UMA SEGUNDA CHANCE PARA O QUEERMUSEU
POR JOÃO KER
Em setembro de 2017, a sociedade brasileira voltou a encarar uma realidade que, para muitos, não seria vista novamente nem tão cedo no país: a censura, novamente apoiada por discursos vazios e utilizada como cortina de fumaça para problemas maiores.
Mesmo 30 anos após o fim da Ditadura Militar no Brasil, a proibição baseada em argumentos morais fez com que a“Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, com suas 264 obras de 85 artistas sobre a temática LGBT+, fosse interrompida prematuramente pelo Santander Cultural de Porto Alegre, quase um mês antes do seu final previsto.
Os argumentos, em muito impulsionados por grupos conservadores como o Movimento Brasil Livre (MBL) na esfera online, foram os de que a exposição fazia apologia à pedofilia e à zoofilia, além de profanar as santidades cristãs. Mas o ódio ultrapassou a internet e tomou a forma de protestos inflamados, nos mesmos moldes dos que atacaram recentemente a filósofa Judith Butler em sua recente passagem pelo país.
Em frente ao Santander Cultural, manifestantes vestidos com bandeiras do Brasil e levantando cartazes de “Pedofilia não é arte” bradavam pelo fim da exposição; do outro lado, jovens com a boca tampada por fita adesiva seguravam placas de “Falso moralismo” e “Abaixo a censura”.
Duas semanas após o encerramento prematuro da “Queermuseu”, chegou o parecer legal do Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul (MPF/RS), que após uma avaliação do conteúdo exposto concluiu que as alegações eram falsas e recomendou a reabertura imediata da exposição.
O Santander, com seu privilégio de empresa privada, recusou a recomendação e, em janeiro deste ano, firmou um acordo com a promotoria no qual assumiu o compromisso de realizar outras duas exposições sobre diversidade, intolerância e feminismo, sob o risco de pagar R$800 mil caso não cumpra a nova “recomendação”.
Mas – mesmo depois de receber (novamente) a permissão legal para que seja realizada-, a “Queermuseu” continua com o futuro incerto. Após uma tentativa falha de ir para o Museu de Arte do Rio (MAR), que resultou em novo episódio de censura pelo prefeito-bispo Marcelo Crivella (PRB), a nova aposta é uma parceria com a plataforma de financiamento coletivo Benfeitoria, para que a exposição finalmente entre em cartaz no Parque Lage, no Rio de Janeiro.
“A negociação para que a exposição fosse para o MAR já estava muito avançada, tinha até data de abertura, inclusive porque houve uma manifestação de interesse do próprio museu. Foi algo espontâneo, que partiu deles, baseado no entendimento de que a exposição seria muito importante. Eles se manifestaram já na segunda semana após o fechamento”, lembra Gaudêncio Fidélis, curador responsável pela “Queermuseu”, em entrevista exclusiva à Híbrida.
Mas o que poderia ter sido uma oportunidade imensurável de provar o caráter vanguardista e democrático do museu acabou tornando-se um show da fé de horrores, graças ao privilégio que Crivella, na posição de Prefeito do Rio, tem no Conselho do MAR.
Além de vetar e pressionar os votantes contra a exposição, Crivella, não satisfeito, ainda publicou em suas redes sociais um vídeo amador, no qual aparece falando em tom cínico e jocoso: “Saiu no jornal que [a exposição] ia ser no MAR. Só se for no fundo do mar”.
“O vídeo é a manifestação pública e infeliz do Prefeito, por ser moralmente condenatória sem que ele tenha conhecimento do que seja a exposição. Eu a entendo como uma narrativa de criminalização da exposição e da produção artística, a partir dessa perspectiva moral e até religiosa”, comenta Gaudêncio.
Foi o absurdo desse mesmo vídeo que despertou no pessoal da Benfeitoria a vontade de usar sua experiência com o financiamento coletivo para fazer um manifesto político e cultural à favor da “Queermuseu”, principalmente após o interesse público do Parque Lage na exposição.
“Até então, era um assunto polêmico, mas num quadro de ‘normalidade’. O Santander, como empresa privada, viu um risco de perder parte dos seus clientes e criou essa situação delicada. Mas o vídeo do Crivella excede qualquer nível de bom senso e achamos importante nos posicionarmos contra esse questão de censura, principalmente quando ele brinca dizendo que ‘representa o público carioca’”, explica Murilo Farah, CEO e um dos fundadores da Benfeitoria.
Ele conta que as negociações com o Parque Lage começaram logo no dia seguinte ao vídeo de Crivella e que, apenas através do financiamento coletivo, é possível ter uma ideia “se o público carioca não quer mesmo essa exposição”.
