por JOÃO KER
Nas telas do cinema, da TV e do celular, Silvero Pereira não tem pudor em mostrar as mil e uma facetas que constrói sobre si e seus personagens, como um grande camaleão da atuação. “Bicha do teatro”, o ator colhe agora os louros de uma carreira que passou pelos principais palcos do País, chegou à TV Globo, ao Festival de Cannes, e agora prepara uma série de projetos que prometem mudar mais uma vez qualquer noção pré-estabelecida que o público e o mercado tenham sobre o que ele pode ou deve fazer.
Silvero Pereira veste jaqueta da Levi’s, salto e calça chaps por Guarda Roupa SP; tanga e top de crochê da LED. Foto: Rafael Monteiro. Beleza: Raul Hollanda. Styling: João Ker e Natália Borba.
Nascido em Mombaça, interior do Ceará, Silvero teve seu primeiro contato com o teatro durante o ensino médio em uma escola técnica federal, por volta de 1997. Não que antes disso ele já não “brincasse de ser artista”, mas foi apenas quando assistiu à sua primeira peça, com 17 anos, que resolveu cursar artes cênicas e nunca mais se desviou desse caminho.
Dois anos depois, ele estreou sua primeira peça nos palcos até que, em 2002, se muda para Porto Alegre, no outro extremo do País, onde começa a pesquisa para “BR-Trans”, a montagem que deu o pontapé inicial no seu estrelato a nível nacional. Foi ao ver uma exibição do espetáculo no Rio que Glória Perez se encantou pelo ator e seu trabalho, a ponto de convidá-lo para integrar o elenco de “A Força do Querer”, em 2017.
Na produção, Silvero viveu o motorista e drag queen Nonato/Ellis Miranda, o que lhe rendeu uma indicação a Ator Revelação no Melhores do Ano. Mas nem o horário nobre da Globo conseguiu se equiparar ao sucesso que ele alcançou quando Kléber Mendonça Filho o escolheu para viver o cangaceiro queer Lunga, em “Bacurau”.
O filme conseguiu algo cada vez mais raro no cinema nacional e alcançou tanto o elogio da crítica como o sucesso comercial, além de ter rodado o circuito dos principais festivais mundiais e levado um Silvero montado de salto, peruca e batom para o tapete vermelho do Festival de Cannes. Mais do que isso, “Bacurau” serviu como um trampolim que mostrou ao mercado brasileiro como o ator, começando a se ver preso no estereótipo de personagens LGBTIs, poderia entregar performances ainda mais estarrecedoras.
“Bacurau trouxe um outro lado meu que o público não conhecia. É importante ver um personagem do cinema se sobrepor ao da TV”
“Eu tinha acabado de sair de uma novela que mostrou o Silvero para o Brasil. Não consigo nem imaginar como era o imaginário das pessoas sobre mim naquela altura. Mas o filme trouxe um outro lado meu que o público não conhecia”, lembra. “É importante ver um personagem do cinema se sobrepor ao da TV. Não que um seja maior ou melhor que o outro, mas quando a gente vê o cinema brasileiro ganhando uma popularidade tão grande é muito maravilhoso”, conta, acrescentando que quase diariamente recebe artes dos fãs sobre Lunga, além de ter visto que o personagem impactou a cultura pop a ponto de virar fantasia no Halloween e no Carnaval, como uma “referência de luta” para as pessoas.
“Depois disso, passei a receber convites completamente diferentes do que as pessoas imaginavam que eu era. Entendi que o mercado ainda não está disposto nem preparado para mudar esses estereótipos e que eu precisava fazer as minhas próprias mudanças”, afirma.
Silvero Pereira veste top e blazer de paetês com óculos da LED. Foto: Rafael Monteiro. Beleza: Raul Hollanda. Styling: João Ker e Natália Borba.
