ABERTA A TEMPORADA DE CAÇA A LGBTs DA CHECHÊNIA
POR JOÃO KER
Em abril deste ano, o jornal independente russo Novaya Gazeta soltou um furo que tomaria proporções internacionais: a existência de campos de concentração na Chechênia, criados pelo próprio governo, para aprisionar e torturar homossexuais no país.
A história brotou como o ápice de uma longa jornada anti-LGBT promovida pelo presidente Ramzan Kadyrov, que seguia de forma mais agressiva os passos de seu líder e aliado Vladimir Putin, o qual já vem forçando leis anti-“ideologias de gênero” na Rússia.
Hoje, mais de oito meses depois, pouco mudou para os gays que vivem naquela região.
Mas os poucos avanços – incluindo missões de resgate, acolhimento, atendimento psicológico e proteção legal – foram articulados pela Russian LGBT Network (Rede LGBT Russa), que já ajudou a retirar pelo menos 76 pessoas para outros países e abriga outras 40 em sua lista de espera.
Pela primeira vez, um membro da organização, Natalia (nome fictício por questões de segurança, a pedido da mesma) fala com um veículo brasileiro sobre a força-tarefa que a ONG baseada em Moscou vem realizando para salvar essas vidas.
“Nós iniciamos uma linha telefônica em março para LGBTs em situação de segurança vulnerável, porque já havíamos escutado através das nossas redes sociais algumas histórias de que isso estava acontecendo. Mas até então, não tínhamos certeza de que os relatos eram verdadeiros”, diz a ativista, comentando que as testemunhas eram supostos presos que foram liberados de suas celas e, com medo de permanecerem na Chechênia, pediram ajuda para abandonar o país.
A primeira abordagem que a ONG recebeu foi ainda em dezembro de 2016. Não demorou muito tempo e eles concluíram que o extermínio de LGBTs no país era uma agenda real e urgente da atual administração.
“Há vários problemas por aqui. Primeiro, existe a negação de que homossexuais sequer existam. Depois, descobrimos que as próprias autoridades locais estão envolvidas nos crimes. Nós inclusive tivemos testemunhas que viram essas pessoas serem capturadas”
– Natalia
Ela ainda acrescenta que “liberdade de expressão é algo bem ‘complicado’ por aqui”. De acordo com Natalia, a única maneira possível de contornar o problema é realocar os LGBT+ da região em países fora da Rússia.
“A homossexualidade aqui é vista como um pecado terrível”, esclarece.
A perseguição a homossexuais não é algo exatamente novo pelas montanhas do Cáucaso e pela Rússia, uma zona de conflitos seculares que datam desde 1500, no mínimo.
No século passado, o regime de Joseph Stalin (1924 – 1953) reforçou ainda mais essa homofobia institucionalizada, introduzindo artigos contra as “orientações não-tradicionais” em todos os códigos penais das repúblicas soviéticas.
A pena era de cinco a oito anos para quem fosse condenado pelo crime, e os detentos eram redirecionados aos gulags – campos de trabalho forçado onde os presos, muitas vezes, morriam por exaustão, frio, fome ou espancamento.
Nesses meios, os homossexuais eram vistos como os primeiros “sacrificáveis” do bando, criando uma estimativa de mais de 50.000 gays assassinados entre 1954 e o início da década de 1980.
Apenas em 1993, o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo deixou de ser crime na Rússia, apesar de sua prática continuar sendo encarada como uma patologia psicológica e social.
A falta de leis que condenassem oficialmente essa comunidade não impediu que agentes sociais, milícias privadas e a própria família desses LGBTs os perseguissem com base em um “sentido moral” que ainda é disseminado até hoje pela grande influência do Cristianismo Ortodoxo, praticado por mais de 70% daquela população.
Mas na Chechênia o buraco é mais embaixo.
O país é palco de uma enorme disputa separatista desde o século XIX, um movimento que chegou a ser estacado de forma bastante precária e autoritária até o final da União Soviética, em 1991.
Nos nove anos seguintes, guerras, atentados terroristas e batalhas travadas contra os soldados russos só tiveram fim quando o então Primeiro Ministro, Vladimir Putin, conseguiu invadir a capital, Grósnia, e garantir a sua eleição no final de 2000. Desde então, ele se mantém no poder.
