*Com João Ker
Culpe a chegada de “RuPaul’s Drag Race” à Netflix ou a ascensão meteórica de nomes como Pabllo Vittar ou Gloria Groove, mas a verdade é que a arte drag saiu do submundo e tem chegado ao mainstream no Brasil e no mundo, ampliando suas vozes, estéticas e formas. Pensando nisso, nós da Híbrida estreamos agora a coluna Drag Quem?, um espaço para apresentarmos novas artistas que têm apresentado um toque singular à cena. E nossa primeira estrela é Potyguara Bardo.
Direto de Natal, no Rio Grande do Norte, Potyguara transita entre desejos mundanos e a espiritualidade no seu álbum de estreia “Simulacre”, lançado em 2018 e eleito um dos melhores do ano pela Híbrida. Para ela, a música foi um caminho para entender o que a inquietava, assim como a realização de um sonho da infância que estava adormecido em meio à repressão de sua sexualidade na adolescência.
Em “Simulacre”, Poty, como é conhecida em Natal, traz emoção na voz, psicodelia bem humorada nas letras e uma mistura de influências na produção, que vai do funk ao reggae, entre parcerias com Luísa e os Alquimistas e Kaya Conky. Entre sarradas holísticas e realidades alternativas, a artista entrega no seu début um som divertido, singular, promissor e provocante, que dosa reflexão e irreverência na medida certa.
Poty conversou com a Híbrida durante sua primeira viagem profissional a São Paulo, em junho. Ali, no estúdio Freak, ela conta à revista sobre as experiências psicodélicas que a levaram de volta ao caminho da arte e relata sua trajetória enquanto drag potiguar que tem conseguido fazer burburinho em todo país.
Leia os principais trechos da entrevista abaixo.
Híbrida: O que veio primeiro, a drag ou a música?
Potyguara Bardo: A drag. Eu fazia Tecnologia da Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Depois de uma experiência psicodélica, percebi que estava gastando a minha vida não fazendo arte, o que eu sentia que tinha nascido para fazer. Sempre quis fazer arte, de todas as formas possíveis. Queria atuar, depois, na puberdade, comecei a escrever uns épicos – mas percebi que era plágio de Harry Potter e deixei pra lá (risos).
Durante o Ensino Médio, entrei no fundo de uma depressão e fui melhorando na faculdade, porque era um recomeço. Assumi minha sexualidade exatamente no final da escola e cheguei na universidade falando isso [que sou bissexual]. Foi muito libertador. Pela repressão da minha sexualidade, evitava fazer até algo muito natural para mim, a arte, que era visto como algo afeminado. Em Natal, se dizia muito ‘esse menino é artista’ como forma de dizer que ele é bicha. Isso ficou muito na minha cabeça, mas hoje penso ‘porra! É mesmo, eu sou!’.
H: De onde veio seu nome de drag?
PB: [Na primeira vez que me montei], tinha lido recentemente “A Experiência psicodélica”, de Timohy Leary, que é uma tradução ocidentalizada e resumida ‘Livro Tibetano dos Mortos’, que fala sobre a experiência psicodélica e como cada etapa é conhecida como um bardo. Tava muito encantado com esse conceito de o nada ser tudo. Queria um nome que representasse o que sou, mas que ao mesmo tempo não fosse um nome mesmo.
Então, Potyguara porque quem nasce no Rio Grande do Norte é potiguar – é de onde vem meu ego, onde nasci, onde meu corpo físico estava… E Bardo é de onde vem meu espírito, minha consciência e, na verdade, tudo que jorra da fonte da vida (na minha cabeça, né?). Aí decidi esse nome e me montei.
Percebi que poderia pegar um sentimento meu e transformar em som
– Potyguara Bardo
H A gente vê muitas drags surgindo nos últimos anos, mas a maioria delas vem do eixo Rio-São Paulo. É difícil ver artistas do Rio Grande do Norte fazendo esse burburinho na cena. Como foi pra você?
PB: Eu via muito o sucesso de Kaya [Conky, artista de Natal e amiga de Potyguara], que tinha lançado um funk como cantora drag. Ela me dizia desde o início: ‘Amiga, você sabe cantar, você devia fazer isso’. Mas nunca pensei nisso.
