29 mar 2024

REPRESENTATIVIDADE: DE MALHAÇÃO AO HORÁRIO NOBRE

A DISPARIDADE E O CRESCIMENTO DE PERSONAGENS LGBTs NA TELEDRAMATURGIA BRASILEIRA

Q
Quem, voltando da escola ou se preparando para a noite, não parou em frente à televisão para exercitar as emoções assistindo “Malhação”? No ar há mais de 25 anos, a novela teen tem provocado o público a pensar com cada temporada nova. Sim, pensar. Diferente da trama adolescente que estreou em 1995, as últimas três temporadas do folhetim têm discutido abertamente temas como racismo, machismo, meritocracia, assédio sexual e homofobia, falando horizontalmente com o público jovem da Rede Globo.

Com cerca de 15 milhões de espectadores, segundo dados da Kantar Ibope, a novela das 17h quer fugir do estereótipo de drama adolescente. “Há pelo menos três temporadas, ‘Malhação’ não é só uma história de amor entre mocinho e mocinha. É uma trama muito mais relevante, em que temos tocado em temas muito mais interessantes para o público”, conta Silvio de Abreu, diretor de teledramaturgia diária da TV Globo, à Híbrida.

Sem o receio da rejeição do público para com a dramaturgia apresentada, Silvio conta que a história tem mirado em outro lugar: o discurso. “Tocamos em todos os assuntos possíveis. Falamos de uma maneira mais delicada e para um público mais jovem. Sem os aspectos de violência de uma novela das 21h, mas com uma vontade de, exatamente, formar esse público. Isso abriu muitas possibilidades dentro da trama.”

Diretor de teledramaturgia diária da Rede Globo, Sílvio de Abreu frisa que "Malhação" não é "só uma históia de mocinho e mocinha" (Foto: Divulgação)
Diretor de teledramaturgia diária da Rede Globo, Sílvio de Abreu frisa que "Malhação" não é "só uma históia de mocinho e mocinha" (Foto: Divulgação)

Esses espectadores jovens permitem uma discussão que é por diversas vezes mais orgânica do que aquela conseguida pela emissora com a audiência adulta. Tanto que, nos últimos anos, personagens originalmente LGBT+ veem suas narrativas alteradas ao longo dos capítulos pela resistência e rejeição do público. Mas como seriam as história desses personagens com a torcida da audiência?

Foto: Divulgação

#Santiel

Atentos às minorias e causas sociais que ditam o discurso e o zeitgeist brasileiro, os personagens têm aparecido mais engajados e empoderados a cada nova temporada de “Malhação”. Em Vidas Brasileiras, a trama de 2018, Santiago (Giovanni Dupico) e Michael (Pedro Vinícius) formaram um casal gay que driblava dúvidas e certezas da adolescência, incluindo suas questões sexuais, enquanto milhares de jovens e adolescentes torciam nas redes sociais.

“O Michael viveu uma história que eu considero muito importante e necessária. Ele estava ali para ser muito mais do que esperavam que ele pudesse ser. Personagens LGBTQI+ normalmente não vão muito além da própria sexualidade, o que é muito triste porque ninguém é uma coisa só”, conta Pedro, em entrevista à Revista Híbrida.

Apaixonado por um jogador de futebol que reprimia sua sexualidade por conta do meio em que vivia, Michael precisou se esforçar para ganhar um selinho. O beijo, que encerrou o capítulo do dia, foi esperado por dias e inundou as redes sociais com mensagens positivas e fãs shippando o casal. Mas, diferente dos casais heterossexuais da novela, as demonstrações de carinho não foram constantes na tela e os beijos pararam por ali.

Pedro Vinícius deu vida à Michael em "Malhação - Vidas Brasileiras" (Foto: Divulgação)
Pedro Vinícius deu vida à Michael em "Malhação - Vidas Brasileiras" (Foto: Divulgação)

“Acredito que, se há uma contagem para os beijos gays, definitivamente há algo de errado. Não é possível contar os beijos entre homens e mulheres que acontecem durante um ano inteiro, mas os beijos gays, em geral, cabem confortavelmente em dez dedos — se pegarmos obras diferentes, claro. Sim, eu acredito que faltam mais beijos gays na teledramaturgia brasileira, em geral”, avalia o ator.

De fato, basta observar o barulho feito pela mídia, pela emissora e pelo público toda vez que um novo personagem LGBT surge na TV (um beijo, então!) para se certificar de que contar essas histórias continua sendo um evento – para o bem ou para o mal. Ainda assim, Pedro é confiante: “Confesso que ficaria muitíssimo feliz se, no final de 2019, eu olhasse para o ano como um todo e pensasse: ‘Uau, eu não consigo nem contar quantos beijos LGBTs aconteceram [na TV] esse ano’. Ainda dá tempo”.

