por JOÃO KER
Priscila Tossan tem, aos 30 anos, uma trajetória tão cheia de reviravoltas que é quase um conto de fadas abrasileirado, onde a fada madrinha é trocada por muita ralação e a certeza de seu propósito como artista. Depois de se apresentar nos vagões do Metrô Rio, a carioca conquistou o País com sua participação no The Voice, em 2018, e em agosto lançou seu aguardado primeiro disco de estúdio pela Universal Music Brasil, “Iceberg”.
Ao longo de 12 músicas, ela solta o gogó enquanto pinta um céu azul de sexta à tarde, sem se deixar de apontar como a fábula do sonho brasileiro nem sempre é das mais gentis para alguém como ela.
Foto: Gabriela Perez; Assistência: Ricardo Godot; Design: Juliana Senra; Beleza: Marcos Weverthon; Produção: João Ker.
Priscila conta que começou fazendo “canções de natureza” desde que era “bem novinha” e passou a “caminhar fora da casinha do papai e da mamãe” para “olhar mais a rua”. Uma de suas primeiras inspirações veio quando ela foi à Praia do Arpoador pela primeira vez. “São coisas assim, genuínas. As composições traziam isso, coisas genuínas do abraço, de conhecer pessoas diferentes”, relembra.
É curioso que o “abraço” esteja presente no seu trabalho e subconsciente desde o início, ainda mais tendo como cenário um dos crepúsculos mais lindos e conhecidos do Rio de Janeiro. De várias formas estéticas, líricas e sonoras, esses aspectos também dão as caras e os tons em “Iceberg”.
O carro-chefe de divulgação do seu trabalho foi a ensolarada “Cine Odeon”, na qual é possível ouvir o sotaque e a entonação cariocas de Priscila em cada uma das sílabas, enquanto ela vai desenhando um quadro cheio de referências diretas e indiretas à capital fluminense. “Eu já não leio maix Drummond, eu não excuto mais Tom Zé, não vou maix ao Cine Odeon”, canta, em cima de mais uma produção impecável assinada por Alexandre Kassin, quase um Midas da música brasileira.
“Eu sempre chorava em shows. Via a galera se apresentando e pensava ‘cara, não é possível, eu tenho que viver disso’”
Foto: Gabriela Perez; Assistência: Ricardo Godot; Design: Juliana Senra; Beleza: Marcos Weverthon; Produção: João Ker.
A música deu título ao EP lançado semanas antes como teaser do álbum e também ganhou um clipe de verdadeira ode ao Rio de Janeiro, com imagens da Praia de Copacabana, do Corcovado, do Aterro do Flamengo e de Priscila pegando onda na orla carioca. As cenas não são aleatórias e representam uma das principais características da artista, que confessa preferir a cidade durante o dia. “Eu vou muito à praia e tenho esse contato com cachoeira, trilha. Colocar isso no clipe foi demais.”
“Iceberg” é um disco que parece feliz demais para o ano que foi 2020, mas ao mesmo tempo traz consigo um otimismo e leveza que são quase uma fonte de boas vibrações para o futuro. Nas músicas, é possível encontrar Priscila com a profundidade emocional de Angela Ro Ro, o molejo fácil e entonação rápida de Sandra de Sá e o flerte desafiador de Marina Lima, todas artistas que traduziram na música a sua própria interpretação do estilo carioca de ser e viver.
Mas a verdade é que, em meio a tantas referências, Priscila conseguiu inevitavelmente construir sua própria sonoridade. E o resultado só poderia mesmo ser esse som singular que parece pensado para a voz da artista.
Foto: Gabriela Perez; Assistência: Ricardo Godot; Design: Juliana Senra; Beleza: Marcos Weverthon; Produção: João Ker.
Criada e crescida em Campo Grande, que é praticamente uma cidade independente na zona oeste do Rio e reduto eleitoral de partidos fundamentalistas (foi a região que mais votou no futuro-ex prefeito Marcelo Crivella nas eleições 2020), Priscila conta que seu processo de entendimento como mulher lésbica foi “muito natural” e algo que ela “sempre soube”, tanto que não precisou exatamente contar para a sua família.
“Rolou um duplo, tanto minha mão pescando, quanto eu chegando e falando. Meus pais disseram que não curtem essa ideia, mas ‘a gente te ama’. E o papo acabou ali, não ficamos rodeando muito.”
