MC XUXÚ, COM MUITO ORGULHO
POR JOÃO KER
“E
u cresci ouvindo que as portas não se abririam. Hoje eu posso dizer de onde eu vim e pra onde eu vou”. A frase poderia muito bem ter sido extraída de uma das declarações que Mc Xuxú faz ao telefone durante sua entrevista com a Híbrida, numa tarde chuvosa de domingo em Juiz de Fora, Zona da Mata de Minas Gerais.
Mas não.
O verso é o primeiro canto que ela solta em “Senzala”, seu disco de estreia e também a realização de um sonho, onde o ponto comum dentre a mistura de ritmos ouvida é a crueza e a sinceridade com que ela escreve sobre sua vida.
Com tranquilidade e certeza do que está falando, ela observa: “Não é todo dia que uma travesti negra lança álbum”. E Xuxú está certa. Mesmo com a nova onda de artistas trans que têm surgido no Brasil, encabeçados por nomes como Linn da Quebrada, Liniker e Mulher Pepita, gravar um LP ainda é algo que demanda tempo, dedicação, foco, talento e, inevitavelmente, grana.
E se isso já é difícil para um artista iniciante que se enquadra em todos os padrões arcaicos pré-determinados pela indústria da música, imagine os obstáculos enfrentados por uma travesti negra, periférica e que foi expulsa de casa aos 17 anos por ter assumido sua identidade.
A jornada para que “Senzala” saísse do papel e tomasse forma foi árdua e, ao longo de um ano, pareceu até impossível em certos momentos. Primeiro, veio a tentativa de conseguir apoio através de alguma Lei de Incentivo.
“Disseram que o disco só falava sobre as mesmas coisas e não era rico musicalmente”, explica Xuxu, ao contar que seu pedido foi negado pelos editais nos quais ela inscreveu o projeto.
Na sequência, o financiamento coletivo pedido por ela não alcançou nem 50% do valor necessário para que o LP fosse feito. Mas, com garra, Xuxú fez concessões aqui, fechou outras parcerias ali e, finalmente, conseguiu lançar bem no Dia da Visibilidade Trans o seu début, produzido pelo DJ Poty.
O título, ela conta, veio da vida pelos morros e ruas de Juiz de Fora.
“Tudo o que eu canto é o que eu vivo. Minhas músicas são minha vivência e eu passo por isso: dor, sofrimento, luta. A vida de uma trans na periferia é uma senzala. As oportunidades de emprego sempre serão isso, se você conseguir: um telemarketing, um caixa de supermercado. É o que o sistema guarda para você. Eu sou uma pessoa libertária, mas não consigo me sentir livre”, desabafa.
De fato, dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a ANTRA, apontam que 90% das brasileiras transgêneras estão sujeitas a trabalhar na indústria do sexo. Do restante, apenas 4% têm chance de subirem na carreira. Na mesma moeda, como contamos aqui, o percentual de evasão escolar dessa população chega a até 82%, impulsionado principalmente pelo preconceito da família e do corpo docente.
Mas Xuxú conseguiu reverter esse quadro ao seu favor. Após ter saído de casa, ela conta que passou alguns anos pulando de lar em lar, até chegar à rua, onde ficou até os 24 anos.
“Ao sair de casa, eu finalmente me senti livre para ser quem eu realmente queria ser. Comecei a dar uma voltinha aqui e outra ali. Mas continuei escrevendo, tentando investir nessas três coisas: em mim, no sanguessuga que me assumiu – eu dava casa, comida e roupa lavada, porque ele me assumia – e na minha carreira”.
Essas experiências afetivas/financeiras, comuns às vidas de tantas pessoas trans, também estão explícitas em “Senzala”, principalmente na faixa “Kit Assume”, parceria com Mulher Pepita. “Na vida de uma trans existem dois tipos de cara / O que te assume e o que te paga”, ela canta.
