A POTÊNCIA DE BENNY BRIOLLY: “O QUE MAIS ME MOTIVA É ESTAR NA LUTA”
por LÍVIA MUNIZ
O êxito dos candidatos LGBTI+ foi o ponto alto e maior saldo positivo das eleições municipais de 2020, em especial o recorde histórico de 30 candidaturas trans eleitas por todo o País. Entre esse seleto grupo de pioneiras, está Benny Briolly (PSOL), a primeira vereadora travesti eleita em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Aos 29 anos, ela foi a mulher mais votada do pleito com 4.367 votos recebidos, emergindo como uma nova voz de potência na política.
“Ser transexual, preta, de favela e a mulher mais votada da cidade é uma expressão muito grande do trabalho que estamos fazendo. A gente esperava uma boa votação e um processo vitorioso, mas porque viemos como formiguinhas construindo essa base há muitos anos”, avalia Benny em entrevista à Híbrida, menos de uma semana após as eleições.
Filha de uma cabeleireira e manicure com um porteiro, Benny foi criada no Fonseca, bairro da zona norte da ‘Cidade Sorriso’. Ela estudou a vida toda em escolas públicas e enfrentou desde sempre os desafios de um corpo negro e periférico. Na adolescência, passou a questionar por quê a vida é tão desigual, principalmente para pessoas que tinham a mesma cor de sua pele e sua classe social. Com 19 anos, entrou na universidade e foi então que sua militância começou.
“Conheci o movimento LGBT, o movimento de favela, e comecei a organizar minhas dores. Foi um marco bem importante ver que toda aquela dor que eu carregava poderia se organizar em uma coisa boa, que toda a legitimidade do meu corpo teria um reconhecimento que até então eu não sabia se existia”, lembra. “A vida não precisava ser sofrimento 24 horas, só dores, e eu poderia conhecer pessoas como eu, com pensamentos como os meus. E saber que, algum dia, essa sociedade racista, LGBTfóbica e elitista poderia ser transformada através de todas aquelas dores.”
Conheci o movimento LGBT, o movimento de favela, e comecei a organizar minhas dores. A vida não precisava ser sofrimento 24 horas
O prédio histórico da Câmara Municipal de Niterói já é bem conhecido por ela. Em 2016, Benny foi convidada pela então vereadora Talíria Petrone para ser sua assessora parlamentar, a primeira trans a ocupar esse cargo no município. Também foi Talíria que a convidou para entrar no Partido Socialismo e Liberdade, em 2012. Quando a professora se elegeu com sucesso ao Congresso Nacional seis anos depois, o PSOL iniciou a construção de Benny no município, já visando as eleições de 2020.
Niterói é uma das cidades mais importantes do Rio de Janeiro. Segundo dados do IBGE, a ela tem o maior índice de desenvolvimento humano (IDH) e o quinto maior produto interno bruto (PIB) do Estado. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) também colocou o município como o mais rico do Brasil, em 2011, com quase metade da sua população inserida nas classes A e B.
Apesar de bonitos no papel, os números escondem uma realidades discrepante e inegável das outras classes sociais de Niterói. As mesmas que Benny conhece muito bem como moradora do Morro da Penha, na Ponta D’Areia. “A cidade é marcada pela desigualdade das políticas socioeconômicas, com 20% da população ainda morando em assentamentos precários, sem água e sem esgoto. Existe uma pobreza muito grande”, observa.
O trabalho que a vereadora pretende construir em parceria com o partido e os movimentos sociais, ela explica, “é uma resposta do quanto a cidade precisa mudar sua política” e do quanto essa política precisa ser pensada “no corpo, no chão que as pessoas pisam, na identidade de gênero e orientação sexual, e em como vive a classe trabalhadora na cidade”.
Benny tem muitos motivos para acreditar que esse plano dê certo. Niterói foi varrida por uma “onda vermelha” nessas eleições, elegendo nove parlamentares de partidos considerados da esquerda ou centro-esquerda, como PDT (4), PSOL (3), PC do B (1) e PT (1). Ao todo, eles representam quase metade dos 21 vereadores que irão trabalhar na Câmara durante os próximos quatro anos, fora o prefeito
Já do outro lado da Baía de Guanabara, a capital não se empolgou tanto nas candidaturas de esquerda. O ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) foi eleito no segundo turno após derrotar Marcelo Crivella (REP), deixando Martha Rocha (PDT) e Benedita da Silva (PT) para trás. Por sua vez, o PSOL aumentou sua bancada elegendo sete vereadores, incluindo o mais votado do pleito, Tarcísio Motta. Para Benny, os resultados positivos do partido mostram que o Rio está no caminho certo.
