LEVANTA E LUTA: LINN DA QUEBRADA
POR JOÃO KER
São quase 2h da manhã de um sábado quando Linn da Quebrada chega ao Galpão Gamboa, no Centro do Rio.
Acompanhada de sua equipe, ela entra rápida e certeira em direção ao camarim, enquanto o set da “Batekoo“ mantém o público aquecido para a sua performance em alguns instantes. O horário de verão havia acabado de começar, pulando os relógios de 23:59 para 01:00 e, apesar da chuva que estourava lá fora, a galera não parecia nem de perto desanimada.
A ansiedade era alta: apesar de essa não ter sido a primeira apresentação da artista paulistana na Cidade Maravilhosa, o show marcava o lançamento do seu aguardado álbum de estreia, “Pajubá“.
O disco foi produzido em apenas três meses e de forma colaborativa; vários dos fãs ali presentes haviam contribuído através de crowdfunding para vê-lo ganhar vida.
“Estávamos trabalhando desde abril do ano passado”, explica Linn no sábado seguinte, por telefone: “Fui juntando as pessoas e me conectando com as parcerias para trabalhar quem iria tocar comigo, enquanto amadurecemos as músicas, pesquisando sonoridades e experimentando isso nos shows. O ‘Pajubá’ é juntar todas as minhas músicas – já que é linguagem, conversa e diálogo – e reunir todas essas formulações e elaborações que eu tinha feito”, conta.
Na tracklist, faixas já conhecidas dos fãs – como “Talento”, “Submissa do 7º Dia” e “A Lenda” – ganharam novos arranjos musicais, ao mesmo tempo que canções inéditas como “Tomara”, “Coytada” e “Pare Querida” chegaram para mostrar novas facetas da artista, que batizou o gênero do disco de “afro-funk-vogue”.
Outro fato importante é que das 14 faixas contidas em “Pajubá”, apenas o verso cantado por Gloria Groove em “Necomancia” não leva a assinatura de Linn, um feito que por si só já a destoa de outros artistas, cujos créditos habituais, não importa o gênero musical, habitualmente contêm um time de pelo menos três compositores por título.
Linn da Quebrada tinha muito papo reto para mandar, e o público, mesmo que não quisesse, precisava ouvir.
Das 14 faixas contidas em “Pajubá”, apenas o verso cantado por Gloria Groove em “Necomancia” não leva a assinatura de Linn
“Pajubá” não é a primeira vez que a narrativa e/ou a figura transexual aparece na música brasileira. Ela já esteve presente na “Geni” de Chico Buarque, nas “Três Travestis” de Caetano Veloso e até mais recentemente na “Benedita” de Elza Soares.
Mas Linn, que surge em um momento no qual artistas LGBT+ conquistam seu próprio espaço na mídia e no público, impregna seus versos de camadas confessionais e detalhadas que nenhuma das versões anteriores, idealizadas, estereotipadas ou romantizadas, jamais conseguiram atingir.
“A música foi uma surpresa. Ela vem da minha vontade de expressar o meu diálogo direto, pra entenderem o papo reto sem distração, enquanto eu me coloco nesses lugares de risco. O lance de produção musical é novo pra mim, então me interessa fazer essas coisas que me motivam”, pontua a artista, que começou a carreira através da dança, passando também pelo teatro e pela performance, até se entender como cantora em 2015.
Entre graves de funk, cordas de samba e declamações de rap, a espinha dorsal de “Pajubá” é o “eu” de Linn.
Um “eu” tão direto, sincero e cru que chega a incomodar um ouvinte mais desavisado pela forma explícita com que ela fala de si mesma e de suas experiências.
Ao longo de quase uma hora, a artista aborda decepções e conquistas amorosas e sexuais, preconceitos e orgulhos, solidão e união que a atravessam, refletindo não só a comunidade LGBT+ como um todo, em especial as transexuais e travestis, mas também entregando mensagens universais e necessárias à alma, dela e do público.
Versos sobre transar escondida e com pressa no banheiro, se montar no espelho ou entregar o seu corpo a quem não consegue carregá-lo são construídos com um apelo pop, repletos de críticas sociais, escracho e bom humor.
