POSE É SOBRE NÓS
por BRUNA BENEVIDES
Tenho refletido sobre os processos de apropriação de nossos espaços e narrativas por pessoas cisgêneras brancas desde que Pose se tornou uma febre no Brasil. E tenho observado um movimento muito forte de Houses e Balls por aqui que não representam a narrativa contada na série, nem a história da própria cultura ballroom.
Pose é sobre travestilidades. Suas histórias são inspiradas na nossa própria arte, nossos corpos e nossas vidas. Não entender isso e não permitir que, no mundo real, estejamos nesses mesmos espaços que lutamos para conquistar e ajudamos a construir, é uma lógica colonizadora e transfóbica que nega a própria narrativa da série.
Janet Mock, uma travesti, negra e que muita gente sequer ouviu falar, é o principal nome por trás da série, assinando roteiro e direção dos principais episódios, além de ser produtora executiva do programa. Foi ela quem ajudou a construir um universo onde, em suas próprias palavras, “cinco mulheres trans são finalmente as protagonistas e não mais as coadjuvantes”.
Com isso, a série fez história ao ter o maior elenco de pessoas não-cisgêneras já escaladas na história da televisão dos Estados Unidos. Nas telas, as performances de MJ Rodriguez, Dominique Jackson, Indya Moore Hailie Sahar e Angelica Ross retratam majoritariamente a luta de travestis e mulheres trans negras para serem reconhecidas como produtoras e influenciadoras de cultura, na construção de afetos e outras possibilidades de existência dentro de espaços trans-excludentes.
Pose é sobre a luta histórica das travestis e pessoas trans negras e representa também a discussão que muitos ignoram sobre classe, raça e gênero. É sobre a hierarquização dos corpos que estão na linha de frente da exclusão e são alvo preferencial da violência. É sobre resistência, como sobreviver. É sobre Verônica Bolina, sobre Lohana Berkins, Marsha P. Johnson e Sylvia Riviera. Mas também é sobre aquela de nós que está presa, viciada, marginalizada, prostituta, aquela que não é modelo, e a quem sobrou apenas a sujeira que habita no underground trans.
Pose é sobre verdades conhecidas, mas ignoradas, assim como a transancestralidade que nos tem sido negada e que viemos reivindicar ao revisitarmos os túmulos e memórias da nossa história. Somos filhas da AIDS, e a série também mostra como é sobreviver com HIV e seguir resistindo às epidemias de violência, solidão, abandono, invisibilidade e diversos apagamentos que vinham (e ainda vêm!) com o vírus.
Pose é sobre aquilo que as feministas brancas chamam de sororidade, mas que antes de ter uma palavra as manas da pista já praticavam ao se organizarem em arranjos sociais que muitos nem sobreviveriam, garantindo nossa segurança, existência e liberdade de ser. É sobre dar conta de si e de outras, da existência marginal, resistindo às normas e até mesmo à morte. Insistente. Reativa.
Em Pose, vejo a mesma irmandade que sustenta a CasaNem, a Florescer, com autocuidado, afetos, desafetos e acordos de convivência, mesmo na dissidência. Sempre na disputa por algo maior, vivendo e deixando morrer. É esquina, é o reino de deusas e Mães parideiras de si e de outres.
Se o ball de vocês não agrega esses corpos das travestis pretas, não-binárias, faveladas, com marca de barba e sem destino, vocês estão fazendo tudo errado. Quantas travestis há nas House Of Vocês??? Tá em dúvida? Assista à série novamente.
Fortaleçam e alavanquem aquelas que são massacradas diariamente pela transfobia, pela omissão e pela exclusão. Até quando vocês vão continuar pisando em nossa memória e se maquiando com nosso sangue? Aprendam com Pray Tell e deixem as travestis ocuparem seu trono. Sermos Queens of the night. Ponha as damas da noite no controle do seu reino marginal e deixem as princesas de pés grandes ocuparem seu lugar.
Utilizo intencionalmente a Travestilidade para traçar o paralelo que proponho com a nossa realidade. Não adianta enaltecer as atrizes de Pose e ter medo de manter qualquer contato com a travesti prostituta que batalha na encruzilhada perto de sua casa.
Nos bares, nas esquinas e das esquinas. Somos bailarinas da vida real. Como diria Susy Shock, Mãe de tantas casas sem nome por aí: “Reivindicamos o nosso direito de ser os monstros que a sociedade criou”. Silicone, batom vermelho, navalha, gilete embaixo da língua. Elza. Pemba. Taba. Strike a pose!
BRUNA BENEVIDES_editora
Segunda Sargenta da Marinha do Brasil, cearense radicada em Niterói. 1ª mulher trans a receber o prêmio Faz Diferença. Feminista e casada. Recebeu o diploma Mulher Cidadã da ALERJ e o Prêmio Innês Etienne por sua atuação na luta pelos Direitos Humanos. TransAtivista, autora do Dossiê da Violência e dos assassinatos de pessoas Trans no Brasil pela ANTRA. Membra do Sistema de Informações sobre violência contra LGBTI na América Latina e Caribe.