21 nov 2024

A VIDA LGBT+ NA PERIFERIA DO RIO

DA MARÉ À CDD, COMO LGBTS NEGRXS SOBREVIVEM À VIOLÊNCIA ESTRUTURAL DE COR E DE GÊNERO NA CIDADE MARAVILHOSA

“L
GBTs da favela não usufruem dos avanços. Nós ainda estamos lutando para sobreviver”. A declaração vem da ativista transexual negra Gilmara Cunha, quando questionada sobre a diferença entre ser LGBT no “asfalto” da Zona Sul do Rio de Janeiro e na periferia da capital fluminense.

Gilmara está à frente do Grupo Conexão G, a primeira ONG brasileira comprometida com a causa LGBT em favelas. Criado em 2006, no complexo da Maré, o grupo atualmente é organizado por cinco ativistas da região e estrutura-se em três pilares: combate à violência, educação e promoção da saúde para LGBTS.

Gilmara Cunha
Gilmara Cunha

Em seus quase 12 anos de atividades, o Conexão G já realizou um cineclube com mostras de filmes voltados para a comunidade; uma feira de saúde; seminários regulares sobre DSTs; atendimento a LGBTs em situação de rua; rodas de conversa para debater afirmação de gênero; e cursos de formação na área de informática.

Em 2015, o trabalho à frente do Conexão G rendeu a Gilmara o título de primeira transexual a receber a Medalha Tiradentes, uma honraria concedida pelo Governo do Rio de Janeiro a pessoas que tenham prestado serviços relevantes a causas públicas do Estado. Ainda assim, isso não impede a militante de denunciar o descaso do poder público com a população periférica, especialmente a LGBT.

Os políticos dialogam muito com a classe média, mas pouco com a favela

– Gilmara Cunha

“No asfalto, eles podem denunciar preconceito, violência e agressão pela polícia, sabendo que existe uma chance de punição. Aqui, a realidade é outra. Estamos em uma terra sem lei”, ela diz, acrescentando que nem hoje, às vésperas das eleições, o tratamento muda: “Eles dialogam muito com a classe média, mas pouco com a favela”.  

Em 2017, a Maré foi cenário de 108 eventos cravejados por projéteis, resultando no registro de 42 mortes. Em média, isso significa que a cada 9 dias morre uma pessoa na Maré em decorrência de confrontos armados, segundo informações do Boletim de Segurança Pública da Maré de 2017.

E, assim como nas demais regiões do Brasil, esses mesmos dados também mostram que quem mais morre na Maré é a juventude negra. Por lá, o grupo Conexão G de Cidadania em Favelas já organizou seis Paradas LGBT, que chegam a reunir cerca de 30 mil pessoas por edição, configurando o maior evento de toda a comunidade e encerrando a Semana da Diversidade Sexual da Maré, que traz uma série de atividades para a região e acontece todo primeiro domingo de setembro.

Foto: Divulgação

10 ANOS DO MOVIMENTO DE LÉSBICAS NA MARÉ

Em 2018, é comemorada uma década de luta e resistência lésbica na Maré.  Por isso, a Coletiva Resistência Les/bi de Favelas publicou o “10 anos de luta e resistência lésbica da Maré: reflexões de sapatões faveladas”, durante o Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais – SENALESBI.  A intenção é registrar a história das mulheres lésbicas e pretas daquela região.

Dayana Gusmão, integrante do coletivo, destaca a importância de conhecer nossa história através desses registros e frisa o respeito pelas mulheres que  as antecederam: “É reconfortante saber que existe toda uma vanguarda de lésbicas que botaram a cara a tapa para lutar por direitos em um território completamente hostil à nossa existência”

A Coletiva Resistência Lesbi de Favelas nasceu em agosto de 2017, composta por sete lésbicas da Maré. O grupo surgiu a partir das iniciativas do Grupo Conexão G e, posteriormente, ganhou autonomia como uma coletiva independente.  Atualmente, é composto por Dayana, Caroline Caldas, Kamilla Valentim, Ana Paula Teixeira, Gleice Cardoso e Joana Alves.

“A atuação de nossa coletiva é sempre em rede com as ONGs locais e com coletivas e grupos de mulheres lésbicas de outros territórios favelados. Apesar de, no momento, contarmos apenas com mulheres da Maré, nosso anseio é que tenhamos a representação de todos os territórios favelados do RJ formando uma grande coletiva com ampla envergadura para articular as lutas por direitos das mulheres lésbicas” comenta Dayana.

