Após um período de “redescobrimento” da música nacional, Silva lançou no final de maio “Brasileiro”, seu 4º álbum autoral pelo selo alternativo Slap e que traz consigo uma travessia sonora no catálogo do artista. “Meu som sempre foi meio ‘gringo’. Eu tinha uma preocupação de saber qual o artista novo na MTV de Nova York, por exemplo. Agora, acho que estou mais maduro. Tavez tenha a ver com a chegada aos 30 anos”, o cantor, produtor e muti-instrumentalista conta, em entrevista exclusiva à Híbrida.

A expectativa em torno de “Brasileiro” era grande, já que ele veio logo após o sucesso estrondoso de “Silva Canta Marisa” (2016), um álbum no qual o cantor reinterpretou pérolas do catálogo de Marisa Monte, dividiu a inédita “Noturna (Nada de Novo na Noite)” com a artista, rodou o mundo com sua turnê de divulgação e foi indicado pela primeira vez ao Grammy Latino (“Melhor música em língua portuguesa” e “Melhor Álbum de MPB”).

“No meio da minha turnê com a Marisa, eu sabia que precisaria lançar algo meu em breve. Rolou uma pequena pressão, do tipo ‘Ah, tá na hora já’. Então, fui começando o processo de forma bem intuitiva, aceitando o que viesse. E as músicas vinham com uma cara bem brasileira”, ele conta sobre o processo de composição que antecedeu o disco.

Na setlist, além do cancioneiro popular eternizado na voz de Marisa, Silva apresentou pela primeira vez no palco versões para sucessos de outros pilares da música brasileira, como Caetano Veloso, Novos Baianos e Tim Maia, o que acabou abrindo seus olhos para um território que ele ainda mal tinha explorado em sua própria discografia.

“Existe essa ideia de que são músicas brasileiras ‘pra gringo ouvir’, mas eu passei por um período bem grande de pesquisa, descobrindo várias coisas dos anos 1970 e 1980 e vendo que aquela época era bem menos careta do que hoje, inclusive na estética”, ele conta.

Para além do mergulho no catálogo de Marisa, Silva ainda conta que o contato pessoal com a artista também serviu de inspiração para essa sua nova fase criativa e pessoal, já que acabou de completar 30 anos, no último dia 3. “Estar perto dela é mágico, ela tem uma autoestima maravilhosa. Não de uma forma arrogante, mas no sentido de gostar de você mesmo, de quem você é. Ela se curte e é super antenada em tudo o que acontece – uma vez cheguei na casa dela e a encontrei cantando Camila Cabello, por exemplo. E eu acho que isso me influenciou muito, sabe?”, explica.

Assim, surgiu a sonoridade de“Brasileiro”, trazendo uma brisa das batidas eletrônicas de “Júpiter” (2015), seu último trabalho autoral, mas permeado de verdade pela pegada mais acústica da MPB, do samba e da bossa nova, numa mistura que poderia ser perigosa na mão de outros compositores, mas consegue fazer sentido no repertório de Silva.

E, mesmo com o título sugestivo em um período tão sombrio e dúbio do país, ele afirma que o álbum não veio com pretensão de ser uma grande crítica social, ainda que não fuja do tema nas entelinhas. “Eu não fico como escapismo, mas acho que quanto mais você reclama do calor, mais quente fica”, explica.

A metáfora se traduz na música através de versos que não chegam a falar explicitamente sobre política, mas que também não deixam de levantar questões e ideias permeadas pelo tema. “Brasileiro” já abre com “Nada Será Mais Como Era Antes”, um título sugestivo, no mínimo. “Eu já me perguntei como a gente vai ser brasileiro / Não abrace o desdém, muita gente não gosta daqui”, ele canta.

Eu acho que alcanço mais as pessoas assim, falando com beleza

Mais à frente, em “Brasil, Brasil”, que fecha o álbum, Silva se desfaz em samba de amor ao país, apoiado apenas por um coro de palmas e um violão. “A política não está fácil, mas eu tenho amigos muito melhores do que eu para falar sobre isso”, comenta. “Eu sou músico, gosto de estúdio. E acho que ser leve requer um esforço, sacou? Você precisa se mexer, sair da cama e ver o sol lá fora, o que nem sempre é fácil. E eu acho que precisamos disso agora. Não é questão de entregar os pontos, é se fortalecer para quando baterem.”