Como forma de resistência cultural e apoiada pela “liberdade” de ser uma das 22 repúblicas que constituem a Federação Russa – o que lhe dá o direito de ter sua própria bandeira, símbolos nacionais, idioma e constituição -, a Chechênia tem como religião oficial o Islamismo de linha sunita.
Para um país com 17.300 km² de extensão, o equivalente ao estado do Sergipe, ter 94% de sua população ligada a uma doutrina específica é uma das muitas formas de controle social e ideológico das quais o governo dispõe. Quando tal crença é baseada na forma mais radical de uma prática, pinta-se o terrível quadro da perseguição que é testemunhada atualmente contra os LGBTs.
Para deixar claro, isso não quer dizer necessariamente que o Islamismo é contra a homossexualidade.
Na verdade, alguns teólogos e pesquisadores até defendem que o próprio Alcorão não contém nenhuma menção a práticas homossexuais, alegando inclusive que Maomé jamais chegou a saber de fato da existência dessas pessoas.
Entretanto, admitir que algumas passagens de seu livro sagrado estão abertas à interpretação humana não é exatamente algo do interesse de líderes conservadores que pregam o “crime de honra” no país. Apenas para ter uma noção, outros Estados que também praticam o islamismo, como o Iraque e a Arábia Saudita, têm penas de morte baseadas na “fé”, onde gays são lançados do alto de um prédio e, caso sobrevivam, são posteriormente incendiados ou apedrejados em praça pública, muitas vezes sob o aplauso dos que estão ali presentes.
Eis que entra a administração de Ramzan Kadyrov, apontado para a presidência da república em 2007 por Vladimir Putin.
Seu papel no grande jogo político arquitetado pelo kaiser é simples: ele deve coibir a existência de novos movimentos separatistas na Chechênia, enquanto ganha autonomia e verba financeira para fazer o que quiser, inclusive perseguir e assassinar homossexuais.
A própria Rússia tem feito o que pode para coibir essa população de ter qualquer liberdade na região: ainda em 2013, foi criada a lei de “Anti-propaganda LGBT”, que condena qualquer disseminação de informação sobre gêneros e sexualidades “não-tradicionais”.
“Essa lei diz que informações sobre homossexualidade não podem ser passadas para crianças. Ela proíbe que menores de idade tenham acesso a isso, mas também não diz especificamente o que seria ‘isso'”, explica Natalia, que ainda acrescenta: “É mais uma medida para impedir que haja qualquer demonstração pública de afeto”.
Com isso, não apenas a segurança de pessoas LGBT+ fica em risco, mas também a de mulheres heterossexuais e a de qualquer um que entre no caminho do presidente, como ocorreu com o último candidato à oposição, Boris Nemtsov, assassinado misteriosamente em 2015 e cuja ordem do crime foi conectada a Kadyrov pela mídia, que descobriu sua ligação com o assassino capturado pelas autoridades.
Mas talvez essa aliança possa ter os dias contados, ainda que num futuro distante.
Nos últimos meses, há indícios que apontam para uma fragilidade na cumplicidade entre Putin e Kadyrov, um estremecimento mais nas entrelinhas do que de maneira explícita e eminente.
Alguns pontos de tensão entre os presidentes se atenuaram graças à difícil relação do checheno com os magnatas responsáveis por conglomerados de petróleo na região. Por enquanto, é seguro afirmar, assim como o fez o jornal Moscow Times, que as implicações financeiras de tal embate são mais atenuantes do que qualquer violação de direitos humanos que venham a ocorrer por ali.
Até lá, ambos continuam com suas caçadas similares contra gays. E, como explica Natalia, realocar essas pessoas é realmente a única saída possível para que esses chechenos tenham alguma chance de vida.
“Foi esse regime atual, em particular, que começou com essa caçada. As autoridades federais se recusam a abrir uma investigação de forma apropriada e a história não ganha cobertura nenhuma dos veículos de mídia tradicional daqui. É impossível passar a nossa mensagem, então a maioria dos russos não tem nem ideia de que isso esteja acontecendo!”, alerta.
