Em mais um ataque na sua caçada a qualquer tipo de diversidade, Jair Bolsonaro (PSC) direcionou o ódio de seus mais de 4 milhões de seguidores no Facebook à Zona da Mata de Minas Gerais. O alvo? A drag queen Femmenino, personagem criada pelo estudante de artes e design Nino de Barros (22), bolsista da Universidade Federal de Juiz de Fora. Na última sexta (14), o deputado publicou um vídeo em que ela aparece no Colégio João XXVIII, sob a legenda: “Prestem atenção na canalhice que estão fazendo com nossas crianças”. A canalhice? Um trecho de 15 segundos – cortado da versão original com mais de 4 minutos -, no qual a artista diz não existir diferença para brinquedos de meninos e meninas. Logo em seguida, as redes sociais de Nino estavam lotadas com comentários raivosos sobre ele estar “implantando ideologias demoníacas” na escola, tudo por conta de um clipe que já beira as 900 mil visualizações.

O vídeo original, postado e produzido pela própria universidade, faz parte do programa mensal “Na hora do lanche”, apresentado por Nino desde maio. Para a edição de outubro, dedicada ao Mês das Crianças, ele se vestiu de Femmenino e foi conversar com os personagens mirins sobre os presentes, as merendas, o Dia do Professor e uma série de assuntos que a equipe Bolsonaro esqueceu de incluir. “A proposta era criar um material que envolvesse as crianças, justamente por conta da data, mas que tivesse um apelo diferente também, pelo debate e pela diversidade – algo que eu sempre abordo, independente do episódio”, comenta o rapaz, acrescentando que essa é a segunda vez que apresenta a atração como drag.

Em um dos momentos de “Na hora do lanche”, logo após uma criança gritar que brinquedo de menino e menina “É preconceito!”, Femmenino comenta: “Toma família brasileira!”. No vídeo que ela gravou sobre o ocorrido, lendo alguns dos vários comentários que recebeu, a artista fez questão de explicar o que quis dizer com a expressão: “Queremos acabar com um formato muito específico de família patriarcal, misógina e homofóbica, que mantém homens e mulheres presos em padrões do passado. (…)  A gente quer que meninos brinquem de boneca e cresçam para ser pais carinhosos. Queremos que eles brinquem de vassourinha e dividam as tarefas da casa com suas mulheres. A gente quer que as meninas brinquem de carrinho, gritem, corram e tenham liberdade corporal para crescerem mulheres fortes e donas de si”.

A indignação causada pela plataforma social acabou tomando proporções maiores do que os ataques na esfera online. Na terça (17), os vereadores André Mariano (PSC) e José Fiorilo (PTC) tentaram aprovar uma moção de repúdio ao “Na hora do lanche” e a Femmenino. Durante a votação na Câmara, eles foram barrados por protestos da comunidade LGBT+ de Juiz de Fora, que já prometeu acompanhar de perto o desenrolar a questão e não recuar.

 

Queremos acabar com um formato muito específico de família patriarcal, misógina e homofóbica

 

Paralelamente, o conselheiro tutelar Abraão Fernandes Nogueira, já acusado de racismo por falar que uma mulher negra de 25 anos tinha “cor de bosta”, também tentou emplacar um ofício no Ministério Público Federal. O pedido era para que o MPF apurasse a conduta de Nino e da universidade, alegando que a drag havia ensinado “ideologia de gênero” na escola e “indo na contramão” do direito que os pais têm de educarem seus filhos.

Dessa vez, quem se pronunciou foi a OAB, publicando uma carta de apoio à UFJF e à drag queen: “Fomentar reflexão sobre gênero nas escolas é contribuir para a desconstrução da cultura do machismo, que produz das mais diversas violências contra as mulheres, desde a mais tenra idade; para o combate à LGBTfobia, que mata diariamente seres humanos no Brasil; é contribuir para o reconhecimento da diversidade e respeito aos direitos humanos”, declarou o órgão.