“O PSOL Niterói sai muito vitorioso. A gente teve Monica Benício como uma resposta a tudo aquilo que questionamos sobre quem matou Marielle [Franco]. Tivemos Thais Ferreira, uma mulher preta, mãe, de periferia, que foi eleita também”, avalia. “Nossa política vem crescendo de forma bonita, popular, e tem muito a avançar. São Paulo é um exemplo, com [Guilherme] Boulos no segundo turno, uma mulher transexual eleita com 50 mil votos [Erika Hilton], a Bancada Feminista. É uma reposta da sociedade do quão urgente é essa política de direitos feminista, negro, popular e LGBT.”
Se as eleições municipais de 2016 mostraram sinais do que vinha em 2018 com a queda do Partido dos Trabalhadores e a ascensão bolsonarista, o pleito deste ano já deu indícios de um caminho reverso, com o fortalecimento dos partidos do Centrão e da esquerda, pulverizados para além do PT. Benny concorda que os ventos estão a favor, mas defende que ainda há muito a ser feito para derrotar Jair Bolsonaro nas urnas daqui a dois anos.
“Tem muita coisa fascista sendo criada, uma política de retirada de direitos muito semelhante ou até pior que o próprio Bolsonaro. A esquerda tem crescido bastante nos setores populares, há muitos debates. Acho que nunca tivemos tanto debate na esquerda, na direita e no centro”, observa Benny, que vê o tema crescendo também entre os jovens. “As pessoas estão dialogando na mídia, nas redes sociais, no dia a dia, e tendo uma participação maior.”
Apesar do feito histórico nas eleições, Benny Briolly enfrentou barreiras muito maiores que a disputa com rivais políticos. Durante a campanha, ela foi ameaçada nas redes sociais, uma situação que trouxe de volta os fantasmas do assassinato de Marielle Franco e dos assédios morais sofridos até hoje pela amiga Talíria, cuja vida ainda está sob risco.
“A gente fez uma denúncia, mas eu já vinha sofrendo isso como assessora. Entendi ali que eu já tinha me tornado um quadro de sucessão nas políticas negras, tanto da Marielle quanto da Talíria”, explica Benny. “A expressão ‘Marielle’ é sobre o que significa nosso corpo enquanto mulheres negras na política. Essa corja de milicianos percebe o quanto minha voz é a potência de um projeto que começou com a própria Talíria.”
Mesmo com todas essas barreiras, os maiores medos de Benny são outros. Para muitos críticos, a esquerda perdeu a capacidade de conversar com as populações mais pobres e atender suas demandas. A nova vereadora de Niterói tem trabalhado fortemente para dialogar com essas pessoas, mas ainda assim teme não conseguir fazê-lo pelo lado político no qual escolheu lutar.
“Meus medos são muito reais. Temo muito os caminhos que a política vem traçando, do quanto a gente precisa lutar na esquerda por um projeto revolucionário. Não podemos nos perder e esquecer a classe trabalhadora que está nos guetos, nas vielas, nas esquinas. Um dos meus maiores medos é de nossos passos não darem conta disso, mas a gente tem lutado pra dar”, defende.
Agora, Benny se prepara para assumir sua cadeira na Câmara Municipal ao lado de Professor Túlio e Paulo Eduardo Gomes, também eleitos pelo PSOL. Eles formam a segunda maior bancada de Niterói e já estudam as melhores medidas para cuidar de uma cidade que, assim como tantas outras, ainda enfrenta os efeitos da pandemia do coronavírus.
A institucionalidade é um meio, não o fim. É uma tarefa que cumpro hoje. O que mais me motiva é estar na luta todos os dias
“Nossa prioridade é fazer que Niterói tenha uma política nas mãos do povo e com participação popular. É óbvio que ela vai pautar as medidas de segurança e de saúde, da covid-19 e da crise econômica que já incide na sociedade”, afirma. Para atingir esse objetivo, ela acredita que é preciso pensar numa cidade para todos, na crise pós-pandemia, no déficit de assistência, nas políticas econômicas e de saúde, na mobilidade urbana e em território. “Uma política que seja eficaz na vida da população.”
A vitória de Benny Briolly traz esperança às minorias que ela se comprometeu a defender durante sua campanha. Mais do que isso, é uma inspiração para que outras mulheres pretas e periféricas conquistem seu espaço na política. E o melhor de tudo é que Benny tem total consciência do que representa, por isso se dedica a ampliar outras vozes silenciadas, dentro ou fora do legislativo, enquanto segue na busca por seus próprios sonhos.
“Eu sonho ver uma sociedade liberta, revolucionária e abolida de gêneros. Um dos meus maiores sonhos é o fim do capitalismo, um sistema opressor e genocida dos nossos corpos. Pretendo ser uma potencializadora dos movimentos sociais, organizando mulheres, negros e LGBTs por Niterói, Rio de Janeiro e pelo Brasil afora”, deseja. “A institucionalidade é um meio, não o fim. É uma tarefa que estou cumprindo hoje. O que mais me motiva é estar na luta todos os dias.”