*Com Anita Guerra
Indicado ao Prêmio Félix, o filme Aos nossos filhos (2019), dirigido por Maria de Medeiros, teve sua pré-estreia oficial na programação do Festival do Rio, com sessão no Estação NET Gávea. Contando a história de Vera e Tânia, mãe e filha que sustentam uma difícil relação, o longa é inspirado na peça homônima e autobiográfica de Laura Castro.
No teatro, Aos nossos filhos foi estrelada pela autora e por Maria em 2013, permanecendo em cartaz por três anos no Brasil e em Portugal. Presentes na première do filme, elas assinam juntas a adaptação da história para os cinemas, além de integrarem o elenco.
“Estou muito emocionada. O filme levou quatro anos para sair e essa é a primeira vez que vou vê-lo junto ao público, numa sala de cinema”, disse Maria de Medeiros à Híbrida, minutos antes da exibição. Para ela, o processo de adaptação da peça às telonas foi desafiador: “É outro universo, né? Na peça, por exemplo, só temos dois personagens, enquanto no filme temos vários”.
No discurso de abertura da sessão, as roteiristas pontuaram a importância da resistência e sobrevivência do Festival do Rio e o fato de o filme ter sido realizado antes das eleições de 2018. “Ele também apresenta um retrato contrastante do que era o Brasil antes e do que é hoje”, disse Laura.
Paradoxos burgueses
“Aos nosso filhos” vive da dualidade entre mãe e filha de gerações e temperamentos diferentes: de um lado temos Vera (Marieta Severo), que convive com as memórias de quando foi presa pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) da ditadura civil-militar brasileira; do outro, conhecemos Tânia (vivida pela própria Laura), sua filha com Fernando (José de Abreu), nascida no período de redemocratização do país, lésbica e casada com Vanessa (Marta Nóbrega).
Vera coordena a ONG Positivida, que protege crianças soropositivas em uma favela carioca, enquanto Tânia vive um processo de reprodução assistida para que Vanessa gere o primeiro filho do casal. De cara, o filme deixa claro que mãe e filha não se falam há anos e aos poucos começam a se reaproximar, mesmo com o abismo no relacionamento de ambas. Vera, por sinal, não aceita bem o fato de Tânia ter escolhido ser mãe através da gestação de sua esposa, com quem nunca teve uma boa relação.
A peça de 2013 tinha Maria de Medeiros na pele de Vera, o primeiro desafio da atriz portuguesa no Brasil. A amizade e cumplicidade com Laura cresceu durante os três anos em que as duas trabalharam juntas nos palcos, então Maria deu a ideia de transformar o texto da amiga em um roteiro para o cinema.
“Quando a gente começou a escrever o roteiro do filme, havia algo de muito solar e feliz no Brasil. As pessoas estavam curtindo as novas liberdades, poder formar uma família com duas pessoas do mesmo sexo”, explica Maria de Medeiros, elogiando o avanço igualitário do Brasil em relação à França, onde mora. “Mas à medida que avançavam os anos e as coisas ficaram mais sombrias aqui, integramos isso à história. Ela se tornou ameaçadora e angustiante, mas trazendo algo natural dentro do processo que se encontra o país”.
Essa angústia faz florescer uma série de conflitos tanto entre as personagens quanto no âmbito individual de cada uma. Vera é assombrada pelas lembranças da prisão e dos episódios de tortura desde que encontra Sérgio, filho de uma ex-companheira de cela que busca saber mais sobre sua mãe. Tânia, por sua vez, experimenta uma distanciação de Vanessa ao longo da gravidez e sofre por não ser ela gestando biologicamente o filho, ao mesmo tempo em que se depara com fragilidade da mãe ao acompanhar seu trabalho na ONG.
O filme mostra de forma sensível os paradoxos da esquerda e da classe média alta brasileiras. Vera é uma mulher progressista, com fortes ideais sociais e populares, mas revela sua homofobia pelo relacionamento da filha, enxergando a inseminação como um “capricho”. Tânia, por outro lado, tem uma vida burguesa e por vezes demonstra preconceito com as crianças acolhidas pela mãe. Ao se aproximarem, elas se encaram nos fantasmas e cicatrizes sociais e familiares, engatilhados por experiências do passado de ambas.
“Desde a peça, havia essa ideia de as pessoas caírem em contradição. Todo mundo é cabeça aberta, mas todos os personagens têm os seus preconceitos, que vão percebendo ou não. A Maria também tinha essa ideia. Acho que é um pouco como acontece na vida”, disse Laura, afirmando que buscou escapar do maniqueísmo na construção dos personagens.
O roteiro comete a falha de, em nenhum momento, se referir a Tânia como lésbica ou bissexual, optando tratar sua sexualidade apenas como “gay”. Porém, “Aos nossos filhos” consegue fazer um público diverso apreender as complexidades da maternidade e de LGBTs, mostrando as incoerências e contradições presentes nessas relações, em um retrato muito atual da sociedade brasileira.