Se você não vive em uma ilha deserta sem acesso a TV, rádio ou internet, a essa altura já está sabendo que Anitta terminou seu projeto “Check Mate” com o lançamento de “Vai Malandra”, seu aguardado retorno ao funk carioca. Com participações de MC Zaac e do rapper norte-americano Maejor, a faixa foi lançada na segunda-feira juntamente com o clipe e o que veio depois foi história no cenário musical brasileiro: o single quebrou recordes de visualizações no Youtube e já se tornou a primeira música em português a entrar no Top 20 do Spotify global.
Mas as reações geradas por “Vai Malandra” foram além da aclamação comercial: críticas, análises, protestos e aprovações pipocaram na imprensa e nas redes sociais, enquanto temas como empoderamento feminino, objetificação, apropriação racial e romantização da periferia eram teorizados. Enquanto cada jornalista, teórico, crítico e fã discutiam frame por frame do vídeo, Anitta saboreava o triunfo de seu check mate e permanecia na boca e nos ouvidos dos brasileiros ao longo de toda a semana, conquistando ainda mais visibilidade.
Tudo isso faz parte de um tino comercial e de uma noção da própria marca que muitos publicitários dariam o braço para ter. Anitta, como já cansou de afirmar, é responsável por tudo o que entra ou não, acontece ou não em sua carreira. Dos dançarinos e produtores de seus clipes aos empresários, entrevistas e parcerias que conquistou no mercado internacional esse ano, a menina de 24 anos que nasceu na periferia do Rio de Janeiro manteve o comando de seu barco como poucas artistas são capazes. E se alguém duvida, Marcelo Sebá, roteirista e diretor criativo de “Vai Malandra”, faz questão de frisar: “Ela participa incansavelmente de todas as etapas do trabalho criativo que assina”.
Em entrevista exclusiva à Híbrida, Marcelo, que tem um extenso currículo de produção e direção criativa com algumas das maiores marcas e personalidades do país, assumindo recentemente a carreira de Ludmilla inclusive, conta como foi o processo por trás do clipe definitivo de 2017. “Nós passamos 3 horas nos preparando e outras 17 filmando. Era um domingo de chuva no Vidigal, então quando vimos haviam centenas de pessoas na rua. A Anitta fez questão de ir até o final e não descansou até termos gravado cada cena que eu desenhei para o storyboard“, ele revela.
De fato, enquanto Anitta subia de mototaxi o morro do Vidigal, na Zona Sul do Rio, sua presença na favela já era documentada por paparazzi, fãs e pelo seu próprio Instagram. Antes mesmo de ter ouvido uma batida sequer da música, o público já jogou “Vai Malandra” nos assuntos mais comentados da internet. No mesmo dia, personalidades como Jojo Toddynho, Érika Bronze (responsável pelo agora icônico biquíni de fita isolante) e Pietro Baltazar (o “Justin Bieber do Vidigal”), tiveram seus perfis esmiuçados e divulgados na imprensa. O cenário estava montado e a expectativa gerada para uma das estreias mais aguardada da música brasileira nos últimos anos.
E eis que veio a hora de filmar uma das cenas mais emblemáticas, nas próprias palavras de seu idealizador. “Ao longo da carreira, a bunda da Anitta se tornou quase um personagem à parte, foi algo que chamou a atenção desde o início. E agora, nesse momento em que ela está tomando proporções internacionais, eu tive essa vontade de mostra-la voltando ao funk, voltando à favela e resgatando as suas origens no clipe”, explica Marcelo. E então nasceu o close que todos comentaram: a maior popstar brasileira subindo o morro com um shortinho rosa e as pernas marcadas por celulites. Uma cena que seria simples e banal, não fosse a magnitude de Anitta.
‘Essa sou eu e a minha bunda é assim, gente. Eu quero que esse clipe seja real, não vai apagar nada’.
“Ela bateu pé do início ao fim para manter as celulites no clipe. Teve muita gente que tentou apaga-las na edição, eu mesmo sugeri que poderíamos voltar no dia seguinte e gravar com uma dublê, mas ela fez questão de mostrar o corpo daquele jeito. ‘Essa sou eu e a minha bunda é assim, gente. Eu quero que esse clipe seja real, não vai apagar nada’. O mérito foi todo dela”, Marcelo pontua. E, digam o que quiserem, mas o fato é que “Vai Malandra” mostrou a realidade periférica sem filtros como poucos artistas ousaram até então.
As mulheres que aparecem se bronzeando com fita isolante, por exemplo, são clientes reais de Érika. “Nós deixamos que ela escolhesse as 12 meninas para o vídeo. Não houve ‘casting’ para essa cena – são pessoas normais, mostrando uma atividade real das comunidades, que vieram de Realengo a pedido da Érika”, Marcelo esclarece. Ele ainda toca em outro ponto pouco debatido nos últimos dias: “O Vidigal tem uma das vistas mais lindas em todo o Rio de Janeiro, mas ela não aparece em nenhum momento do vídeo. Quem faz isso?! Nós apontamos a câmera apenas para a realidade da favela e como essa gente vive cercada, em meio a uma guerra civil, mas ainda assim consegue ser feliz e se divertir”.