Acusado de racismo após dizer que uma mulher negra teria “cor de bosta”, o conselheiro tutelar Abraão Fernandes Nogueira tentou entrar com uma moção contra a UFJF e Femmenino, mas foi rechaçado pela OAB (Foto: Reprodução Youtube)

“Eu imaginei que o material teria alguma repercussão, mas não pensei que seria vítima de um jogo político da direita”, confessa Nino, em entrevista à Híbrida. Em sua página no Facebook, ele respondeu alguns dos comentários publicados nas suas redes sociais, nos quais é xingado de “aberração”, “doente mental” e “satanista”. “Esse é o grande problema de tudo! As pessoas nos comentários não querem ter um conhecimento da causa, elas querem apenas reproduzir uma opinião mal estabelecida e fora de contexto”, comenta o artista.

A ideia e a figura de Nino, como pode ser visto no programa, condiz com o que a criançada do João XXIII parece pensar. Ao longo do vídeo, elas são vistas penteando o cabelo de Femmenino, pedindo autógrafos, sendo abraçadas e confundindo a performer com Pabllo Viitar. “Fico feliz de ver que as crianças no vídeo entenderam a mensagem. Essa experiência toda foi incrível. Para mim, a repercussão positiva é muito mais valiosa do que discurso de ódio”, ela comenta sobre os efeitos colaterais da megaexposição, comemorando: “A minha página e o meu perfil como drag têm sido muito mais visualizados. Sinto que meu trabalho alcançou um objetivo e isso me deixa muito feliz. Não tô aqui pra ficar me envolvendo em confusão de reacionários. Esse não é meu público-alvo e definitivamente não é para quem eu faço a minha arte. Não existe publicidade ruim, existe apenas publicidade. E eles estão fazendo esse trabalho por mim”.

Femmenino distribui autógrafos para as crianças do Colégio de Aplicação João XXIII durante a gravação do programa “Na hora do lanche” (Foto: Reprodução Youtube)

La Femme Nino:

Nascido em Caratinga, interior de Minas Gerais, Nino de Barros começou a se montar como drag queen há cerca de dois anos, graças ao bloco “Realce”, um coletivo carnavalesco em Juiz de Fora que hoje colore a programação da cidade ao longo de todo o ano. Voltado para o público LGBT+, o grupo reforça a cultura queer já latente na Zona da Mata, realizando eventos em universidades, casas noturnas, centros culturais e bares.

Nino sobre a repercussão do vídeo de “Na hora do lanche”: “Esse ódio só existe na internet. Aqui, as pessoas me param na rua para me dar apoio” (Foto: Reprodução Instagram)

Inspirada por Sharon Needles, a vencedora da 4ª temporada de “RuPaul’s Drag Race” cujo estilo inconfundivelmente andrógino, chique e rebelde pode ser percebido em sua performance, Femmenino já é um nome conhecido na cena local. Após chamar atenção com seu visual e sua atitude gender fluid, ela posou para marcas como Chico Rei e já realizou uma performance na qual se montava como drag na vitrine de uma loja de materiais esportivos. “Sempre fui muito respeitada em JF. Esse ódio só existe na internet. Aqui, as pessoas me param na rua para me dar apoio”, explica.

Apesar das distorções criadas por perfis como “Intervenção militar no Brasil” e “Opinião verdade”, Nino enfatiza que a mensagem passada através de sua arte é a do amor e da aceitação: “A gente quer um mundo mais justo, onde as pessoas respeitem tanto a decisão quanto a vida do outro. Principalmente se não está prejudicando ninguém e nem aprisionando o mundo em estereótipos”, explica. O princípio, ele afirma, é básico: “Não é porque a pessoa é diferente de você que ela é uma aberração”.

Femmenino: “Não é porque a pessoa é diferente de você que ela é uma aberração” (Foto: Reprodução Instagram)