Por telefone, Xuxú afirma que existem alguns truques para conseguir o kit assume: “Eu acho que não é difícil uma mulher trans ou uma travesti namorar, desde que ela tenha uma casa própria, faça uma boa comida, fume maconha e jogue videogame. Porque é disso que todo homem gosta. Não é nem uma questão de beleza, de dentro ou de fora”, ironiza, acrescentando que o kit paga, o cliente, também não é nenhum príncipe encantado. “Ele paga, te esconde e fala mal de você depois”, conclui.
FOTO: PEDRO SOARES
“SEMPRE FUI XUXÚ”
Xuxú começou a ser chamada assim ainda na infância por sua madrinha. O apelido se alastrou pela escola, pela rua em que morava e pelo restante da família, até que ficou praticamente impossível desvencilhar sua persona do apelido.
“Eu não consegui me desgrudar dele, ele não perdeu nem pro meu nome de registro”, lembra. “Também não sofri tanto na minha transição por isso, porque Xuxú não tem gênero, é simplesmente Xuxú. Meu nome é Karol Vieira, mas quem diz que eu consigo ser chamada assim?”, conta entre gargalhadas.
A carreira de Xuxu na cena artística começou cedo, na adolescência, quando ela participou de uma espécie de girl band, a Mina Sapeca, que se apresentava com números de dança por Juiz de Fora. Depois, veio o coletivo Posse Zumbi dos Palmares – PZP, onde ela descobriu a força histórica do rap.
“Inclusive, é daí que vem a minha militância. Se minha música é assim, é porque aprendi com o hip hop que sua voz é uma arma, o microfone é uma arma, e você pode usá-la para fugir do que o sistema nos impõe”, enfatiza.
O Mc, adotado posteriormente, ela conta que veio após um processo de amadurecimento do que ela idealizava para si e para a carreira. “Eu queria algo mais próximo de mim em termos de sonoridade e escolhi o funk, porque foi o que eu ouvi mais quando crescia. Agora travesti, negra e da periferia, escolho cantar o quê? Aquilo que é visto como crime”, ri frente à ironia do “combo” de estigmas. “Mas usei o Mc porque quis comprar essa briga. Já que é algo pesado, deixa que eu pego esse Mc pra mim também”, fala com seriedade.
Comprar brigas, por sinal, é algo que não amedronta Xuxú.
Ela comprou uma para assumir seu verdadeiro eu e, graças às consequências desse ato, acabou tendo que comprar mais um punhado de outras brigas até se estabelecer como a artista que é hoje, aos 29 anos. Duas delas, por sinal, vieram quando ainda trabalhava na rua.
Mas antes de chegar lá, é preciso entender um episódio no mínimo curioso sobre a trajetória pessoal de Mc Xuxú. Quando ainda era adolescente, sem ter tomado hormônio algum para a sua transição, ela começou a desenvolver um dos seios de forma natural, quase que como um fenômeno psicológico que seu corpo tentava externalizar.
“Aí que a gente percebe o tanto que precisa ser falado sobre a transexualidade. Eu não tomei remédio nenhum e o peito cresceu! Todo mundo fico chocado, inclusive eu, e ninguém sabia nada. Eu só percebia que tava muito feminina. As coisas erradas estavam acontecendo e isso não foi falado. Eu só fui conhecer depois que injetei o hormônio e o outro cresceu”, recorda.
E aí, na relação com os seios, entra uma das brigas que ajudaram a construir a autoconfiança que ela tem hoje.
“Muita mana pergunta por que eu não coloco prótese. Mas eu sofri muito na mão das outras travestis. Quando elas começam a se prostituir, elas querem colocar prótese, pra também poder jogar isso na cara das outras manas. Eu fui pressionada por muito tempo e, por birra minha, tomei ranço [de colocar prótese]. Vou colocar só quando eu for muito rica e com outras prioridades resolvidas”.