No caso de “Malhação”, que teve seu primeiro personagem gay ainda em 2000, com Erik Marmo no papel, a novela não tem apenas jogado luz nessas narrativas como também tem apontado para um importante lugar de empatia e respeito ao próximo em suas histórias. “A homossexualidade, a discriminação e outras dores, que sondavam outras épocas, mudaram e têm de ser absorvidas. ‘Malhação’ faz esta justa adaptação”, observa Lilian Fontes, doutora em comunicação e cultura pela UFRJ.

Em 2000, Erik Marmo viveu o primeiro personagem abertamente gay de "Malhação" (Foto: Divulgação)
Em 2000, Erik Marmo viveu o primeiro personagem abertamente gay de "Malhação" (Foto: Divulgação)

Foto: Reprodução

O EMBATE DAS 21H

Às 21h, os espectadores da Rede Globo são adultos – em sua maioria, com mais de 35 anos – e, aparentemente, menos abertos. Em “O Outro Lado do Paraíso” (2017), o casal Samuel (Eriberto Leão) e Cido (Rafael Zulu) enfrentou resistência do público. A resposta dos autores foi reescrever um enredo para Samuel, que reafirmou seu relacionamento com a então esposa até ter uma filha biológica por pressão da mãe e do que pensaria a sociedade, caso se assumisse.

“Pessoas gostaram quando ele teve uma filha com a Suzy (Ellen Roche) e descobriu o amor paterno. Acharam que o personagem passaria a ter uma relação verdadeira com ela”, disse o ator à época, para o jornal O Globo.

Em “Segundo Sol” (2018), a rejeição aconteceu com Selma (Carol Fanzu) e Maura (Nanda Costa). Uma lésbica e a outra bissexual, elas começaram a se relacionar até o autor, João Emanuel Carneiro, ouvir os reclames dos espectadores e introduzir Ionan (Armando Babaioff) para conquistar Selma. Houve até o ensaio de um trisal, com direito a doação de sêmen para que uma delas gerasse uma criança. Ainda assim, muita gente entendeu a história como um desserviço para a comunidade LGBT+ ao sugerir que, relacionando-se com um homem, Selma não seria mais lésbica.

Selma (Carol Fanzu) e Maura (Nanda Costa) em "Segundo Sol" (Foto: Reprodução)
Selma (Carol Fanzu) e Maura (Nanda Costa) em "Segundo Sol" (Foto: Reprodução)

O público de “Babilônia” (2015), outra trama das 21h, conseguiu rejeitar dois casais LGBT+ em uma só história. No primeiro capítulo, Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg) foram apresentadas como um casal lésbico que estava junto há 40 anos. Bem-sucedidas e em união estável, um único selinho entre elas foi tão rejeitado que a dupla mal se tocou no decorrer da novela.

Em outro núcleo da trama, Carlos Alberto (Marcos Pasquim) se descobriria gay e viveria um romance com Ivan (Marcello Melo Jr.). Só a repercussão da história na imprensa, unida à rejeição contra o beijo de Estela e Teresa, fez o arco do personagem mudar. Carlos terminou frustrado e sozinho, sem nunca explorar sua homossexualidade. Já Ivan, abertamente gay, foi atropelado e ficou paraplégico, mas ganhou “de consolo” a companhia de Sérgio (Claudio Lins).

Ivan (Marcello Melo Jr.) terminou "Babilônia" com Sérgio (Claudio Lins), após mais um desvio de roteiro por rejeição do público (Foto: Divulgação)
Ivan (Marcello Melo Jr.) terminou "Babilônia" com Sérgio (Claudio Lins), após mais um desvio de roteiro por rejeição do público (Foto: Divulgação)

Há mais de 20 anos, quando “Torre de Babel” (1998) foi ao ar, Leila Sampaio (Silvia Pfeifer) e Rafaela (Christiane Torloni) também foram rejeitadas pelo público por especulações, em um dos primeiros, maiores e mais marcantes episódios do tipo. Os rumores sobre uma suposta cena de sexo ganharam a boca do povo através de revistas, jornais e programas de fofoca, fazendo com que o casal morresse na explosão do shopping que servia de principal cenário da história. No roteiro, as últimas palavras ditas por Torloni são: “Uma coisa dessas tem explicação? Tem sim. Só pode ser esse maldito preconceito”.

A passagem foi relembrada em cena anos depois, quando as atrizes contracenaram novamente em “Alto Astral” (2014). Apesar de serem apenas amigas na trama, elas estrelaram uma cena de quase explosão juntas, onde a personagem de Cristiane diz: “A gente vai sair daqui viva, nada vai acontecer com a gente. Dessa vez, não”. A licença poética que liga os 16 anos de separação entre um folhetim e outro foi encarada como justiça para uma história que não deveria ter acabado da forma que o foi.