Um dos aspectos mais discutidos do vídeo traz de volta outro assunto que percorre a trajetória de Anitta, como já citado acima: sua bunda. Enquanto uns disseram que aparecer com homens passando a mão em seu corpo era uma forma de se objetificar e replicar o machismo, outros como Ivana Bentes, teórica, comunicóloga e ex-Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural, a defenderam: “A bunda (e o corpo das mulheres) pode se deslocar da objetificação para a subjetivação! A bunda viva de Anitta com sua celulite sem photoshop é sujeito e não objeto. Se as mulheres fazem o que quiserem com seus corpos (a Marcha das Vadias explicou isso para a classe média), elas podem inclusive se “autoexplorarem”, ensina o funk”, escreveu Ivana para a revista Cult, apontando para um novo tipo de feminismo onde a mulher comanda a própria monetização de suas vidas.
Para Marcelo, o conceito por trás dessas cenas e o objetivo dele, da produção e da própria artista são claros. “Quando comecei a pesquisa para o clipe, percebi que no funk a mulher é sempre um objeto para os homens, sempre em segundo plano. Então pensei por que não inverter o jogo e colocar a Anitta assumindo isso? ‘A bunda é minha sim e eu faço o que quiser com ela'”.
O empoderamento feminino mirado pelo vídeo, ele reforça, vai além. “Se você perceber, a cena final do baile funk é composta por mais de 60 mulheres, de todos os tipos. Os únicos homens que aparecem são os artistas que participam da música. Inclusive, fizemos questão de colocar mulheres transexuais e não-binárias, que não são tão recorrentes em clipes desse gênero”, completa, citando as presenças de Wallace Ruy, Jessica Tuane e Goan Fragoso como diversidade dessa representação.
Outro “erro” apontado pelas críticas foi a escolha de Terry Richardson para a direção do clipe. Fotógrafo norte-americano de renome mundial e responsável por parcerias com artistas como Taylor Swift (“The Last Time”), Miley Cyrus (“Wrecking Ball”) e Beyoncé (“XO”), apenas para citar algumas mais recentes nos últimos anos, ele tem sido acusado publicamente há pelo menos uma década de assédio sexual. Quando o tópico estourou no último mês, Anitta emitiu um pronunciamento oficial dizendo que cogitou cancelar a produção, mas resolveu mantê-la por respeito aos moradores do Vidigal, além de reforçar que repudia qualquer forma de abuso, assédio ou machismo.
No Instagram, Marcelo, que vem trabalhando com Terry ao longo da última década e foi responsável pela parceria do americano com Lady Gaga no livro de fotografias que eles lançaram juntos, apoiou a decisão e o pronunciamento de Anitta. Ela, por sua vez, postou uma foto com ele chamando-o de diretor, um cargo que faz total sentido uma vez que ele criou o conceito do clipe e acompanhou todos os estágios da produção.
E se o motivo de Anitta não ter cancelado foi por querer alavancar a vida, a visibilidade e a rotina real do Vidigal, o objetivo foi alcançado com louvor. No live feito antes do lançamento de “Vai Malandra”, Érika Bronze contou que sua laje anda lotada com clientes querendo o bronzeamento de fita isolante. Jojo Toddynho deu entrevistas para veículos como a Vogue Brasil, uma revista no mínimo elitista e problemática, que deu espaço para que a mulher mostrasse a positividade que sente sobre seu corpo. Pietro Baltazar, por sua vez, fez sucesso na última São Paulo Fashion Week e se tornou it boy da moda nacional. E, mais importante do que tudo isso, o próprio Brasil foi obrigado a olhar para uma realidade que todos, do Prefeito ao Presidente, tentam esconder ou ignorar.
Com isso, fica claro que já passou da hora de os brasileiros aceitarem Anitta pelo que ela é: uma artista. Ela pode ser funkeira, pode rebolar sua bunda hoje e amanhã, pode aparecer seminua, bater no peito e gritar que é da favela, e em meio a tudo isso ela continuará sendo uma artista de verdade. Afinal, o próprio conceito de arte não diz que a obra deve incitar o questionamento?
Num ano em que os brasileiros foram forçados a lidar com termos que trouxeram à tona vergonhas de um passado não tão distante, com “cura gay”, “ditadura militar” e “censura” ganhando mais espaço do que deveriam na política e na mídia, Anitta se mostrou uma ativista capaz de se expressar através do funk. Algo que nem mesmo parte da elite de esquerda consegue engolir ainda.
Tentaram censurar o funk, ela esfregou o número do projeto de lei na cara de todo mundo enquanto fazia o videoclipe de maior sucesso do país subindo a favela de mototaxi. Um vereador a chamou publicamente de prostituta, e ao invés de se cobrir com vergonha, ela ficou seminua, com celulites à mostra, para ser vista mais de 36 milhões de vezes no Youtube. Se todo brasileiro tivesse metade desse orgulho de seu país e de sua cultura, talvez nós não tivéssemos aceitado que ele se tornasse no que é hoje. Vai, malandra, continua brincando com teu bumbum o tanto que quiser e derramando o óleo de bronze na garganta dos caretas.