21 nov 2024

O CORAÇÃO TRAVESTI BATE FORTE (E VIVO)

DANÇARINO E EDUCADOR PAULISTA CONTA COMO CONQUISTOU O MUNDO MESCLANDO DUAS ARTES FORJADAS NA RESISTÊNCIA

por CLAUDIA TAJES

A história do coletivo As Travestidas começa em 2003, quando o ator Silvero Pereira estreou o monólogo “Uma Flor de Dama”. A peça, baseada em um conto de Caio Fernando Abreu, foi o marco zero de uma experiência artística que sairia de Fortaleza para conquistar o País inteiro, sempre com montagens que trazem as discussões de gênero para o centro do debate.

Ao longo desses 17 anos, o grupo encenou espetáculos como “Cabaré da Dama”, “Engenharia Erótica”, “Yes, Nós Temos Bananas!”, “BR Trans”, “Quem Tem Medo de Travesti?”, “Três Travestis” e “Trans-Onho”, este último inspirado na dança-teatro japonesa do Butoh. É um portfolio que impressiona não apenas pela variedade de títulos, mas pela fertilidade de ideia, o volume de produção e a tenacidade das meninas. Em um cenário cada vez mais fechado para a arte – qualquer arte -, As Travestidas não param de criar.

O próprio grupo define assim sua produção: “Nestes quase 15 anos de estrada, optamos por trilhar um caminho incerto, errático, mas também vibrante, festivo, de denúncia, urgência, reflexão, de amor e dedicação. (…) Nosso desafio é cotidiano em aplacar diferenças, dissabores e narrativas que se fortaleceram com o passar do tempo e com o adubo da ignorância. Nosso mundo ideal é trans, transcendente, transperiférico, transmutante, transexual, transformista, travesti. E nosso querer, transhumano”.

Ítalo Lopes é Karolaynne Carton n'As Travestidas (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)
Ítalo Lopes é Karolaynne Carton n'As Travestidas (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)

O Coletivo é formado por membres efetivos e afetivos, como são chamadas as pessoas parceiras e amigas de trabalhos e de vida. Uma delas é Jesuíta Barbosa, que deu seus primeiros passos como ator com o grupo, em Fortaleza.

Todas as integrantes do grupo cantam, dançam e atuam. Verônica Valenttino também é a cara da banda de rock paulista Verônica Decide Morrer. Junto com Patrícia Dawson e Yasmim Salvador, ela é hoje uma das três Ts, as três vozes que falam pelo Coletivo.

Rodrigo Ferreira é a Mulher Barbada. Denis Lacerda, Deydianne Piaf. Ítalo Lopes é Karolaynne Carton. George Hudson Santiago é Betha Houston. Gisele Almodovar é o alter ego de Silvero Pereira, que hoje também se dedica a uma bem sucedida carreira na televisão e no cinema, mas continua se apresentando com As Travestidas.

As meninas foram se incorporando ao Coletivo aos poucos, cada uma trazendo sua experiência artística e sua história. Para Rodrigo, a arte do grupo é resultado de tudo o que elas vivem e então levam para o palco. Todas as peças têm seus momentos mais leves – e impagáveis -, mas o trabalho das Travestidas não passa pano na realidade do país que mais assassina travestis e transexuais no mundo.

Deydianne Piaff (Denis Lacerda) no backstage de "Quem Tem Medo de Travesti?" (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)
Deydianne Piaff (Denis Lacerda) no backstage de "Quem Tem Medo de Travesti?" (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)

Em 2019, contempladas pelo edital Rumos, as meninas saíram em turnê com “Quem Tem Medo de Travesti?”. A ideia foi passar por algumas das cidades mais violentas para homossexuais do Nordeste e do Norte do Brasil, apresentando o espetáculo e promovendo oficinas, rodas de conversa e atividades com as populações locais. O ônibus d‘As Travestidas saiu de Fortaleza e entrou, impávido & colosso, em São Luiz, Teresina, Belém do Pará, Palmas, Imperatriz, até chegar no Rio de Janeiro.

Eu não quero esse privilégio de fazer arte por hobby

– Verônica Valenttino

A viagem, os dias de estrada e as muitas horas de apresentação deram origem ao documentário “Coração Travesti”, atualmente em fase de finalização, e na luta contra as dificuldades que a atual situação política e econômica vem criando para o cinema nacional. Como é a tônica no trabalho d’As Travestidas, o filme mistura os momentos de solidariedade, desbunde, resistência expressão criativa e muita festa com depoimentos emocionantes sobre a realidade das meninas, como os que você lê a seguir.

Com a palavra, Verônica Valenttino:

Verônica Valenttino durante as gravações de "Coração Travesti" (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)
Verônica Valenttino durante as gravações de "Coração Travesti" (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)

“Como que simplesmente o ser, como que simplesmente cada uma viver sua própria vida incomoda tanto a essa galera, a esse País, a ponto de torturar e a ponto de não permitir que se viva? Eu costumo falar que a gente não tem o privilégio de fazer arte por hobby. E eu não quero, também. Eu não quero esse privilégio de fazer arte por hobby. Quisera eu cantar e fazer teatro somente dos amores, somente do quanto é agradável viver nesse mundo, do quanto que é sublime ser travesti. Quisera eu. A nossa grande motivação, mesmo, é o nosso ódio. Eu acho que a gente precisa urgentemente organizar o nosso ódio. E fazer disso a nossa arma maior, chega de viver com medo de passar pelo que as manas passaram nos anos 80, nos anos 90. Eu não quero ser uma travesti dentro dessa estatística de média de vida de 35 anos. Eu tenho 35 anos.”