Segundo Lilian, os autores de telenovelas não deveriam se conter ao retratar as minorias fora das telas, principalmente pelo papel educativo que esse produto desempenha. “As ficções televisivas têm a função de informar ao público que as assiste sobre as mudanças de comportamento da sociedade. Principalmente, por ela ainda ter uma cama de analfabetos. E esses assuntos são importantes para serem apresentados e provocar que o telespectador reflita sobre eles.”

Silvia Pfeifer e Christiane Torloni durante as gravações de "Torre de Babel" (Foto: Divulgação)
Silvia Pfeifer e Christiane Torloni durante as gravações de "Torre de Babel" (Foto: Divulgação)

Para “A Dona do Pedaço”, atual novela das 21h da TV Globo, Walcyr Carrasco escalou uma atriz transexual para viver uma personagem trans na trama. “Ter uma atriz trans é uma forma de abrir espaço para essa discussão, para mostrar que elas também têm outros lugares na sociedade. A história da Britney na novela é muito bonita e cheia de humor”, contou o autor à Híbrida.

A personagem vivida por Glamour Garcia já chegou à história avisando: “Sou trans. Podem me chamar de Britney. Se nos documentos eu já posso ser eu mesma, também mereço respeito. Ela”, fez questão de frisar, ao exigir que fosse chamada pelo pronome correto.

“Acredito que, quando o público tem como exemplo uma novela das 21h, com uma família onde existir uma pessoa trans é completamente natural – em um lugar com carinho, afeto e respeito, não só entre eles, mas também por um parente trans -, é um exemplo muito importante para a sociedade entender o acolhimento que nós merecemos”, contou Glamour.

Em "A Dona do Pedaço", Glamour Garcia vive a transexual Britney (Foto: Divulgação)
Em "A Dona do Pedaço", Glamour Garcia vive a transexual Britney (Foto: Divulgação)

Além de Britney, no resumo oficial da novela consta que Agno (Malvino Salvador) e Rock (Caio Castro) ainda viverão um casal. Ambos os personagens são declarados heterossexuais e devem se descobrir gays ao longo da trama. “Ele é um homem casado e com filha, mas esconde sua homossexualidade de todos e não quer se assumir para a sociedade. Uma hora, o desencadeamento desse segredo se tornará público – a paixão que ele sente por outro homem. Vai ser irado!”, explica Malvino à Híbrida.

O ator conta que Agno “tem muitos conflitos” e que a sua saída do armário de forma tão abrupta não será um mar de rosas para o personagem. “Em algum momento, ele terá que lidar com a mulher e com a filha. E também parece que ele perde tudo por causa do cara com quem se envolve…”, adianta.

Mas, diferente do ator e do resumo, Walcyr ainda não ventila essa ideia e, por ora, comenta que a única personagem LGBTQI+ é Britney. “São questões delicadas e o público das 21h é conservador. Por isso, o processo é lento e parece-me que a repetição é uma estratégia para a aceitação. O que limita a criatividade dessa faixa de horário. Os autores apostam nas tramas que já são aceitas. Há dificuldade de ousar e perder público também, porque a TV aberta sofre a vigília dos patrocinadores”, diz Lilian.

O processo é lento e parece-me que a repetição é uma estratégia para a aceitação

– Lílian Fontes

Com um casal gay e uma personagem trans na última temporada, Malhação – Toda a Forma de Amar” não decepcionará e também contará com representantes LGBT+, dessa vez na forma de um novo casal gay como protagonista. Guga (Pedro Alves) e Serginho (João Pedro Oliveira) vão enfrentar diferenças de classe e de raça, mas não de público.

Em um dos capítulos, Guga ia dormir na casa de Serginho após uma festa e foi recriminado pelo irmão, Camelo (Ronald Sotto), com a seguinte frase: “Porque minha casa não vai virar motel de gay!”. De qualquer maneira, o casal #guguinho já tem torcida fiel nas redes. Assim, quem sabe se de tag em tag a galinha da teledramaturgia brasileira não enche o Projac com mais histórias inclusivas?

PATRICK MONTEIRO

Jornalista apaixonado por contar histórias e crente que há bondade na humanidade. Adora entrar em uma treta na internet quando o que falta ao outro é apenas informação real. Formou-se no Espírito Santo, mas encontrou a profissão no Rio de Janeiro. Já trabalhou para o Vírgula, Purepeople, Quem Acontece, MTV Brasil e Cosmo. Troco likes, mas não sigo de volta ?

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