16 set 2024

O QUE APRENDI SOBRE FUTURO OUVINDO E CONTANDO HISTÓRIAS DE IDOSOS LGBT+

COMO A PRODUÇÃO DA SÉRIE “LGBT+60” ME AJUDOU A ENXERGAR AS POSSIBILIDADES DE UMA VIDA COM AMOR E RESPEITO PARA A NOSSA COMUNIDADE

por YURI FERNANDES

Há mais de seis anos, em 2018, decidi ouvir e contar histórias reais de idosos brasileiros LGBTQIA+. Dois fatores me motivaram. O primeiro veio pela inquietação jornalística da profissão que exerço há uma década – pouco era publicado sobre essas vidas na mídia. O segundo se deu por uma busca pessoal enquanto homem gay, na época com 24 anos: ‘Como será a minha velhice? Quais modelos tenho para projetar ou minimamente visualizar meu futuro?’, questionava. A resposta: poucos. A soma do profissional com o pessoal deu origem à série LGBT+60, que chegou neste ano de 2024 à sua terceira temporada. 

Ao longo dos anos, 17 histórias foram publicadas no canal do #Colabora, plataforma premiada de jornalismo independente. As cinco últimas, de 2024, também foram exibidas no canal Futura e hoje estão disponíveis no Globoplay

Entendi que a repercussão e o alcance do projeto – que já tem mais de 7 milhões de views em plataformas digitais como TikTok e Instagram – pode ser explicada principalmente por um anseio compartilhado. A dúvida sobre como eu iria envelhecer não era só minha e, sim, de quase toda uma comunidade que sofre uma série de violações ao longo da vida e que pouco consegue se ver soprando 60 velinhas ou criando rugas por conta da falta de representatividade na terceira idade. Para muitas pessoas LGBTQIA+, principalmente pessoas trans, a luta ainda é para sobreviver. 

A partir de todas as entrevistas que fiz, é possível facilmente traçar uma linha do tempo com passado, presente e futuro. Entre infância, juventude e velhice. Para esta edição especial da Híbrida, vou trazer experiências individuais que documentei sobre esses corpos que resistem em diferentes partes de suas vidas. Talvez você também já tenha passado por algo semelhante ou nunca tenha imaginado que alguma história tenha sido escrita dessa forma. Talvez, mais ainda: depois de conhecê-las, até consiga refletir mais sobre o futuro que almeja. 

A INFÂNCIA

Martinha, travesti de Salvador, foi expulsa de casa aos 8 anos. Mas antes disso, já recebia ameaças da própria mãe. “Pelo meu trejeito, ela sempre dizia: ‘Se você der para ‘pederasta’, eu lhe mato”, relembrou durante uma entrevista concedida em 2018. 

Martinha se viu obrigada a se prostituir para sobreviver, algo infelizmente comum e compulsório para pessoas como ela. Anyky, mulher trans de Belo Horizonte, também. Esta tinha 12 anos quando foi abandonada pela família. Com todas as adversidades, as duas conseguiram viver até os 64 e 65 anos, respectivamente, e tornaram-se símbolo de resistência para a comunidade trans. 

Martinha (Foto: Reprodução)

Anyky Lima (Foto: Reprodução)

A rua também foi, por alguns dias, a moradia de Seu Franco, que entrevistei no ano passado. Nascido e criado em Porto Alegre, ele saiu de casa aos 13 anos por não se sentir aceito na família. Viveu sem um teto para dormir e passou fome. Aos 17, foi tomando consciência da sua identidade enquanto um homem trans, mas a luta pela autoaceitação foi longa.  

Para João Silvério Trevisan, jornalista e escritor, hoje com 80 anos, a saída encontrada para fugir da violência paterna foi entrar num seminário antes dos 10 anos. “Tive uma infância muito difícil e não gostaria de, em hipótese alguma, voltar para lá. Eu tinha muito medo do meu pai e eu não conseguia entender por que eu apanhava tanto. Só depois entendi que era porque eu não era o macho que ele esperava”, contou em entrevista de 2018.  