Quando participou do The Voice, em 2018, o Brasil a conheceu já com a namorada, Gabriela, com quem mora há três anos. Ela conta que a companheira foi uma das principais incentivadoras para que perseguisse o sonho de uma carreira musical, fosse no barzinho ou no metrô, onde Priscila estava se apresentando antes de subir ao palco do programa global e conquistar os jurados cantando “Ainda é cedo”, do Legião Urbana.
“Eu sempre chorava em shows. Via a galera se apresentando e pensava ‘cara, não é possível, eu tenho que viver disso’”, lembra. Aquela Priscila mal sabia que, em alguns anos, estaria realizando os sonhos de se ver em cima do palco, fazendo viagens para divulgar sua arte e “sentindo a energia da galera cantando seu som”.
Foto: Gabriela Perez; Assistência: Ricardo Godot; Design: Juliana Senra; Beleza: Marcos Weverthon; Produção: João Ker.
“Foi ralação total. Como preta, lésbica e periférica, o bagulho é doido”
Até chegar lá, entretanto, foi preciso arregaçar as mangas. Ela criou páginas no Facebook para divulgar seu material, seguiu o conselho de Gabriela e se apresentou em barzinhos, no metrô e percebeu que a música era um caminho sem volta quando entrou pela primeira vez num estúdio, em 2014, a convite de um amigo que a levou à sede do AfroReggae.
“Muita coisa mudou desde então”, explica ela sobre a Priscila de hoje. “Foi ralação total. Como preta, lésbica e periférica, o bagulho é doido.”
Isso tudo “passou um pouquinho” pela sua cabeça enquanto ela esperava as cadeiras de Ivete Sangalo, Michel Teló, Carlinhos Brown ou Lulu Santos virarem. “Foi um pouco assustador. Muita câmera, luz, os técnicos e artistas te olhando, a galera gritando. Mas eu tava muito calma, porque sabia que ali era uma coisa cósmica”, conta.
Priscila acabou entrando para o time de Lulu e chegou até a semifinal do programa. Mais do que o título de vencedora, ela conseguiu conquistar o público e a crítica, assinando um contrato com a Universal Music e, mais tarde, se apresentando no Rock In Rio como convidada do ex-treinador. “Tudo o que eu planejava, consegui ali no programa – que todo mundo ouvisse a minha arte e que eu pudesse expandi-la pra milhões de televisões. Eu não imaginava o prêmio, mas imaginava sair do metrô e me pôr ali naquele palco.”
“Porque eu sabia que daí ia surgir muito trabalho.”
Foto: Gabriela Perez; Assistência: Ricardo Godot; Design: Juliana Senra; Beleza: Marcos Weverthon; Produção: João Ker.
Do jazz ao rap, Priscila assina a composição de sete das 12 faixas de “Iceberg”, além de ter gravado “Não sabia”, música inédita de Luiz Melodia, e “Disfarça e Chora”, um samba de raiz assinado por Cartola e Dalmo Castello. Depois dos banhos de sol com “Cine Odeon”, o primeiro single escolhido para a divulgação do LP foi “Libélulas”, uma parceria potencializada pelo flow de Criolo e a levada R&B de Luccas Carlos. “Olha pra rua, tá dando sopa/ preste atenção, o mal tá logo ali”, diz o refrão.
“Eu acho que eu trouxe [pra essa música] uma coisa de racismo pra caralho”, explica. “O Rio tá muito maltratado nesse sentido, muito descuidado. Queria dar uma alertada pra galera se ligar onde anda e com quem anda. Foi isso. Eu não sou muito de sentar e compor. Sou muito de inspiração do que tô vivendo e sentindo atualmente”
O contexto sociopolítico, mesmo que velado, não é novidade para Priscila. Na sua pele, vindo de onde vem e com os sonhos que ousou ter, ela sabe bem como “o mal tá logo ali”, sempre à espreita esperando por um deslize. Uma situação de racismo que ela diz ser mais recorrente, até hoje, é a perseguição quando vai ao supermercado. “Tive muito exemplo disso em relação à minha pele. Eles não falam nada, ficam seguindo, olhando de cima abaixo. É muito incômodo. Eu chamo o gerente e boto pra foder. Pô, qual foi? Mas falo educadamente, sem muito atrito”, conta.
