Somos realmente livres?
Em 2018, o Brasil celebra os 130 anos da Lei Áurea e sua promessa de liberdade para a população negra que, até hoje, não chegou. Enquanto a história nos diz que esse aniversário deve ser celebrado, o país continua derramando o sangue das pessoas pretas pela rua, com o Atlas da Violência apontando que o assassinato de negros cresceu 23% no país, à medida que a população branca observou uma queda de 6,8% no mesmo índice.
Simultaneamente, continuamos recordistas no ranking mundial de assassinatos da população trans, com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais – Antra já registrando 113 homicídios até 31 de agosto deste ano.
Some a esse cenário o recente desfalque cultural, patrimonial e educacional que o Brasil sofreu com a perda do Museu Nacional, e o ato de resgatarmos nossa memória na tentativa de mudarmos nosso futuro se torna mais essencial do que nunca, ainda mais considerando como estamos por um triz de perder o resto da democracia que conhecemos.
Com isso, a força motivadora e inspiracional para essa edição, dedicada à pergunta “Liberdade?”, é Madame Satã, a primeira travesti preta e artista do Brasil, que simultaneamente carregava em si o papel de pai de família, o arquétipo do malandro e o espírito de alguém que passou quase 28 anos de sua vida atrás das grades porque não aceitava ser chamado de bicha e subjugado por uma sociedade que não sabia respeita-lo ou aceita-lo.
Madame Satã aparece na nossa matéria de Inspiração, onde você pode conhecer mais de sua história e as muitas particularidades de sua luta. Ele também aparece no nosso editorial de capa, encarnado por Aretha Sadick em fotos de Victor Takayama.
Ao mesmo tempo, é impossível não pensar que há um quê de Satã na rebeldia e resiliência de figuras como Ana Animal, que venceu as ruas de São Paulo para subir ao pódio mais alto dos últimos Gay Games. Ou na matéria especial sobre a vida de LGBTs negrxs nas periferias do Rio, onde você conhece a história de pessoas que se organizam e se preparam diariamente para lutar contra um sistema que põe suas vidas em jogo a caminho da escola ou dentro de casa, seja pela cor da pele, pelo status de classe, pela orientação sexual ou pela identidade de gênero.
Há de se sentir a presença de Satã também em pessoas que, assim como ele, desafiam as probabilidades e conquistam suas próprias liberdades individuais, ocupando espaços que lhes era negado até então.
É o caso do Quebrada Queer, o primeiro cypher LGBT do país e da América Latina, que chega com a promessa de renovar a cara do rap e mostrar novas chances de representatividade para os amantes do gênero; de Gabriela Loran, a primeira atriz trans a figurar no elenco de “Malhação” nos mais de 24 anos em que a novela é veiculada; de JLo Borges, artista visual, poeta, grafiteira, negra e lésbica, que transcende as expectativas de todos esses rótulos para apresentar o seu trabalho.
E o que dizer de Isaac Silva? Alguém que, assim como Madame Satã, usou as armas ao seu dispor – no caso, a moda – para proteger, impulsionar e agregar pessoas como ele, negrxs e LGBTs, em uma indústria pautada por discursos majoritariamente vazios e essencialmente excludentes.
Essa edição chega com todas essas promessas e relatos de novas narrativas, ao mesmo tempo em que o gosto amargo de Matheusas, Marielles e Dandaras continua na nossa boca. E traz consigo, em meio a todas essas realidade, a pergunta: liberdade como, quando e, mais importante, pra quem?