Hollywood começou a eclodir nas últimas semanas, graças às confissões divulgadas por Jodi Kantor e Megan Thowey contra Harvey Weinstein. Em uma reportagem para o The New York Times, as jornalistas denunciaram a extensão e os métodos de assédios sexuais cometidos por um dos mais renomados e poderosos produtores do mundo cinematográfico. Mais ainda, a matéria mostrava como muitas das acusações – relatadas por quase três décadas e sofridas por assistentes, modelos e atrizes reconhecidas, como Ashley Judd e Rose McGowan – foram silenciadas com acordos extrajudiciais milionários.

O escândalo foi ganhando dimensões mais astronômicas nos dias seguintes, com um longo artigo escrito por Ronan Farrow na The New Yorker e publicado na última terça (10/10). Fruto de mais de 10 meses de investigação, a matéria trouxe à tona mais uma leva de mulheres que acusaram o produtor de abuso, além de outras três que o indiciaram por estupro. Dentre as últimas, estava a atriz e diretora italiana Asia Argento – que descreveu o incidente como um “trauma horrível” – e um desconfortável áudio obtido pelo jornalista, no qual Weinstein é culpado por ter apalpado, sem consentimento, os seios da modelo Ambra Battilana Gutierrez, sob o pretexto de que ele “está acostumado com isso”.

As alegações presentes nas matérias não são exatamente novidade para quem acompanha a controversa indústria Hollywoodiana: desde os tempos áureos da década de ouro – com as trágicas histórias de Marilyn Monroe, Judy Garland e Natalie Wood, dentre muitas outras – até hoje, mulheres foram e continuam sendo vítimas de violência sexual em seus ambientes de trabalho. Na indústria do entretenimento, então, elas são constantemente exploradas por homens em posições de poder que conseguem obter o controle de suas carreiras. Mas, ainda assim, o caso específico de Harvey surpreende não apenas por tais agressões terem acontecido por tanto tempo e sem nenhuma punição, mas também pelo raio de alcance que elas atingiram, chegando a algumas das atrizes mais bem pagas de Hollywood, que apenas hoje reuniram a coragem para denunciá-lo publicamente.

 

O produtor Harvey Weinstein, acusado de assédio sexual por uma extensa lista de atrizes, modelos e assistentes ao longo de quase trinta anos (Foto: Reprodução)

É preciso entender que todas essas mulheres corriam um risco grave ao exporem seu abusador: Harvey Weinstein é um nome proeminente na indústria e na cultura do cinema norte-americano desde o começo de sua trajetória, na década de 1970, quando co-fundou com seu irmão Bob Weinstein a produtora Miramax, responsável por distribuir obras como “Sexo, Mentiras e Videotape” (1989), “Pulp Fiction: Tempo de Violência” (1994) e “Pânico” (1996). Sua ascensão com reinado absoluto no Oscar se deu entre os anos 1990 e 2000, quando garantiu estatuetas como as de Melhor Filme para “O Paciente Inglês” (1996), “Shakespeare Apaixonado” (1998) e “Chicago” (2002). Até mais recentemente, após ter fundado a produtora Weinstein Co. – para a qual se mudou depois do fim da Miramax, em 2005 -, Harvey teve sucessos de bilheteria e de crítica como “O Discurso do Rei” (2010), “O Lado Bom da Vida” (2012) e “Django Livre” (2012).

A postura e o temperamento dos irmãos Weinstein, especialmente a de Harvey, sempre foram vistas como ameaçadoras dentro e fora dos sets de filmagem. Matt Damon, que estrelou e roteirizou “Gênio Indomável” (1997) – distribuído pelo magnata -, uma vez o comparou a um escorpião, numa analogia sobre o poder que o produtor exercia em seus filmes e na carreira daqueles envolvidos. Stuart Burkin, ex-Miramax, também já alegou em entrevista à Vanity Fair que “a Miramax é feita de medo. Eles são intimidadores, gritam bastante e espumam pela boca”.

Mas a podridão do caso é mais profunda que isso: o próprio comportamento predatório de Harvey foi por décadas um “segredo aberto” na indústria, amenizado com piadas em séries de TV ou até mesmo em premiações nas quais ele esteva presente. Rumores sobre atrizes dormindo com o produtor em troca de fama sempre rondaram, mas apenas num tom que transferia a culpa para as próprias mulheres, como se procurassem tal situação. E mesmo com esses indícios, somente agora tal conduta foi amplamente divulgada e repudiada, com os desprezíveis detalhes sobre seus encontros (que seguiam quase uma rotina, segundo os relatos) vindo à tona através de nomes importantes e conhecidos no mercado cinematográfico mundial.