Na semana da nossa conversa e poucos dias após termos fotografado no terraço do Novotel Leme o ensaio de capa para essa edição, o noticiário ainda repercutia a morte de João Alberto, o homem negro de 40 anos que foi assassinado no estacionamento do Carrefour de Porto Alegre.
Claro que, como mulher preta e carioca, Priscila nunca realmente parou de pensar ou viver a questão racial. Os casos de racismo em supermercado que ela relata aconteceram no Rio, assim como o assassinato das primas Emilly e Rebecca, de 4 e 7 anos, nesta semana, e tantos outros incontáveis ao longo dos anos. Só em 2019, pretos e pardos foram 78% dos mortos durante operações da Polícia Militar no Estado.
Foto: Gabriela Perez; Assistência: Ricardo Godot; Design: Juliana Senra; Beleza: Marcos Weverthon; Produção: João Ker.
“Se fosse pra fazer um disco agora, eu traria mais essa dor do Rio. No momento do ‘Iceberg’, eu tava em uma outra sintonia”, observa. “Mas to sempre batendo de frente, não deixo passar. Já evitei muito atrito quando era mais nova. Agora, pergunto qual o problema, mas tento fazer a pessoa entender que, por dentro, todo mundo é igual. E vou tentando dialogar de uma forma bem mansa”.
Foto: Gabriela Perez; Assistência: Ricardo Godot; Design: Juliana Senra; Beleza: Marcos Weverthon; Produção: João Ker.
A sessão de fotos que você vê aqui foi feita ao longo de uma quarta-feira nublada e chuvosa, três dias após o Rio ter levado Eduardo Paes (DEM) e Marcelo Crivella (REP) para disputarem a Prefeitura no segundo turno. Enquanto você lê essa entrevista, Paes já foi eleito para um terceiro mandato à frente da capital fluminense, anunciou carnaval para julho de 2021 e são boas as chances de que o Brasil terá acesso a uma vacina (qualquer que seja, pelo amor de deus) contra a covid-19 no início do próximo ano.
Pensar em recomeços e o que queremos deles é um exercício quase que obrigatório a essa altura, já que temos uma segunda chance para evoluirmos a níveis individual e coletivo enquanto humanidade. “Ontem história, amanhã mistério”, canta Priscila em “Céu Azul”, uma de suas composições em “Iceberg”. “Ontem hixtória, amanhã mixtérioo”, repete.
Foto: Gabriela Perez; Assistência: Ricardo Godot; Design: Juliana Senra; Beleza: Marcos Weverthon; Produção: João Ker.
“Igualdade é a palavra. Ainda temos muito a caminhar, mas esse tinha que ser um recomeço pra todo mundo. Viver no Rio tá muito caro, tinha que descer o valor de tudo, inclusive da passagem. A gente lutou tanto pra não aumentar 20 centavos e agora já passou muito mais do que isso. Tem que ter mais arte, mais cuidado, o lazer também pras comunidades e zonas periféricas…”, conta sobre seus desejos para o futuro da cidade, de onde jura “não sair por nada”.
Sonhos, claro, não podem ficar de fora. A veia criativa de Priscila pulsa a todo momento e, como explica, ela não é muito de sentar e compor, mas sim de escrever sobre o que está sentindo no momento. Ao longo da nossa conversa, ela aponta para uma direção menos solar e mais política em seus futuros trabalhos, e revela um desejo de gravar clássicos infantis em ritmos de funk e reggae. No mês passado, também lançou um EP de remixes para “Cine Odeon” e regravou “Tempo Rei”, clássico de Gilberto Gil, em parceria com Xande de Pilares e Leo Santana para a coletânea de referências negras na música, produzida por Mahmundi.
Foto: Gabriela Perez; Assistência: Ricardo Godot; Design: Juliana Senra; Beleza: Marcos Weverthon; Produção: João Ker.
Enquanto encara a pandemia se blindando com carinho da família e maratonas de Netflix, Priscila Tossan enxerga no futuro uma chance de mudança para o melhor, algo que ela mesma já provou ser possível tantas vezes antes. “Acho que a gente tá acordando, não estamos mais dormindo. Tem que ter muita fé. É olhar pra frente e ter luz.”
Fotos: Gabriela Perez
Assistência e Vídeo: Ricardo Godot
Design: Juliana Senra
Beleza: Marcos Weverthon
Produção: João Ker
Locação: Novotel Leme