O pajubá, dialeto de origem africana que vem do Nagô e do Yorubáf e acabou sendo disseminado no Brasil pelos LGBT+, vira massinha de modelar nas rimas de Linn, enquanto ela reconstrói e ressignifica palavras e expressões, misturando-as ao português e subvertendo o seu sentido original.
Sereia se desmonta em verbo de ação e intenção; sentar é com a mão na cara; o mundo dá voltas, mas ela dá mais; o 7º dia é da sub-missa; e o que ela quer é pau paz.
“Sempre tive uma inquietação em relação ao corpo. Em tudo o que eu faço, mais do que sexualidade e gênero, estou falando de corpo e do meu. Ele é o ponto de partida de todas as minhas inquietações, experiências e narrativas”, diz.
Não à toa, o signo do espelho é frequente em sua obra, tanto visual quanto textual:
“Minha produção artística é também um processo de cura pra mim. Minha música me serve como arma. Eu ainda preciso escutar essas coisas que canto”.
FOTO: RICARDO SCHMIDT / REVISTA HÍBRIDA
DA QUEBRADA
Negra, periférica, bicha, transexual, filha de empregada doméstica.
Todas essas características podem ser atribuídas a Linn e frequentemente o são por ela mesma, mas ainda assim estão longe de definir a amplitude de sua complexidade.
Como ela canta em “Mulher”, seu corpo está em constante (des)construção e um dos momentos decisivos para que ela permitisse essa liberdade sobre sua imagem e si própria veio após vencer uma batalha contra o câncer.
“Foi um dos períodos que eu me aproximei mais do corpo e me percebi mortal. Vi que sou um corpo orgânico, que adoece e tem suas dificuldades. Foi então que saí dessa lógica superprodutiva e ‘útil’ ao sistema”, ela lembra.
Essa “utilidade ao sistema” começou aos 14 anos, quando Linn conseguiu seu primeiro emprego no salão de beleza de um cunhado. O local também foi o responsável por iniciar os questionamentos estéticos e identitários que, três anos depois, dariam espaço para a sua primeira montação.
“A gente tá sempre em transição. Eu tava vivendo esse processo de entender a minha identidade no hospital, assim como as expectativas que diziam respeito ao meu corpo. Vivenciei isso num quarto de hospital. Frescura, libertação e cura. Arma, vírus e antídoto. Ser artista é criar sobre a minha própria existência”, explica ela, que naquele instante também começou a desenvolver um projeto artístico ainda inédito, cujos detalhes vem amadurecendo com o tempo.
Hoje, aos 27, Linn tem a certeza de que não ter certeza alguma sobre sua forma é parte intrínseca de sua personalidade e de seu desenvolvimento. O que ela busca agora não é mais uma forma de reafirmação.
“É justamente o oposto. É me permitir o privilégio da dúvida, de olhar para o espelho sempre com esse olhar estrangeiro, como quem olha não a ideia que eu tinha ou gostaria que tivessem sobre mim. Isso começa quando me dou o direito de assumir esse corpo, mais que gay, bicha, trava ou qualquer coisa. É um processo de se permitir ser outras, perguntar se eu realmente me enxergo naquele reflexo, justamente por perceber que meus desejos mudam e minhas experiências me fazem sentir coisas diferentes”, analisa.
E, se para qualquer ser humano o ato de vestir a própria pele com orgulho é um desafio superado com a idade, para Linn não foi diferente:
“De uma certa forma, é o caos. Mas esse olhar pra mim mesma faz com que eu organize o meu caos e dê sentido ao meu corpo, sem esperar isso vir de fora pra dentro. Ao invés de me frustrar diante de outro olhar, eu afirmo que não consigo e não quero atender a essas expectativas. Entre ser homem ou ser mulher, eu prefiro ser eu mesma”.
Aos 5 anos, Linn foi abandonada pelo pai. Como ela mesma canta em “A Lenda“, outra de suas autobiografias musicais, foi a mãe quem a criou, uma alagoana arretada que fazia faxina para dondocas e patrões de outra cidade.
Mãe de Linn.
Vídeo retirado da conta pessoal da cantora no Instagram.
Vivendo no interior de São Paulo sob os cuidados da tia, a jovem cresceu como Testemunha de Jeová, até que foi “desassociada” pela Igreja aos 17 anos, quando começou a experimentar com seu corpo, sua identidade e seu gênero.