O caso de Harvey traz à memória o que aconteceu com Bill Cosby três anos atrás. Informações sobre seus abusos já corriam soltas nos bastidores, mas eram sempre varridas para “debaixo do tapete”, assim como suas denúncias. Foi somente quando Hannibal Buress chamou Cosby de “estuprador” em seu show de stand-up que a grande mídia começou a dar a devida atenção ao caso, encorajando assim outras mulheres a registrarem publicamente suas ocorrências.

Três décadas de abuso encobertas por três décadas de sucesso: “Pulp Fiction: Tempo de Violência” (1994), “Chicago” (2002) e “O Discurso do Rei” (2010) – todos produzidos por Weinstein (Foto: Divulgação)

Gwyneth Paltrow, umas das atrizes que se abriu para o The New York Times, conta que Harvey a convidou para um encontro disfarçado de reunião na suíte do hotel Peninsula Beverly Hills, por volta de 1994. Aos 22 anos, quando a atriz se preparava para filmar “Emma” (1996) – um dos filmes distribuídos pelo magnata -, Weinstein colocou suas mãos na jovem e pediu a ela para que fossem ao quarto, na intenção de receber uma massagem. Quando recusou, Paltrow confessou o ocorrido a Brad Pitt, seu namorado na época. Pitt então confrontou o produtor, que em seguida pediu sigilo sobre o caso. “Eu achei que ele fosse me despedir”, justificou recentemente a atriz.

Na mesma matéria, Tomi-Ann Roberts (retratada como sua primeira vítima, nos anos 1980), Rosanna Arquette, Katherine Kendall, Judith Godrèche, Dawn Dunning e Angelina Jolie também expuseram seus relatos e traumas pessoais com Weinstein. Léa Seydoux, Cara Delevingne, Claire ForlaniKate Beckinsale e a mãe de Eva Green (falando sobre a filha) foram outras que, em comunicados posteriores, compartilharam publicamente suas histórias  e demonstraram como a tática abusiva do produtor era controladora e seguia um mesmo “padrão de caça”.

Gwyneth Paltrow, Rose McGowan e Léa Seydoux: vítimas de Weinstein (Foto: Reprodução)

No meio do burburinho, quem também decidiu dar eco à situação e simultaneamente um tiro no pé foi Ben Affleck, que twittou: “Eu estou triste e nervoso que um homem com quem trabalhei usou de sua posição de poder para intimidar, assediar sexualmente e manipular várias mulheres durante décadas. As alegações adicionais de abuso que li nesta manhã” – possivelmente se referindo às matérias do NYT e da New Yorker – “me deixaram enojado. Isso é completamente inaceitável, e eu me encontro questionando o que posso fazer para ter certeza de que isso não ocorrerá com outras. Nós precisamos fazer melhor ao proteger nossas irmãs, amigas, colegas de trabalho e filhas. Nós devemos apoiar aquelas que vieram à frente, condenando esse tipo de comportamento quando o virmos e ajudando a assegurar mais posições de poder para mulheres”.

McGowan, uma das atrizes assediadas e que veio a ser suspensa do Twitter por 12 horas nesta quinta (12/10), logo condenou a declaração de Affleck, alegando que ele sabia dos avanços de Weinstein na época em que ambos trabalharam com o produtor. Já Hilarie Burton, atriz e apresentadora que entrevistou o ator para o programa “Total Request Live” da MTV, no início dos anos 2000, relembrou com outros usuários da rede social o dia em que Ben segurou seu seio esquerdo sem qualquer gesto de consentimento por parte dela.

Seguindo o mesmo caminho ribanceira abaixo, Matt Damon, amigo de infância de Affleck e com quem o ator trabalhou no filme que lhes rendeu o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 1998, também não escapou à hipocrisia: a fundadora do The Wrap, Sharon Waxman, alegou que ele e o ator Russel Crowe ligaram para ela tentando abafar uma matéria para o The New York Times, em 2004. Uma das pautas? Reportar o “cabeça” da Miramax na Itália, Fabrizio Lombardo, supostamente contratado para “tomar conta das necessidades mulheris de Weinstein”.

Embora Damon tenha negado saber as tarefas de Lombardo ou a postura de Weinstein, o ator, assim como Affleck, possui um passado obscuro em Hollywood, com seus próprios casos de assédio sexual pairando sobre a cabeça. Produtor de “Manchester à Beira-Mar” (2016), Damon convidou Casey Affleck (irmão de Ben) para o papel principal do projeto, mesmo após ele ser acusado de assédio sexual por colegas de trabalho, ainda em 2010. O resultado foi que durante a divulgação do filme, que acabou lhe rendendo o Oscar de Melhor Ator este ano, novas acusações por parte de mulheres da equipe vieram à tona, apenas para serem ignoradas tanto por Damon quanto por Ben, que preferiram focar a conversa na performance artística do ator.