‘Sempre me vi queer’
Nascido em 1982, Silvero Pereira conta que sempre se entendeu como “diferente”, mas que não gosta de se definir apenas como um homem gay. “Digo que me vejo como queer desde pequeno. Não enxergo o Silvero criança ou adolescente como gay, mas como queer. Alguém que não se identificava com as questões binárias, mas ao mesmo tempo se via muito mais no feminino que no masculino”, explica.
A coragem para falar sobre o tema e se assumir veio com o teatro, quando ele tinha 19 anos e já morava sozinho, com pessoas mais acolhedoras, algo que diz ser “padrão para quem é da minha geração”. “Eu sou do interior, então sofri muito preconceito por ser uma criança diferente do que as pessoas gostariam que eu fosse. Eu me preservava muito, com medo que esse preconceito gerasse uma violência física.”
“Naquela época existia uma estrutura muito mais violenta do que temos hoje, nós nem sabemos os índices específicos de agressão das décadas de 1980 e 1990. Não existiam tantas referências”, continua.
Silvero Pereira veste jaqueta da Levi’s, salto e calça chaps por Guarda Roupa SP; tanga e top de crochê da LED. Foto: Rafael Monteiro. Styling: João Ker e Natália Borba.
Sua preocupação com a violência física que poderia sofrer na mãos dos outros não era infundada. Há apenas alguns meses, Silvero revelou publicamente pela primeira vez que foi vítima de um abuso sexual aos sete anos, antes de ter idade suficiente para sequer entender o que estava acontecendo.
“Isso acontece constantemente, com diversas pessoas. Quando criança, não tive referências de pessoas que pudessem me fortalecer a ponto de eu denunciar. Era sofrer a violência e me calar”, lembra. O tema acabou entrando na peça “BIXA VIADO FRANGO”, encenada de forma virtual durante a pandemia.
“Hoje, se coloco isso numa peça e falo em entrevista, é porque o assunto está resolvido na minha cabeça enquanto Silvero, com todas as minhas questões psicológicas e terapêuticas. Mas também falo para incentivar outras pessoas que se sentem caladas. A gente tem sim que abrir a boca e procurar acolhimento. Fazer entender que não se está só diante de uma violência como essa.”
Silvero Pereira veste look completo e sandálias da LED. Foto: Rafael Monteiro. Beleza: Raul Hollanda. Styling: João Ker e Natália Borba.
Silvero nas alturas
Os “vários convites” que “Bacurau” rendeu a Silvero estão começando a se materializar. Nas últimas semanas, ele foi anunciado como parte do elenco da próxima série brasileira de comédia da Netflix, ainda sem título divulgado. “Só posso dizer que envolve suspense, mistério e tem um elenco maravilhoso”, comenta. Além dele, nomes como Fernanda Paes Leme, Romulo Arantes Neto e Marcelo Médici também integram a equipe.
Há ainda a produção biográfica sobre a vida de Clodovil Hernandes, uma das maiores, mais emblemáticas, controversas e polarizantes da história LGBTI+ brasileira. O convite para dar vida ao estilista, deputado e apresentador veio quando Silvero postou fotos com o cabelo platinado, algo que atraiu a atenção do público e da produção para a similaridade física entre ele e Clodovil. O projeto, ainda em fase de pré-produção e sem plataforma de exibição definida, deve começar as filmagens apenas no ano que vem, o que não impede o ator de já saber exatamente o que pretende extrair do papel.
“O que mais me interessa nessa série é trazer um Clodovil que as pessoas não conheçam tanto. As falas dele enquanto apresentador, político e figura pública todo mundo conhece. Inclusive, ele é muito criticado pela comunidade por todos os posicionamentos LGBTIfobicos que já fez. Mas me interessa entender muito a infância dele e o crescimento desse corpo. Quais os sentimentos de solidão que ele enfrentou? A falta da família? O que fazia ele ser tão reativo no que falava?”, adianta.
Silvero Pereira veste camisa de linho da Além Design; calça por Reinaldo Lourenço, acervo Paulo Vichtor; e sandálias da LED. Foto: Rafael Monteiro. Beleza: Raul Hollanda. Styling: João Ker e Natália Borba.