A meta e a produção, ele afirma, são as maiores já traçadas pela plataforma que, até o fechamento desse texto, já havia atingido 16% dos R$690 mil pedidos para bancar a exposição. “Para mim, o mais marcante é dar legitimidade a isso através do coletivo. É algo que vai até além da exposição, atinge um campo muito maior”, acrescenta, aludindo à simbologia por trás do ato.
Gaudêncio, por sua vez, faz eco às observações de Murilo. Em novembro, o curador e historiador de arte compareceu a uma audiência pública, no Senado Federal, para se defender das acusações de Magno Malta (PR) na CPI dos Maus-Tratos.
“É preciso entender que essas acusações falsas atingem em cheio à comunidade LGBT. Historicamente, a gente sabe que sempre que há criminalização da comunidade LGBT, ela vem de narrativas que atravessam a sexualidade. Aquilo que é considerado pela sociedade como ‘imoral’. Esse é um ataque à exposição e às questões que ela levanta, como identidade de gênero e diferença”, pontua.
De fato, uma vez que o papel principal da arte é questionar padrões estabelecidos e provocar o pensamento crítico, as obras que compõem a “Queermuseu” trazem como pauta não só o gênero, mas também uma subversão de conceitos como beleza, consumo, religião, colonização, gênero, diversidade, as especificidades regionais do Brasil e por aí vai. Sem falar na amplitude de estilos e movimentos artísticos representados por nomes como Adriana Varejão, Lygia Clark, Alfredo Volpi, Cândido Portinari, Guignard, Guto Lacaz, Nino Cais e Carla Chaim, só para citar alguns.
Gaudêncio afirma que a tentativa de censura à exposição é um efeito colateral do crescimento do fundamentalismo na sociedade brasileira, algo que vem se desenvolvendo desde os anos 1990.
“Estamos em pleno século XXI. É inconcebível um episódio dessa ordem”, observa. Não que a censura em si não tenha permeado o movimento artístico antes dos episódios do “Queermuseu” e, paralelamente, do coreógrafo Wagner Schwartz. Apenas na última década, artistas como Márcia X e Nan Goldin tiveram seus trabalhos vetados após o anúncio de suas respectivas exposições.
Mas Gaudêncio reafirma que é a primeira vez que a censura toma tamanha dimensão, principalmente por se tratar de uma mostra com tanta abrangência e diversidade de estilos artísticos.
[A ‘Queermuseu’] conseguiu reabrir um debate que até então não existia de forma livre e irrestrita na sociedade, em respeito ao gênero e à sexualidade
Entretanto, ele se mantém positivo quanto ao resultado desse episódio: “Precisamos entender que há uma onda obscurantista muito forte, mas há uma reação proporcional extraordinária. Existe uma parcela da sociedade brasileira disposta a viabilizar essa exposição, talvez até sem interesse de vê-la, mas a favor de sua viabilização”.
Até o dia de seu encerramento, a “Queermuseu” foi visitada por 27.000 pessoas em sua totalidade, no exato contexto em que foi pensada.
E, se por um lado há líderes conservadores como os militantes do MBL tentando censurar a arte, por outro há um total de 70.000 brasileiros que aderiram ao abaixo-assinado emitido em favor da exposição, durante o ápice da batalha por sua viabilização. Isso sem citar o apoio da classe artística mundial, que demonstrou em peso o seu amparo à questão, com museus de Nova York, Paris e Milão criticando publicamente a ação do Santander.
“Essa exposição tem um valor extraordinário para a arte e para a cultura brasileiras. Ela conseguiu reabrir um debate que até então não existia de forma livre e irrestrita na sociedade, dizendo respeito ao gênero e à sexualidade. Para o bem ou para o mal, isso não havia sido feito ainda”, pontua Gaudêncio.
Em comunicado oficial, o diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Fabio Szwarcwald, ainda afirma: “Não podemos ficar de braços cruzados diante da censura. A ideia é promover uma ampla discussão sobre a diversidade, através de debates públicos, incluindo as delicadas e polêmicas questões de gênero que resultaram no cancelamento da mostra. A campanha é um convite aberto a todos que queiram se posicionar contra a censura e a intolerância”.
Clique aqui para contribuir com o financiamento coletivo do Queermuseu.
Nota do editor: para entender melhor como grupos como o MBL se organizam para incitar o ódio e direcionar ataques online, leia a matéria “Não é mera coincidência”, da nossa 1ª edição.
JOÃO KER
Mineiro de nascença e carioca de alma, João é formado em jornalismo pela UFRJ e já passou pelas redações do Canal Futura, Site Heloisa Tolipan, Sony e Yahoo antes de realizar seu sonho com a Híbrida. Hoje, se divide entre a revista e o mundo publicitário na Pixelfordinner.