DANOS FÍSICOS E MENTAIS
O furo jornalístico e político publicado pelo Novaya Gazeta escancarou uma realidade monstruosa e com escalas impossíveis de serem ignoradas: estima-se que existam no mínimo quatro desses “campos de concentração” (Natalia os chama de “centros”) para gays em toda a Chechênia – dois em Grósnia, um em Argún e outro em Terek -, os quais já receberam cerca de 100 homens e mataram ao menos quatro, de acordo com testemunhas.
Isso sem contar aqueles outros cujos paradeiros não foram reivindicados oficialmente pelas famílias ou pelos amigos. Afinal, se “incriminar” através da associação com outros homossexuais não é exatamente uma ideia que os chechenos têm de boa reputação no país.
Para ilustrar o quadro de repressão, Elena Milashina, responsável pela primeira reportagem sobre esses campos, precisou sair fugida do país devido à enorme quantidade de ameaças que recebeu tanto dos civis quanto dos próprios governantes.
Em uma entrevista concedida para a BBC em abril, na qual falou de uma “localidade secreta”, Elena afirmou que mais de 15 mil líderes religiosos e altos membros da sociedade se reuniram na maior mesquita da capital para declararem o jihad (uma espécie de guerra santa) contra ela e outros profissionais do Novaya Gazeta.
“Anunciaram que as pessoas e o jornal que escreveram sobre esse assunto destruíram a honra da nação e deveriam enfrentar a Justiça”, afirmou a jornalista.
Mas o assunto não podia mais ser ignorado, especialmente após algumas das vítimas que conseguiram escapar desses “centros de detenção” terem ido a público, mesmo que de forma anônima, relatarem o horror que haviam passado nas mãos da polícia chechena.
“Pessoas diferentes entravam e se revezavam em turnos para nos espancar. Algumas vezes, traziam outros presos, a quem diziam que éramos gays e ordenavam que eles também nos batessem”, contou Adam (nome fictício). Ele foi preso após ter sido chamado para uma reunião com um amigo, que armou secretamente uma emboscada para o rapaz.
Adam então foi recebido no local do suposto encontro por seis policiais berrando: “Nós sabemos que você é gay!”.
Levado para um desses centros dentro de um camburão, Adam disse que se deparou com celas onde mais de 30 detentos eram amontoados e dormiam sob o concreto liso, sem comida ou água.
“Nos chamavam de animais, diziam que não éramos humanos e que íamos morrer ali”, relatou o rapaz, que passava por interrogatórios diários para denunciar outros gays na região.
Com o relato, veio a pressão política internacional. Líderes como a chanceler alemã Angela Merkel, a primeira-ministra britânica Theresa May, o recém-eleito presidente francês Emmanuel Macron, além de organizações como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a própria União Europeia exigiram medidas drásticas.
Através de comunicados oficiais e reuniões cara a cara com o kaiser russo, a situação dos LGBT+ na Chechênia foi denunciada publicamente e Putin colocado sob os holofotes para que tomasse alguma providência contra esses crimes. O que, para os mais desavisados, é o mesmo que pedir Jair Bolsonaro para defender os direitos LGBT+ no Brasil.
Algumas semanas após a notícia ter vazado, Kadyrov viu-se pressionado a dar um paradeiro sobre as tais “investigações” que fez e, através de seu porta-voz oficial, Alvi Karimov, declarou:
“A sociedade da Chechênia nunca teve esse fenômeno denominado orientação sexual não-tradicional. […] Você não pode deter e perseguir pessoas que simplesmente não existem na República”, afirmou, acrescentando: “Se existisse tal tipo de pessoas na Chechênia, os órgãos de aplicação da lei não precisariam se preocupar com elas porque seus próprios parentes as mandariam para um lugar de onde não pudessem voltar”.
Obviamente, Kadyrov não daria um tiro no próprio pé ao admitir a existência e, consequentemente, a responsabilidade por tais crimes.
De maneira mais ardilosa, ele pediu publicamente que as famílias o ajudassem com seu plano de extermínio, uma vez que o discurso da “honra” e dos “valores tradicionais” estão impregnados nos fundamentos daquela sociedade. Não à toa, todos os fugitivos que tiveram a coragem de depor publicamente sobre os campos de concentração afirmaram também que não tinham mais como voltarem para seus próprios lares:
“Meu irmão teria me massacrado como se eu fosse um frango”, declarou um dos gays, que precisou fugir do país com a ajuda da ONG.