Seu Franco (Foto: Reprodução)

João Silvério Trevisan (Foto: Reprodução)

João Silvério Trevisan (Foto: Reprodução)

De diferentes maneiras, os quatro precisaram encontrar muito cedo e ainda na infância formas de sobreviver ou de fugir da realidade imposta – quando, na verdade, a principal preocupação àquela altura deveria ser brincar e estudar. Mas um próximo capítulo marcaria ainda mais a vida de pessoas LGBTQIA+ que encontrei ao longo da série.  

A JUVENTUDE

A Ditadura Militar perseguiu pessoas LGBTQIA+ no Brasil. A maioria dos entrevistados da série sofreram de alguma forma durante o período. Uma juventude/vida adulta pautada pela repressão e resistência, agora não mais apenas dentro de casa, mas também politicamente e nos espaços públicos. Relatos de abusos físicos, sexuais, perseguições e humilhações. Muitos perderam amigos, outros ainda carregam no corpo as marcas da violência sofrida. 

Martinha era uma delas. Disse ter sido presa mais de 200 vezes, pelo simples fato de estar vestida com roupa de mulher. Anyky afirmou, em 2018, que só não apanhou mais porque era branca. 

Policiais me tiravam da cela de madrugada para ter relação sexual comigo, enquanto batiam em uma travesti negra só pelo prazer

João Nery, primeiro entrevistado da série, que faleceu aos 68 anos, fez sua cirurgia de redesignação sexual em 1977, considerada crime no período militar. Havia se formado em Psicologia, mas perdeu o diploma em razão da troca de nome, feita por conta própria. Perdeu todo o currículo, mas não a vontade de lutar pelos seus direitos e da comunidade trans, se tornando uma das maiores referências nessa área. 

Se a Ditadura reprimiu muitas pessoas LGBTQIA+, a epidemia de HIV/Aids chegou para estigmatizar ainda mais nossa comunidade. A história da “peste gay” é conhecida. Ana Carolina Apocalypse, hoje com 66 anos, viu amigos morrerem aos montes naquela época e se assustou. 

“Isso pra mim foi um bloqueio total. Falei: ‘Nossa, eu tenho que parar [de me relacionar com pessoas do mesmo sexo], não quero morrer’”, disse, se referindo ao tempo em que ainda se apresentava pelo gênero masculino. Casou-se com uma mulher, teve uma filha e, somente aos 59 anos, esse bloqueio passou e Ana iniciou sua transição de gênero.  

João Nery (Foto: Reprodução)

João Nery (Foto: Reprodução)

Ana Carolina Apocalypse (Foto: Gab Meinberg)

Ana Carolina Apocalypse (Foto: Gab Meinberg)

Martinha contou algo que jamais vou me esquecer. Quando ela entrava em um ônibus, mandavam ela descer por acharem que era uma pessoa vivendo com HIV. “Gritavam: ‘Olha a Aids, olha a Aids’”, lembra. 

“O preconceito em 1982 e 1983 era surreal, diziam que era doença de gay, que não podia encostar em gay que pegava”, contou Luiza Gasparelly, drag queen carioca com mais de 40 anos de carreira e a protagonista do último episódio de LGBT+60

Quatro décadas se passaram desde o surgimento dos primeiros casos de HIV, mas a luta contra o estigma e a desinformação que afeta nossa comunidade ainda é grande. Luiza passou a viver com o vírus em 2004 e, ao falar abertamente sobre ser indetectável, tornou-se uma aliada na causa. Assim como Sissy Kelly, travesti mineira sexagénaria. Entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, passou a viver com HIV na Europa. Voltou para o Brasil e não só enfrentou a condição, garantindo seu direito aos medicamentos antirretrovirais, como fez dela mais uma bandeira.

“O HIV me salvou, me resgatou do fundo do poço, me ensinou a gostar e a cuidar mais de mim. O HIV não foi meu inimigo, é o meu amigo. É possível envelhecer e ter uma vida normal. O que não é possível é conviver com a sorofobia”, afirmou em depoimento durante seu aniversário de 65 anos, na ocupação que vivia, em 2022. Hoje, Sissy mora em uma Instituição de Longa Permanência. 