Para Kamilla,  uma mulher lésbica que passa por uma situação de lesbofobia não consegue, dentro da favela, ligar para a polícia e denunciar seu agressor, por isso “raça e classe são duas categorias que mudam toda a vivência de uma sapatão de favela”.

Valentim ainda destaca que, na favela, o termo lésbica é estranho e quase não usado. Ao invés, são chamadas de “sapatão”: “Obviamente a maioria de nós já usa esse termo como sinônimo de resistência mesmo, mas sem dúvida há maior entendimento aqui quando se diz ‘mulher sapatão’ do que quando dizemos “mulher lésbica”.

Foto: Reprodução

“SER UM JOVEM NEGRO E GAY DA FAVELA É RESISTÊNCIA”

É na Vila Pinheiros, uma das 17 favelas que compõem o complexo da Maré, onde mora o jovem Arlison Rosa, de 18 anos. Para ele, “ser um jovem negro e gay da favela é resistência e é ter que sempre mostrar força”. Ator no Entre Lugares, um projeto de teatro e de memória territorial da comunidade, ele ainda destaca que “resistência e determinação resumem bem essa vivência”.

“Por ser negro, gay e da favela, minha mãe sempre fala que eu tenho que me cuidar duas vezes mais. E eu sei disso”, ele afirma. O medo da morte é uma constante na vida de Arlison, seja por ser um jovem negro, por ser gay ou por todas suas identidades juntas.  Apesar de tudo isso, ele reconhece a Maré como o seu lugar e diz não ter vontade se sair dali.

Os dados disponíveis corroboram para o fato de que a violência tem gênero, raça e sexualidade. Informações do Atlas da Violência de 2017 revelam o motivo desse medo de Arlison, já que entre mais de 60 mil vítimas de homicídios no Brasil, pelo menos 48% eram homens jovens, negros, com idade entre 15 e 29 anos, pobres e moradores de periferias.

arlisson2

Entre 2005 e 2015 houve um crescimento de 18% nos homicídios contra negros, enquanto entre os não-negros vivenciaram uma diminuição de 12% no mesmo período, segundo  a publicação elaborada pelo Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança.

O número de assassinato de LGBTs não fica muito atrás. A cada 19 horas um LGBT morre de forma violenta no Brasil, segundo informações do Grupo Gay da Bahia. Em 2017, 445 LGBT+  morreram no Brasil, vítimas da LGBTfobia, sendo 387 assassinatos e 58 suicídios. Foi um aumento de 30% em relação a 2016, quando registraram-se 343 mortes.

Foto: Reprodução

MARIELLE, PRESENTE!

A  Maré foi o território da infância e juventude de Marielle Franco, a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro, executada no dia 14 de março junto com o motorista Anderson Gomes. Mulher negra, LGBT e cria dali, já somam-se mais de cinco meses sem Marielle.

A polícia civil ainda não tem a resposta sobre sua morte e divulga muito pouco sobre suas linhas de investigação à imprensa. No início do mês, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, ofereceu que a Polícia Federal (PF) assuma a investigação da morte de Marielle, no Rio de Janeiro, que está em meio a uma intervenção federal já com prazo de encerramento anunciado. A atuação da PF depende de um pedido formal do Gabinete de Intervenção, mas o presidente Michel Temer já sinalizou que autoriza atuação da PF no caso.

Durante seu curto mandato, Marielle lutou pelos direitos da população LGBT, das mulheres e das pessoas negras e pobres, prestando ainda uma atenção especial à população da Maré, onde era frequentemente vista denunciando abusos de força por parte da Polícia do Rio e participando de debates sobre orientação sexual e identidades de gênero.

Segundo Gilmara, “a morte de Marielle mexeu com toda a comunidade da Maré, não só com os LGBTs. Ela estava na linha de frente de uma política feita por políticos brancos e héteros”. Já Dayana frisa como a vereadora foi muito importante para a organização de mulheres lésbicas do Rio e sua morte foi “uma perda incalculável para as lutas que ela tocava” e “o silenciamento de uma mulher preta, favelada lésbica que ousou orquestrar os ventos para mover as estruturas”.

“Sua perda vai doer pra sempre, mas a gente segue por ela e por tantas outras mulheres lésbicas executadas e por nossas manas vivas para que possam de fato viver com dignidade”, disse ela.