E uma das prioridades era e continua sendo a sua carreira artística. Em 2009, durante sua temporada na rua, ela juntou o dinheiro que as outras meninas usavam para suas próteses e lançou a sua primeira investida no mundo musical, “Pantera cor-de-rosa”.
No mesmo período, ela comprou outra briga quando andava com uma amiga e ambas foram assediadas por um homem, numa história bem similar à que ela conta no clipe de “Desabafo”. A diferença é que ela acabou levando três facadas até conseguir desarmar seu agressor e contar com o auxílio da polícia.
O episódio não deixou sequelas graves, mas Xuxú comenta que o assédio é algo rotineiro na vida de uma travesti.
“Eu fico muito triste quando tô no mercado ou no banco e alguém chega perto de mim perguntando se eu faço programa. As pessoas têm que tirar da cabeça que só porque a mulher é trans ela também é automaticamente prostituta”, enfatiza.
FOTO: PEDRO SOARES
XUXÚ COM MUITO ORGULHO
Se o caminho trilhado por Mc Xuxú até aqui não tem sido fácil, a recompensa tem valido a pena. Além de já ter se apresentado na TV e coletar milhões de visualizações no Youtube, seu disco “Senzala” chega como a cristalização de um sonho que também é um sopro de esperança para outras mulheres trans.
Tanto que, além de Pepita, o álbum também traz a participação de Danny Bond, rapper travesti que, de acordo com Xuxú, ajuda a formar “a Santíssima Trindade” do LP. E há também a presença de artistas que, assim como ela, também vêm do interior de Minas Gerais, como Ingoma, Caetano Brasil e RT Mallone.
“Meu trabalho é nacional e eu queria levar artistas locais daqui, de morros perto do meu, para ocuparem os mesmos espaços”, explica.
Mas esses não são os únicos feitos que ela tem conquistado. A realização pessoal de Xuxú vem ao ver que sua arte é utilizada para fortalecer outras pessoas que se identificam com a sua trajetória.
Um dos exemplos é o grupo de crianças para as quais ela dá aula de dança no bairro de Santa Cândia, zona periférica de Juiz de Fora. Ali, ela recebe entre 20 e 40 alunos em encontros semanais.
Outro ponto importante em sua carreira foi o show beneficente que ela realizou no presídio feminino da cidade, bem no Dia Internacional da Mulher.
“Eu queria fazer uma ação para as pessoas com as quais me identifico. Foi muito bom e muito fortalecedor. Um momento único, sem explicação. Minha intenção era levar força, esperança e fé para elas, acima de tudo. No fim das contas, fui eu que saí de lá muito mais fortalecida”, lembra.
Enquanto outras artistas tentam esconder as falhas e dificuldades do passado, Xuxú bate no peito, as assume e simultaneamente as usa para lhe dar mais combustível na luta diária contra uma sociedade que insiste em lhe dizer que ela não é bem-vinda.
Se os editais para os quais ela se inscreveu afirmaram que o disco “não reflete a sociedade”, é apenas porque essas mesmas pessoas ainda não tiveram a inteligência de olhar ao redor. Se olhassem, veriam que, às margens dessa mesma sociedade, uma nova geração de pessoas cientes de seu valor floresce e toma o que lhes é de direito.
E Xuxú sabe bem do tanto que ainda precisará lutar.
“Eu tenho orgulho de ser eu, porque ser eu não é fácil. E quem consegue é uma pessoa guerreira e babadeira”.
Figurino: Mc Xuxú veste body e jaqueta LED
Fotos: Pedro Soares
Agradecimentos: Maquinaria
JOÃO KER
Mineiro de nascença e carioca de alma, João é formado em jornalismo pela UFRJ e já passou pelas redações do Canal Futura, Site Heloisa Tolipan, Sony e Yahoo antes de realizar seu sonho com a Híbrida. Hoje, se divide entre a revista e o mundo publicitário na Pixelfordinner.