Para Verônica Prates e Valencia Losada, da produtora carioca Quintal Produções, que viabilizou a turnê “Quem Tem Medo de Travesti?”, ter trabalhado com As Travestidas foi “a experiência mais radical e transformadora que vivenciamos em nossa trajetória cultural. A disciplina, o talento, a alegria e o espírito colaborativo que perpassam a cena está impresso nos bastidores e na vida de cada integrante”.

Passou da hora de a sociedade nos respeitar

– Patrícia Dawson

Alegria essa que teve seu ponto alto com a chegada do grupo ao Rio de Janeiro para uma temporada de dois meses no Teatro Poeira, em Botafogo. Instaladas na Avenida Atlântica, de frente para a Praia de Copacabana, as meninas conquistaram público, crítica e a cidade. O encerramento perfeito para um projeto tão atrevido quanto um coletivo de travestis viajando pelo país.

Não que seja fácil botar o pé na estrada e ser travesti vivendo (de arte). Ao longo da existência do grupo, elas vêm encontrando forças umas nas outras para continuar, como explica Patrícia Dawson: “A gente é humana, merece o nosso espaço. Não é cobrar nada, é só ter o que é de direito, é nosso. Um dia desses, no restaurante, um homem achou graça, ficou rindo da nossa cara. Eu não posso me acovardar nessa hora. Eu preciso encarar, preciso ter força pra dizer ‘do que você tá rindo? Você devia ter vergonha da sua atitude, porque eu não tenho vergonha de quem eu sou’. Tem todo um trabalho de educação que a gente precisa fazer. Ok, é um trabalho de formiguinha, é tudo muito a passos curtos, mas nós precisamos nos impor sempre. Passou da hora de a sociedade nos respeitar”.

Patricia Dawson, uma das três vozes d'As Travestidas, nos bastidores de "Quem tem medo de travesti?" (Foo: Theo Tajes | Revista Híbrida)
Patricia Dawson, uma das três vozes d'As Travestidas, nos bastidores de "Quem tem medo de travesti?" (Foo: Theo Tajes | Revista Híbrida)
Deydianne Piaf (Denis Lacerda) durante as gravações de "Coração Travesti" (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)
Deydianne Piaf (Denis Lacerda) durante as gravações de "Coração Travesti" (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)

QUEM TEM MEDO DE TRAVESTI?

Para Patrícia, as pessoas têm medo do mito que se cria diante da figura da travesti. “Travesti rouba, travesti mata, travesti faz o mal. E as pessoas são educadas para exterminar o mal. Então elas fazem isso matando, aniquilando a gente. Nosso trabalho, no grupo, é mostrar que não é assim. Claro, existe as travestis que têm babado. Mas assim como existe o cis filho da puta, que bate na mulher, existe a mulher que é filha da puta e existe a travesti filha da puta também. Ser bom ou mau não tem a ver com o gênero! Porra, isso é tão simples de entender.”

Yasmim Salvatriz resume: “Quem tem medo de travesti é quem tem medo de se enxergar”. Os preconceituosos que reflitam e não se assustem com o que vão ver.

Valencia Losada acredita que o papel das Travestidas vai muito além do palco. “Elas nos ensinam a olhar, historicamente, para o País que somos, a sociedade que nos tornamos e a urgência de reparar erros que estruturam preconceitos e desigualdades. Seus corpos e sua arte exaltam a potência transformadora da diversidade, do respeito às diferenças e da importância política e social do teatro”.

Yasmim Salvatrix em cena do documentário "Coração Travesti" (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)
Yasmim Salvatrix em cena do documentário "Coração Travesti" (Foto: Theo Tajes | Revista Híbrida)

Sobre o futuro, Silvero Pereira é otimista. “Espero que o futuro do Coletivo seja de mais aprendizado, não apenas nos trabalhos artísticos, mas também na formação e aperfeiçoamento das integrantes. Que o Coletivo se mantenha afetuoso, colaborativo e siga disposto a aprender e crescer, dando espaço de representatividade e proporcionalidade a novas artistas”.

Em tempos de pandemia e teatros vazios, As Travestidas esperam o momento de voltar a brilhar. Um edital que tem a divulgação de seu resultado previsto para dezembro pode trazer uma esperança para a finalização do documentário. E uma série de TV, em avaliação por um canal, pode trazer a trupe inteira para uma nova temporada no Rio.

O futuro, quem diria, talvez seja travesti.

CLAUDIA TAJES

CLAUDIA TAJES

Claudia Tajes é escritora, roteirista e colunista. Atualmente trabalha e mora no Rio de Janeiro. Junto com Theo, seu filho, forma uma dupla que faz filmes e entrevistas por aí.

THEO TAJES

THEO TAJES

Theo Tajes é fotógrafo, roteirista e diretor de cena. Além de expôr individualmente, participa de mostras coletivas, a mais recente em Bologna. Tem diversos curtas e clipes realizados. “Coração Travesti”, seu primeiro longa, está em fase de finalização.

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