A VELHICE

Por muitas vezes fui perguntado se a solidão na velhice era o ponto em comum entre os entrevistados. De fato, é uma realidade para muitos e que não podemos ignorar – fruto do abandono familiar, social e de todo o preconceito e privações ao longo da vida. Mas, para além da solidão, existem outras inúmeras possibilidades de futuro. 

Pensando nisso, celebrar foi o verbo condutor dos episódios lançados este ano. Porque, apesar de toda luta e todos os obstáculos, esses são corpos que também celebram – cada um à sua maneira e por suas razões. Seja o fato de estar vivo ou viva, de casar, de ter ganhado uma nova identidade ou mesmo ter encontrado uma nova família na velhice. 

Márcio Guerra, jornalista mineiro de 63 anos, iniciou uma jornada para ampliar sua família com o marido Flávio. Um longo processo que fez Márcio se tornar pai na terceira idade. Há dois anos, o casal adotou Phellipe, hoje com 15 anos. Uma história que vem servindo de inspiração para outros casais: “Muita gente tem falado comigo assim: ‘Márcio, o exemplo de vocês está me motivando a repensar uma coisa que eu deixei lá pra trás por achar que eu não tinha mais idade’. Hoje, eu posso te dizer com tranquilidade que eu renasci”. 

Quem também se tornou referência para muitos jovens é o casal Angela e Wilmann. Juntas há quase 30 anos, elas se casaram oficialmente em 2020, aos 69 e 74 anos, respectivamente. Com direito a tapete vermelho, buquê e muita emoção. 

“É uma vitória muito grande pelo fato de sermos duas mulheres. Já sofremos muito preconceito, mas hoje a gente se sente muito feliz e realizada. Pode-se, sim, viver um grande amor”, compartilhou Angela antes de subir ao altar. 

Márcio Guerra e o marido Flávio Galone (Foto: Reprodução)

Angela e Wilmann (Foto: Reprodução)

Aliás, histórias de casais ilustram a segunda temporada de LGBT+60, lançada em 2019 e que conta ainda com Ana e Teresa; e com Dudu e Flávio. Os dois mostram como a violência ainda persegue pessoas LGBT+ até mesmo na terceira idade. Mas também como saíram mais fortalecidos enquanto casal depois da homofobia sofrida em 2017, por vizinhos.

Poderia ainda trazer falas da Yone, mulher lésbica ativista pelos direitos humanos que segue na luta aos seus quase 70 anos; de Denise Thayná, mulher preta trans e completamente realizada aos 74. Mas, para terminar, estão lembrados do Seu Franco? Ele realizou o sonho da mastectomia masculinizadora (remoção dos seios) aos 66 anos e, hoje, tem o sonho de estudar mais, para inspirar mais pessoas. 

Ana e Teresa (Foto: Reprodução)

Dudu e Flávio (Foto: Reprodução)

Dudu e Flávio (Foto: Reprodução)

As histórias que eu trouxe neste texto são recortes, mas recortes potentes. São vivências únicas que me serviram para olhar o passado e estar ciente do que eles enfrentaram e do legado deixado. Serviram para olhar o presente e me questionar sobre o que eu posso fazer, com os espaços que ocupo e meus privilégios, combatendo o etarismo e evitando que histórias tão cruéis se repitam – e sabemos que o caminho para isso ainda é longo. Por fim, elas serviram para eu olhar para o futuro e me fizeram entender hoje, aos 30 anos, que precisamos não só de direitos, mas também de esperança e representações. 

Certamente, não cresci – e nem você – assistindo casais idosos LGBTQIA+ se amando em novelas e filmes. Muito menos convivemos com eles nos domingos de família com a casa lotada. Com o perdão de ser generalista, eles não foram nossos avós. A ausência disso e deles no nosso ciclo de vida nos afeta, mas suas presenças nos torna mais sensíveis e conscientes. Eles estão aí, vamos ouvir e amparar mais nossos velhinhos e velhinhas? Em um futuro breve ou distante, com sorte, seremos nós.   

YURI FERNANDES

Yuri, apaixonado e formado em jornalismo pela UFJF, já passou pelas redações do Bom Dia Brasil, Jornal Nacional e do site EGO, além de escrever para o Projeto Colabora. Acredita que a profissão pode e deve ajudar no combate ao preconceito, seja ele qual for.

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