Afinal, de acordo com a doutrina, uma maçã podre pode contaminar os outros frutos e ela, com todos os seus questionamentos sobre paradigmas e certezas milenares, acabou encontrando-se isolada de tudo e de todos que conhecia até então.
“Hoje, a minha fé é em mim. Nessa divindade que parte de mim, que me movimenta e me potencializa. Não posso acreditar em algo divino que não acredita na minha existência, principalmente porque ‘deus’ é essa palavra criada por ‘eus’. Um deus composto por todos esses eus que eu posso ser, já fui e ainda serei. Um deus com o qual eu não seja pecado, mas que vivencie as minhas experiências como elas são. Um deus presente”, afirma sem remorsos.
Após a exclusão do meio religioso, Linn encontrou na arte uma forma de unir-se ao seu próprio “bonde das rejeitadas”, dando sentido e alcance coletivo às próprias verdades.
“É o poder da palavra, que a própria religião tem – utilizar da comunicação, do verbo. A música e as artes produzem o mundo a partir do que é dito. Com o tempo, a gente começa a perceber que elas não falam necessariamente como ele é. Muitas das coisas são daquele jeito descrito, mas muitas outras são apenas influenciadas por isso. Nós sentimos e amamos dessa forma compulsória e monogâmica porque tudo à nossa volta nos diz que é assim. Mas isso é ancestral, é tradição, é algo dito há séculos”, explica.
E onde entrou o afeto da pessoa trans nessa história produzida há séculos?
Em lugar nenhum.
A figura da mulher transgênero ou travesti, como já comentado mais acima, fez raras aparições na cultura popular e, quando o fez, foi com base em estereótipos datados ou limitados.
Se gays, lésbicas e bissexuais tiveram seus ocasionais papeis de destaque em obras de artistas como Cássia Eller, Ney Matogrosso, Cazuza ou Ana Carolina, a transexualidade permaneceu subjugada à imagem da prostituição, do crime e dos vícios. Até pouco tempo atrás, ninguém havia se dado o trabalho de compor uma única declaração de amor a essas pessoas. Como Renata Carvalho bem notou em sua entrevista à Híbrida, “as pessoas acreditam que o corpo trans foi feito apenas para o sexo”.
E eis que chega Linn, um dos nomes à frente de um movimento cultural recente e vital para que esse cenário finalmente seja trans-formado.
“Minha música carrega a contradição. Nós podemos produzir a mudança e gerar rupturas, causar a dúvida. Se a gente escuta uma música de amor, é uma experiência muito rara, senão algo totalmente ficcional. O que eu proponho é gerar uma fricção, propor não só o que é real, mas também o que é inventado. Influenciar da maneira que eu penso. É utilizar a minha música como possibilidade de mim mesma”, defende.
“Eu estou falando do meu desejo, sobre mim, e propondo a mim mesma sentir e desejar de forma diferente; usar minha música como magia e fé voltadas para mim mesma”
– Linn da Quebrada
E é por isso que quando ela sobe ao palco com um megafone em punho pra gritar que não precisa de pau porque tem dedos ou que gosta de transar sem pressa, o ato é mais que pura promiscuidade.
Quando ela e Mulher Pepita passam uma música inteira falando sobre prazer anal, é porque as trans e travestis ainda não têm a liberdade de clamar para si o prazer sexual, o gozo sem o macho.
É dar vida a uma narrativa que não existia até então.
Uma história que não foi contada, não foi ouvida e sequer imaginada. Uma vivência real que finalmente encontrou a coragem e o espaço para sair das sombras e assumir as luzes dos holofotes.
FOTO: RICARDO SCHMIDT / REVISTA HÍBRIDA
BONDE DAS REJEITADAS
De volta ao camarim do Galpão Gamboa, o clima é de concentração e preparação para a performance que começaria em minutos.
Dentre as atrações reservadas para a noite, está a primeira performance ao vivo de “Serei A”, a antecipada e celebrada parceria musical de Linn e Liniker, outro nome essencial na nova geração de artistas brasileiros que têm ampliado as vozes e narrativas através da cena musical.
Com afeto fraternal, elas se ajudam na montação em frente ao espelho, riem, contam piadas, aquecem os vocais, se alongam e seguram as mãos uma da outra. Não há sinal de rivalidade ali e, quando elas se olham, parece haver uma infinitude de apoio silencioso transmitido sem a necessidade de palavras.