Gilmara Cunha na Marcha pela Marielle na Maré - Reprodução Facebook
Gilmara Cunha na Marcha pela Marielle na Maré - Reprodução Facebook

Na data que marcou os 150 dias do assassinato de Marielle Franco, a Câmara do Rio aprovou os cinco projetos que a deputada havia protocolado antes de sua execução. Três projetos foram aprovados por unanimidade e dois projetos sofreram emendas para a retirada da palavra “gênero” dos textos.

Os projetos aprovados são: Espaço Coruja (PL 17/2017), que cria o programa de Espaço Infantil Noturno e prevê o uso de creches e outras estruturas infantis da rede municipal; Assédio não é passageiro (PL 417/2017), uma “campanha permanente de conscientização e enfrentamento ao assédio e à violência sexual” no Rio de Janeiro; Dossiê Mulher Carioca (PL 555/2017), com estatísticas periódicas sobre as mulheres atendidas por políticas públicas no município; Efetivação das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (PL 515/2017), com o objetivo de garantir que adolescentes entre 14 e 21 anos condenados a tais medidas por terem cometido atos infracionais menos graves (sem violência) consigam efetivamente cumpri-las; e o Dia de Thereza de Benguela no Dia da Mulher Negra (PL 103/2017), instituindo o 25 de julho no calendário oficial da cidade.

Além disso, também foi aprovada a mudança do nome da tribuna da Casa para Marielle Franco.

FOTO: Divulgação

FAVELA GAY NOS CINEMAS

Lançado em 2014, o filme “Favela Gay”, dirigido por Rodrigo Felha e coproduzido pelo Canal Brasil, mostra como é a vida da comunidade LGBT nas favelas cariocas, com depoimentos de jovens que, assim como Arlisson, precisam enfrentar diariamente as questões intrínsecas à pluralidade de suas identidades.

Apesar de ser heterossexual, Felha cresceu na Cidade de Deus e sempre buscou trazer para o cinema essa visibilidade de pessoas e territórios. Ele conta que, por não saber como era a vivência de uma pessoa LGBT, usou a curiosidade como parte da sua estratégia de entrevista durante o documentário.

No longa, que acompanha simultaneamente vários personagens, um de cada favela carioca, temas como LGBTfobia, mercado de trabalho e aceitação por parte da família são contados e atravessados por outros fatores como território, tráfico, religião e vizinhança.

Apesar dos obstáculos, os entrevistados mostram como, através da política, dos estudos, do trabalho e dança, conseguiram reinventar seu lugar em uma sociedade que os oprime o tempo todo.

Foto do filme Favela Gay (Divulgação)
Foto do filme Favela Gay (Divulgação)

Segundo Felha, seu objetivo era mostrar como LGBTs existem em todos os lugares e, através do filme, direcionar os relatos para a parte positiva dessas vivências: “Eu não quis focar na diferença entre ser LGBT no asfalto e na periferia, mas sim mostrar que pessoas LGBTs da favela são normais, batalham e riem, independente do território. Eu queria quebrar esse estigma da favela sendo apenas um local de violência ou de uso de drogas. Isso existe, mas eu preferi dar visibilidade à outra parte”.

O longa acabou ganhando o prêmio de Melhor Documentário pelo Júri Popular no Festival do Rio, em 2014, com uma ótima recepção pela crítica. Tanto que o diretor irá lançar em breve, pelo Canal Brasil, uma série de 10 episódios mostrando a vivência de LGBTs em 5 estados brasileiros.

Com a invisibilização de seus corpos, sexualidades e gêneros, além da falta de acesso a políticas públicas, LGBTs das favelas ainda lutam prioritariamente pelo direito à vida. O descaso do poder público com o território e a população faz com que a morte de jovens pretxs bata recordes ano após ano. No entanto, em meio às dificuldades, iniciativas da sociedade civil e representações independentes na mídia buscam atuar na conscientização, acesso e, por que não, celebração do que significa ser LGBT em territórios de favela e periféricos.

VITÓRIA RÉGIA

VITÓRIA RÉGIA

Vitória é uma mulher negra, bissexual e estudante de Jornalismo da UFRJ. Seus interesses em comunicação sempre envolveram recortes de gênero, raça, classe e sexualidade. Atualmente é uma das editoras da Capitolina e integra a revista Gênero e Número.

SE LIGA NELA: FACEBOOKINSTAGRAM

Pular para o conteúdo