Ele ainda volta aos cinemas no segundo semestre deste ano, quando deve estrear a comédia “Me tira da mira”, produzida e estrelada por Cléo Pires, que se junta a Fábio Jr e Fiuk nas telas pela primeira vez. “Eu faço um mafioso equatoriano, o vilão da história, mas algo completamente diferente do Silvero como atmosfera e interpretação. Foi divertidíssimo”, conta.
Há também a próxima comédia de Halder Gomes e Edmilson Filho, “Bem-vinda a Quixeramobim”, que marcou o primeiro trabalho de Silvero rodado em seu Estado natal. No longa-metragem, ele vive um personagem “extremamente escroto, cafajeste de última categoria”, através do qual viverá cenas “bem sensíveis” de assédio e denúncia com Monique Alfradique. “Enquanto ator, a gente sempre busca essa pluralidade nos trabalhos”, comemora.
Paralelamente, Silvero aparece ainda no novo single do cantor Daniel Peixoto, “Anjo Querubim”, uma releitura eletrônica do forró clássico de Petrúcio Amorim, produzida agora pelo DJ Chernobyl. A parceria com o conterrâneo cearense, ele diz, não chega a ser uma surpresa, mas sem dúvidas é uma felicidade.
“Na tentativa de construir uma outra imagem do Silvero, consegui também desconstruir o mercado”
“Conheço o Daniel desde que comecei a fazer teatro. Muito da minha formação passa pelos espetáculos que fui ver no Cariri, onde eu o conheci há 20 anos. Tendo visto o processo dele de sair do Crato, ir para Fortaleza, para São Paulo, pro Montage e agora estar com ele cantando uma música da nossa geração me deixa muito emocionado. É o encontro de dois cearense LGBTQIA e eu não poderia estar mais orgulhoso”, conta.
Apesar da música e de já ter dividido o palco com nomes como Sandy, Johnny Hooker, Matheus VK e Pabllo Vittar, ele diz que não se considera cantor, mesmo levando no gogó o Bloco das Travestidas, atração das mais prestigiadas no carnaval cearense e organizada pelo coletivo que integrou até o ano passado. “O coletivo continua existindo, com sua história e seus trabalhos. Ainda tenho uma relação de família e irmandade com todas essas pessoas, e ainda pretendo trabalhar com elas.”
Sem a certeza se o bloco vai conseguir ir pra rua no carnaval de 2022, Silvero aproveita e vai tocando seu retorno à TV, sobre o qual não pode revelar detalhes, e um dos seus projetos mais pessoais até agora. Voltando à produção de bastidor, o ator prepara o roteiro para sua primeira série original de suspense, que a princípio terá sete episódios e contará a história da cena LGBTI+ cearense e brasileira pelas pistas da boate Divine, inferninho que foi icônico no centro de Fortaleza.
Silvero Pereira usa vestido de Weider Silveiro, bota da LED e chapéu do acervo. Foto: Rafael Monteiro. Beleza: Raul Hollanda. Styling: João Ker e Natália Borba.
“Já tenho o arco dos sete episódios prontos e entraremos em pré-produção no final de 2022. Mas já sei que quero pelo menos 90% da equipe LGBTQIA+. Pra mim, o mais importante é a contratação dessas pessoas em todos os âmbitos da série, no figurino, na atuação, na direção etc.”, adianta, citando “Pose” e o livro “Devassos no Paraíso”, de João Silvério Trevisan, como duas das principais referências.
Apesar de ainda não ter data de lançamento prevista, a produção já promete agitar a cena LGBTI+ e o mercado audiovisual brasileiros, ambos com uma falta gritante de representatividade.
E ninguém melhor para capitanear essa nova era do que Silvero. Nas palavras dele mesmo: “Na tentativa de construir uma outra imagem do Silvero, consegui também desconstruir o mercado.”