“Eles são soltos na esperança de que algum membro da própria família os mate. Ainda na semana passada tivemos uma nova vítima, que reportou basicamente o mesmo quadro: ele foi capturado na rua, levado para essa prisão e agredido, na esperança de que denunciasse novos homossexuais”, declarou Natalia durante sua entrevista exclusiva com a Híbrida, ainda em meados de outubro.
INÉRCIA INTERNACIONAL
Natalia conta que após saírem dessas prisões, os gays chechenos encontram-se em estado pós-traumático, temendo por sua segurança e “emocionalmente fracos”.
“Essa situação inteira é impensável, e nós mesmos não acreditaríamos que isso estivesse acontecendo alguns anos atrás”, ela comenta. “Isso é um crime contra a humanidade. E ainda assim, há poucos países dispostos a tomarem alguma atitude”, acrescenta.
De fato, delegar a Putin a responsabilidade de erradicação desses crimes é apenas o mínimo que pode ser feito e ainda assim não há líderes políticos dispostos a terem esse “desconforto” publicamente.
Com a ascensão da extrema-direita ao redor do globo, uma das poucas pessoas com poder suficiente para peitar o kaiser russo seria Donald Trump, cujas visões sobre LGBTs dispensam maiores explicações. Na verdade, alguns órgãos oficiais dos Estados Unidos até se pronunciaram sobre o tema, como o Congresso Norte-Americano, o Ministério das Relações Exteriores e representantes do país na Embaixada das Nações Unidas.
Mas, de Trump, não veio um tweet absurdo sequer sobre o tema.
O próprio apoio esperado da Organização de Segurança das Nações Unidas também não chegou. Pelo menos não de forma oficial.
O máximo que o órgão interviu no assunto foi através de um coletivo de “Experts Independentes”, profissionais de diversas áreas que atuam como uma espécie de conselheiros gratuitos para a divisão de Direitos Humanos da ONU. Em um comunicado publicado ainda em abril, o grupo de Procedimentos Especiais pede “pelo fim do abuso e da detenção de homens gays na Chechênia”, mas os efeitos foram praticamente nulos e, após a declaração, todos os esforços voltados para aquela região preferiram focar nos conflitos separatistas e ignorar a grave violação dos direitos humanos que vem ocorrendo.
“Atualmente, existe uma investigação federal acontecendo, e nós ainda temos esperança de que conseguiremos abrir uma investigação internacional sobre esses casos”, torce Natalia. Ela conta que alguns civis, ONGs internacionais e outros países têm ajudado a realocar os homossexuais fugitivos da Chechênia, mas que não pode revelar para onde por questões de segurança.
Ainda assim, ela explica que a própria ONG é alvo constante de represálias, uma vez que reinvidicar direitos humanos na região faz com que eles entrem para uma lista de “agentes estrangeiros”.
“Se fizermos alguma atividade política, nós temos inspeções adicionais. Mas já temos um sistema de vídeos implementado e temos conseguido realizar uma série de trabalhos por aqui, como movimentos sociais e atendimentos psicológicos”, comemora.
Enquanto a perseguição na Chechênia não mostra sinais de diminuição, vide o recente caso do cantor russo Zelimkhan Bakayev, assim como os de jornalistas e ativistas que tentam se opor à tirania vigente, Ramzan Kadyrov continua seu plano de posar como bom moço no Instagram.
Sua conta, com mais de 3 milhões de seguidores, vem pregando uma imagem afável e simpática do líder, construída com a ajuda de um reality show recente, no qual promoveu uma competição para escolher seu próximo assistente.
Por ora, a realidade dos LGBT+ na federação russa pode parecer como um pesadelo distante para brasileiros, que as autoridades internacionais não fazem questão de interromper. Mas como cantava Gal Costa, é preciso estar atento e forte: um governo antidemocrático, uma base política calcada em valores religiosos e uma sociedade sedenta pela imposição “da moral e dos bons costumes” não soa tão diferente assim do Brasil atual.
JOÃO KER
Mineiro de nascença e carioca de alma, João é formado em jornalismo pela UFRJ e já passou pelas redações do Canal Futura, Site Heloisa Tolipan, Sony e Yahoo antes de realizar seu sonho com a Híbrida. Hoje, se divide entre a revista e o mundo publicitário na Pixelfordinner.