Nunca foi tão importante celebrar a cultura transviada como hoje: apesar dos tempos sombrios e difíceis, são várias as conquistas de nossas lutas até aqui. Pensando nas manifestações da cultura ballroom, uma das mais importantes formas de celebração LGBTI+, o pesquisador Ademir Corrêa acaba de lançar o livro Cinema Queerité, pela Paco Editorial.

A obra perpassa principalmente pelo documentário Paris Is Burning, lançado em 1990, onde a diretora Jennie Livingston investiga as vivências de mulheres trans, travestis e gays afeminadas que encontravam lugares seguros naqueles bailes e festas para colocarem em prática verdadeiros exercícios da fluidez de identidade. “A cultura ballroom começa como um refúgio, um local queer de proteção, e evolui para a expressão cultural das individualidades. E Paris Is Burning, o filme, para mim, é sobre amor”, conta Ademir .

Corrêa dialoga com Paul B. Preciado e Judith Butler, filosófes canônicas que têm discutido questões relacionadas a corpo e sexualidade em seus livros, mas para além disso, também utiliza referências de Denilson Lopes e Guacira Lopes Louro, decolonizando e aproximando as vivências transviadas ao contexto sudaca.

Capa do livro "Cinema Queerité" (Reprodução)
Capa do livro “Cinema Queerité” (Reprodução)

Paris is Burning é um marco no cinema queer, e até hoje inspira não só RuPaul’s Drag Race, mas produções como Pose, da FOX, e o reality Legendary, do HBO Max, pensando sobre arte de resistência, liberdades individuais, luta contra o preconceito e expressão. Na edição de 2020 do Festival Mix Brasil, Ademir chegou a participar do Mix Talks sobre Cultura Ballroom, onde conversou com membros da cena de voguing sobre a importância de criação desses espaços para a comunidade LGBTI+. O livro de Ademir Corrêa já nasce urgente e fundamental para aqueles que se interessam por pesquisas das vivências dissidentes, especialmente por ser lançado numa era onde o fomento para pesquisas relacionadas aos movimentos de emancipação têm sido drenadas: “A constante falta de visibilidade para teóricos queer no Brasil e também uma não-agenda de latinidades ao pensar esta comunidade” são os maiores desafios enfrentados pelo autor, de acordo com ele mesmo.

A publicação surgiu a partir de uma dissertação de Corrêa, que é mestre em comunicação especial pela Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, orientada por Bernadette Lyra, doutora em Cinema que abordou a luta pela visibilidade de corpos e gêneros (construídos) e desfilados na boate Imperial Elks Lodge, no Harlem, em Nova York – hoje, convertida em uma igreja messiânica. Eram homens e mulheres negros e negras, latinos e latinas, travestis e drag queens, que viviam em um contexto altamente repressivo e encontravam-se nesse espaço.

O documentário também inspira a capa de Cinema Queerité, assinada pelo artista-ativista paulistano Luan Zumbi, que discute aceitação e inclusão em suas obras. Para o trabalho, ele reinterpretou o cartaz do filme, estampado por Octavia St. Laurent. Disponível na loja Barra Funda Autoral (Rua Barra Funda, 935 – Barra Funda – São Paulo, que atende com hora marcada entre 14h e 22h de terça a domingo) e com renda obtida revertida para o Coletivo de Artistas Transmasculines (CATS), o livro também pode ser adquirido no site da Paco Editorial.

Abaixo, leia nossa entrevista com o autor:

Lançado em 1990, o documentário 'Paris Is Burning' é um marco na cultura ballroom, com personagens precursores da cena no mundo (Foto: Reprodução)
Lançado em 1990, o documentário ‘Paris Is Burning’ é um marco na cultura ballroom, com personagens precursores da cena no mundo (Foto: Reprodução)

HÍBRIDA: Como foi o processo de criação de Cinema Queerité?

ADEMIR CORREA: Desde que vi o filme pela primeira vez – idos dos anos de 1990 –, ficava maravilhado com aquele universo ballroom que, de alguma forma, explicava tanto sobre a minha própria vida e sobre o que eu achava que deveria ser o mundo, naquela época e hoje.

No processo do mestrado e do livro, evolui indagações que tentavam entender estatísticas de invisibilidade e sobre o porquê de aquelas vidas – vistas como dissidentes ou minoritárias – não serem celebradas. Hoje penso que, sempre que algo não se encaixa, a questão que precisa ser resolvida é o problema das regras que excluem, e não dos indivíduos que nela não se moldam.

H: O movimento ballroom tem aparecido em grandes produtos culturais como Legendary, da HBO, Pose, de Ryan Murphy, ou mesmo o fenômeno RuPaul’s Drag Race. De que maneira podemos participar de veículos midiáticos e ainda assim permanecermos subversivos e anti-capitalistas?

AC: Acredito que a evolução de uma cultura, ou um movimento como este, é o que a faz manter seu foco – mesmo após ciclos de apropriação pop como o que acontece com os drag balls. Eles são sobre artivismo, preencher espaços e muda-los – isso permanece na medida em que seus protagonistas ainda precisam lutar pelos mesmos direitos.

H: Você se insere como um dos teóricos mais originais do pensamento transviado brasileiro contemporâneo. Como você avalia essa cena e quais foram as suas bases decoloniais utilizadas durante essa pesquisa?

AC: Só posso agradecer seu elogio. Pela juventude da teoria queer e seus estudos, e pelas vivências que nela se inserem e desinserem, imagino que uma pesquisa sobre esta permanece viva, pensante, mutante. Penso eu, mas sem certezas, que traços de originalidade vêm dai, desta forma pulsante de pensar que se modifica no calor das vidas.

H: O que você descobriu sobre você mesmo enquanto fazia essa pesquisa?

AC: Descobri que eu realmente podia viver como pensava e que tinha que, de alguma forma, entender e defender os legados e as histórias apagadas que salvam vidas (incluindo a minha).