E enquanto uns preferem levantar as bandeiras da música-manifesto, Silva chega na dele, cantando poesia e pensando na corrida a longo prazo, sem sentir a pressão de ser explicitamente político, mesmo que não deixe de se declarar como uma pessoa de esquerda. “Essa coisa do ‘tem que ter’ é muito chata. O que ‘tem que ter’ é amor e respeito. Eu acho que alcanço mais as pessoas assim, falando com beleza. Estou fazendo o que me faz bem”, ele diz, completando que deseja produzir um som atemporal, que inspire quem vá ouvi-lo daqui a 20 anos: “Luto por isso”.

A Cor é Rosa

Silva segura bandeira do Brasile stilizada na cor rosa, durante show em São Paulo (Foto: Breno Galtier | Reprodução Instagram)
Silva segura bandeira do Brasile stilizada na cor rosa, durante show em São Paulo (Foto: Breno Galtier | Reprodução Instagram)

O primeiro vislumbre que os fãs tiveram de “Brasileiro” foi “A Cor é Rosa”, carro-chefe do disco que já chegou acompanhado de um videoclipe. A faixa, uma das 8 composições que seu irmão mais velho e braço-direito, Lucas Silva, assina para o LP,  é “cheia de significados”, como conta o próprio artista.

“Ela diz muito sobre o que o disco quer ser. A discussão política hoje tá parecendo uma briga de escola. Até cores como o verde e amarelo ou o vermelho assumiram um certo significado. Não posso mais sair com uma camisa do Brasil na rua porque podem achar que eu sou fã do MBL, por exemplo. No meio disso tudo, eu quis dizer que não sei o que eu sou – na verdade, sei; e eu sou rosa”, ele justifica.

E aí o rosa assume uma porção de sentidos, desde uma negação “àquela ideia dos anos 1990 de que essa cor é exclusivamente feminina” até à exaltação do Espírito Santo, seu estado de origem, cuja bandeira carrega duas listras em azul e rosa, e cujo céu explode em uma mistura de rosa com laranja durante o verão.

Mas por baixo dessas camadas há o conceito inicial desenvolvido por Lucas, que imaginou a canção como um diálogo entre Iemanjá e Iansã, no qual a rainha dos ventos e das tempestades se dirige à divindade das águas e da fertilidade. “Nós crescemos em uma família de religião protestante, então existe toda essa coisa que tivemos muita coragem de desconstruir”, afirma, antes de esclarecer seu posicionamento atual: “Hoje, eu acredito na energia boa”.

Há também uma possível interpretação mais subliminar de que, ao se declarar como “rosa”, uma cor historicamente limitada ao “feminino”, Silva esteja fazendo uma rara referência musical à sua orientação sexual. Não que ele a tenha escondido.

Ainda no ano passado, quando um fã comentou sobre a beleza de seu namorado, Fernando Sotele, no Twitter, ele logo respondeu: “É porque você não viu a gente na cama”. E até para quem não acompanha sua vida pessoal pelas redes sociais, seus videoclipes também indicam que o artista não está exatamente reforçando estereótipos de heterossexualidade. Em“Beija Eu”, ele troca um “selinho” com Arto Lindsey, enquanto em “Feliz e Ponto”, o primeiro indício explícito de sua sexualidade, ele aparece se relacionando com um homem e com uma mulher.

“Eu sempre gostei dessa coisa ambígua e nunca escondi nada sobre a minha vida. Apesar de achar que as pessoas deveriam se conhecer mais. Sou muito sincero nisso, se acho uma pessoa bonita, não me importa se seja homem, mulher ou transgênero. Beleza é beleza. Na verdade, se um dia surgisse a oportunidade de namorar um homem e uma mulher eu não negaria”, ele ri.