Por mais que eu escrevesse, nunca achei que teria uma “mente musical”. Daí, pensei: ‘O que eu faço dublando, se não observar, ouvir e pegar cada detalhe de uma música pra transformar aquilo em uma vibração, uma emoção, um movimento corporal?’. Percebi que poderia fazer essa engenharia reversa: pegar um sentimento meu e transformar em som. Como os elfos do mundo psicodélico fazem, que é a trilha sonora da realidade – inclusive, por isso uso as orelhas de elfo!
Um dia, estava no ônibus e veio uma melodia na minha cabeça. Era o refrão de ‘Você Não Existe’. Pensei: ‘Caramba! Esse negócio aqui é bom’. Percebi que queria fazer arte e não me limitar a uma coisa só. Falei com Matheus Tinoco, que tocava nas festas que eu performava, e produzimos juntos. Dante Augusto, um músico maravilhoso que era cunhado dele, tava no apartamento e o Matheus chamou para tocar a guitarra da música. Daí, formou nós três e é com eles que viajo para fazer shows com a banda.
H: O ‘Simulacre’ tem essa pegada de música drag que a gente está acostumado a ouvir, com músicas como ‘Mamma Mia’, que é divertidíssima; mas, ao mesmo tempo, você está rebolando e pensando em espiritualidade. Como foi juntar isso tudo num disco?
PB: Quando lancei “Você Não Existe”, Ana Morena [produtora do Centro Cultural DoSol] disse que tinha gostado da música e perguntou se eu queria fazer parte da incubadora do DoSol. Eu tava pensando em lançar singles, porque era o que eu podia fazer dentro da minha realidade. Mas quando ela falou isso, pensei: ‘Agora eu tenho a oportunidade de contar uma história’.
Peguei “Karamba”, que eu tinha um refrão e era a música mais superficial que eu podia fazer, e “Você Não Existe”, que é a mais significativa. Quis juntar essa dualidade em uma coisa só.
Sempre me apaixonava e não conseguia nada. Inclusive a temática do álbum vem muito disso
– Potyguara Bardo
H: Você falou rapidinho sobre ter saído do armário quando estava indo para a faculdade. Você poderia falar um pouco sobre essa vivência de ser gay no Rio Grande do Norte?
PB: Cresci estudando com as mesmas pessoas a vida inteira. Só na adolescência fui conhecendo com quem eu me sentia livre para falar sobre essas coisas. Na escola, eu parecia frígido, porque de maneira nenhuma ia despertar interesse em um garoto e também não sabia como conquistar garotas.
Quando eu cheguei no final do terceiro ano, ia deixar de ver aquelas pessoas todos os dias e pensei: ‘São meus amigos da vida toda, vou falar para eles’. Também já tinha um ciclo de amizade fora da escola, com quem comecei a sair à noite, conhecer as baladas… Aí, comecei a ter um pouco mais de liberdade.
H: E na universidade, foi tranquilo?
PB: Foi. A gente se junta com pessoas que têm energia parecida e, na noite, fui conhecendo pessoas que eram da minha família de espíritos, sei lá…
H: Juntando uma comunidade…
PB: Isso. Depois, a música me permitiu que eu expandisse essa comunidade, o que é massa.
H: Como foi fazer essa parceria com o Omulu, em “Ribuliço”?
PB: Ele me seguiu no Twitter e segui de volta. Um dia, ele tava falando sobre parcerias com artistas e respondi: me chama! Ele disse ‘vamos!’, mandou umas batidas e eu mandei uma música. Pensei que ia dar tempo de fazer uma música de São João. Ele gostou da minha música, mas acabou não trabalhando nela. Quando chegou mais perto, ele me mandou a letra de “Ribuliço”, eu amei na hora e fui ao estúdio gravar logo em seguida.
Ele falou que ia atrasar porque mandou para o engenheiro de som, o cara que fez “Despacito”. Eu já tava chocada que ia fazer alguma coisa com Omulu, que para mim é ícone da música, e simplesmente o bicho que trabalhou em um dos maiores hits ia participar também. Fiquei muito feliz.