Elas se conheceram em Santo André, no ABC Paulista, quando estudaram e moraram juntas anos atrás. “Ali, eu tive contato com a música e percebi o alcance e a potência no que ela produzia em diálogo”, lembra Linn.
O período chegou logo após seu câncer e, com a expressão do corpo reprimida há anos, ela começou a complementar o trabalho performático que vinha produzindo com a composição de seus primeiros versos. “Comecei a escrever, sem a intenção de fazer música. Fui perceber que meu corpo não habitava nenhuma expressão artística. Percebi no funk a possibilidade de criar desejo e influenciar meus próprios afetos, minhas próprias ações”, conta.
Eis que nasceu “Bixa preta” e uma comunidade de fãs que só foi aumentando até o nascimento de “Pajubá”, que na sua semana de lançamento emplacou cinco músicas entre as virais do Spotify.
Mais tarde, Liniker sobe ao palco para a sua participação no show em uma cena que comove o público, o qual pausa a bateção de cabelo e de bunda para ouvir o dueto. Por si só, “Serei A” já traz a vulnerabilidade de um coração machucado ao longo do tempo. Quando Linn senta na caixa de som e ouve sua irmã lhe aconselhando a levantar a cabeça, aconteça o que aconteça, o olho-no-olho entre as duas cativa a plateia pela troca .
Por sinal, no palco e no camarim de Linn da Quebrada a comunidade trans é mais do que bem vinda. Lá de cima, ela vai apontando para a plateia e reconhecendo alguns rostos familiares durante a performance, enquanto faz piadas e brinca com as meninas convidadas, como Tertuliana Lustosa e Indianara Siqueira, que mais tarde estariam no backstage.
Após a apresentação, ela tira um intervalo para fazer foto com as fãs, enquanto membros da sua equipe, como a vocalista Jup do Bairro, a produtora Bad Sista (responsável por “Pajubá”) e a dançarina Slim Soledad se juntam a Liniker no clima de celebração.
“A Linn é uma representação LGBT+ que foge do padrão branco e classe média, algo super importante num momento de censura como esse. Quando os LGBTs da periferia ouvem as músicas dela, que também são músicas políticas, elas se sentem representadas”, comenta Indianara , ativista LGBT+ e responsável pela Casa Nem, onde o encarte de “Pajubá” foi fotografado.
“Eu acho muito importante que nos coletivamos, principalmente em grupos marginais. Que nós pertençamos! Isso nos foi negado: o direito de pertencer à família, de ter fé e de se religar. De pertencer a grupos. O bonde das rejeitadas é justamente propor o enconro dessas pessoas e esse religar, esse pertencimento. Propor ali uma relação, para percebermos que não estamos sozinhas”, defende Linn, que vê em suas performances uma extensão desse ideal:
“O show é esse encontro, esse culto, essa possibilidade de construirmos algo juntas. Não só por quem tá no palco, mas em uma relação com quem tá participando comigo. É dar visibilidade pra tudo o que estivermos construindo. Estamos juntas, em um momento histórico. Por mais que tentem protagonizar isso no pódio da representatividade e dar responsabilidade a algumas pessoas específicas, todas nós temos a nossa parcela”, pontua.
O lema da primeira edição da Híbrida é “Levanta e Luta”. Ao conhecer a história de Linn, é impossível não enxergar como ela incorpora essa atitude não só em sua arte, mas em sua própria existência.
No país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo e onde elas também têm a metade da expectativa de vida de um brasileiro cisgênero (35 anos), Linn da Quebrada é necessária para, quem sabe, um futuro diferente.
“É assumir suas responsablidades e suas escolhas. Tendo uma coragem terrorista, de certa forma, e ao invés de apontar a arma para o outro, às vezes apontá-la pra própria cabeça e matar o macho, o deus, o branco que existe em você mesma. Matar atitudes em você pra que novas possibilidades possam renascer”, analisa a artista, que enquanto canta, dá a todos a coragem para enviadescer e continuar a travecar.
JOÃO KER
Mineiro de nascença e carioca de alma, João é formado em jornalismo pela UFRJ e já passou pelas redações do Canal Futura, Site Heloisa Tolipan, Sony e Yahoo antes de realizar seu sonho com a Híbrida. Hoje, se divide entre a revista e o mundo publicitário na Pixelfordinner.