Para Silva, “Júpiter” ainda contém um dos momentos em que ele mais “se assumiu” publicamente, pelo menos em forma de canção: “A música Sou desse jeito’ é explicitamente sobre alguém se assumindo, mas de uma forma poética, menos óbvia. Desde que eu a lancei, muita gente veio me falar que se identificou com a letra. Mas não sei, tento não me levar muito a sério”.

Brasileiro e popular

Para quem já estava familiarizado com o som de Silva, o anúncio de uma parceria com Anitta pareceu, a princípio, algo no mínimo inusitado. De cara, não parece existir muitas interseções entre o pop radiofônico dela e a poesia minimalista dele. Mas então veio “Fica tudo bem”, uma canção de amor na qual a popstar aparece com o vocal mais contido, indo de encontro ao tom do cantor e mostrando sua faceta bossa nova, que, apesar de conhecida dos fãs, está longe de ser sua marca registrada.

A colaboração, ele conta, veio de uma admiração pela cantora e o convite foi rapidamente aceito por ela. “Eu acho que, para todos os sentidos da vida, nós precisamos trabalhar mais o conceito de ‘surpresa'”, ele ri. “Eu gosto de processar isso pra mim. Eu e Anitta não tínhamos nem amigos em comum, mas de cara eu pensei nela. Em termos midiáticos, ela é a maior brasileira que temos hoje em dia, e não duvido de nada em relação à carreira dela. Quando mandei a demo da música, já foi pensando no tom da voz dela”, revela.

Seguiu-se uma troca de mensagens por Instagram, depois por WhatsApp, um cronograma firmado rapidamente e, boom, a música ganhou clipe, entrou para o ranking global de virais do Spotify e do Youtube e foi incorporada na setlist de Anitta durante sua recente turnê europeia, além de ter sido anunciada recentemente como tema de “O Tempo Não Para”, próxima novela das 19h. “Acho ótimo [que tenha sido uma surpresa], porque ajuda a quebrar o preconceito musical também, que rola muito. A gente tem uma cultura tão rica e tão diversa! Meu objetivo maior é me conectar com o público, não tenho interesse em ser um ‘cantor de dicionário'”, ele afirma.

Apesar de rejeitar esse posto entre a “elite cultural” do Brasil, pelo menos no que diz respeito à soberba e à relutância contra o que é verdadeiramente popular, não há como negar que Silva está entre uns dos melhores e mais singulares compositores de sua geração, chamando a atenção com sua habilidade lírica desde o début autoral com LP “Claridão” (2012). Tanto que ele foi um dos escolhidos para integrar o time por trás de “A Pele do Futuro”, próximo álbum de Gal Costa que promete reinventar mais uma vez a imagem e o som de uma das maiores vozes na história da música mundial.

A experiência, ele conta, foi “chiquérrima” (um termo que pegou do vocabulário de Marisa Monte). “Eu acho a Gal um espetáculo de mulher, até hoje”, comenta. A relação dos dois começou ainda em 2015, quando Silva foi violinista e tecladista na turnê “Ela disse-me assim – Canções de Lupicínio Rodrigues”dirigida por Marcus Preto. “Ela trocava muito olhar comigo enquanto cantava, e eu ficava desconcertado. Fico imaginando o que aquela mulher não aprontou quando tinha a minha idade…”, ri.

Com letra de Omar Salomão (filho de Wally Salomão), “Palavras no Corpo”  teve melodia composta por Silva, cuja direção recebida foi algo que remetesse a Amy Winehouse e Etta James, de quem Gal é fã: “Eu também sou um ‘órfão’ da Amy. E essa foi a primeira vez que peguei um poema para colocar a música em cima. Mas sentei no piano, pensei na Gal e a música foi surgindo…”.

É com essa facilidade em compor e traduzir sentimentos complexos em versos diretos que Silva vem pouco a pouco conquistando mais espaço na música nacional, seja com as batidas eletrônicas ou com a celebração de ser brasileiro. Afinal, existe coisa mais brasileira do que misturar tudo e criar algo próprio?