representação feminina no audiovisual: “O movimento tem melhorado, inclusive temos muitas diretoras atuando hoje em dia”.
Bruna Linzmeyer, que recentemente assumiu-se publicamente como bissexual, participou do evento como jurada da mostra Novos Rumos, dedicada a apresentar os nomes promissores no expoente do audiovisual brasileiro. Na cerimônia de entrega dos prêmios, ela destacou a importância de premiar atrizes negras como Grace Passô (Melhor Atriz, por “Praça Paris”) ou o trabalho de produtoras como Sara Silveira.
“Acompanhar um Festival é acompanhar um panorama do que a classe artística está pensando e fazendo. São muitos filmes violentos, com violências veladas e explícitas. A gente tá falando dessa nossa história de opressão. Então, precisamos seguir adiante na narrativa feminina, na narrativa da mulher negra, na narrativa periférica da cidade e também fora do eixo Rio-São Paulo. É disso que a gente precisa falar: dessas coisas que são ‘menores’ e ‘periféricas’ – entre muitas aspas”, defende.
Com as experiências de atriz e roteirista, Suzana Pires, que foi mestre da cerimônia no encerramento do Festival, também é categórica sobre a diversificação de personagens femininas, seus diferentes espectros e histórias possíveis.
“A gente andou muito e o Festival lançou uma luz importante sobre isso. Mas agora temos que dar um grande salto: vir com a narrativa das mulheres negras e ampliar esse escopo. Precisamos trazer essas mulheres que não estão tendo suas histórias contadas. A gente começou a enfiar o pé na porta”, alerta, afirmando que vê o momento da mulher no audiovisual como uma grande chance de compensar anos de invisibilidades e retrocessos.
A gente começou a enfiar o pé na porta
– Suzana Pires
“Não queremos mais sermos retratadas como ‘a gatinha manhosa’, nem estarmos presas a estereótipo nenhum: seja da inteligente que precisa ter cara de cu ou da gostosa burra. A gente pode ser tudo. Também não toleramos mais cenas em que falamos só de homens – temos mais coisas pra falar. O público feminino não quer mais se ver representado naquela caixinha boba”, afirma.
O caminho até uma produção mais igualitária ainda é vasto, mas o presente tem nos dado sinais de que não é hora de a luta arrefecer. Como disse Sara Silveira à Híbrida: “Nós mulheres, brancas, negras, mestiças, homossexuais ou não, estamos com a voz forte, falando forte e exigindo respeito. Nós podemos ter a força de um dragão, muito mais do que a força de um homem”.
THAYZ GUIMARÃES
Lésbica futurista, sapatona convicta (com sol em gêmeos e lua em aquário ¯\_(ツ)_/¯). É jornalista de formação e escreve sobre cinema desde 2010. Música, futebol, cerveja e jardinagem são outros dos seus interesses, não necessariamente nessa ordem. Assina e-mails com uma carinha feliz no final. ?