Matt Damon, Casey Affleck, Ben Affleck e a hipocrisia que ecoa (Foto: Lester Cohen | Wireimage)

Com essa visão geral do panorama Hollywoodiano, é mais do que compreensível que as vítimas tenham se mantido caladas por tantos e tantos anos. Weinstein é uma personalidade importante e imponente. Seu cargo poderoso e sua postura tirânica intimidavam não só as mulheres abusadas – em sua maioria vulneráveis, jovens e em busca de sucesso -, mas também seus colegas mais estabilizados. Nenhuma delas foi capaz de expor o produtor publicamente não apenas pelo medo de perderem suas carreiras, mas pior ainda, serem desacreditadas.

A sensação de impotência se intensifica ainda mais com a ausência de consequências efetivas contra homens celebrados como Harvey. Enquanto Casey ganhou uma nova estatueta do Oscar após suas denúncias, obtendo mais prestígio à sua carreira, outros como Woody Allen e Roman Polanski – ambos acusados de pedofilia – continuam a fazer filmes e a serem reverenciados pela sétima arte. Em situação igualmente agravante ou até pior dada sua escala, o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foi eleito mesmo depois do vazamento de um áudio no qual se gabava de abusar sexualmente de mulheres.

Woody Allen, Roman Polanski e Donald Trump: acusados de assédio sem grandes consequências (Foto: Reprodução)

Porém, pode ser que a maré esteja prestes a mudar para esses predadores. Diferentemente do que (não) aconteceu com Affleck, Allen, Polanski ou Trump, as acusações contra Weinstein já estão surtindo efeito: a Academia Britânica de Artes Cinematográficas e Televisivas (BAFTA) delegou nesta quarta-feira a suspensão do produtor como membro do sindicato, alegando que seu comportamento “não tem absolutamente lugar na nossa indústria”. A instituição responsável pelo Oscar (Academia de Artes e Ciências Cinematográficas) também anunciou o desligamento de Harvey do seu Conselho, anunciando que o ato não era apenas para se separar do cineasta, mas também mandar a mensagem que “os dias de cumplicidade a comportamentos sexualmente predatórios na indústria acabaram”.

Para além disso, o americano foi demitido de sua própria produtora, enquanto sua mulher, Georgina Chapman, anunciou que entrará com o pedido de divórcio contra o agora ex-magnata. Paralelamente, quase que a cada hora novos e importantes nomes da indústria – muitos dos quais já haviam colaborado com o produtor – somam-se publicamente ao coro de apoiadores das atrizes que expuseram seus abusos: Jessica Chastain, Lena Dunham, Jennifer Lawrence, Penélope Cruz, Cate Blanchett, Blake Lively, Viola Davis, Kate Winslet, Rebecca Hall, Charlize Theron, Julianne Moore, Nicole Kidman, Brie Larson, Meryl Streep, Judi Dench, Glenn Close, Mark Ruffalo, George Clooney, Leonardo DiCaprio, Ryan Gosling, Colin Firth, Benedict Cumberbatch, Tom Hanks, Judd Apatow e Jeff Bridges, dentre outros, compartilharam mensagens de repulsa à conduta de Weinstein, dando alguma esperança para que essa dinâmica doentia de poder passe por mudanças não só em Hollywood, mas com sorte e empenho para outras indústrias e países.

A atriz Charlize Theron publicou em seu Instagram: “Nós não podemos culpar as vítimas aqui. Se elas falam, são silenciadas, e esse pode ser o fim de suas carreiras. Eu quero que todas vocês saibam que eu as apoio.”

É impossível não relacionar os pormenores do caso de Weinstein ao que ocorreu no início deste ano com José Mayer, um dos mais influente e longevos galãs da Rede Globo. No final de março, a figurinista Susllem Tonani acusou o ator de assédio, em relato publicado no blog “#Agoraéquesãoelas” do jornal “Folha de São Paulo”. “Em fevereiro de 2017, dentro do camarim da empresa, na presença de outras duas mulheres, esse ator, branco, rico, de 67 anos, que fez fama como garanhão, colocou a mão esquerda na minha genitália. Sim, ele colocou a mão na minha buceta e ainda disse que esse era seu desejo antigo”, escreveu.

O ator José Mayer que, assim como Weinstein, foi acusado de assédio sexual em ambiente de trabalho (Foto: Divulgação | TV Globo)

Em seguida, diversas funcionárias, atrizes e diretoras vieram em público manifestar seu apoio a Tonani. Sophie Charlotte, Drica Moraes, Alice Wegmann, Gloria Pires, Grazi Massafera, Bruna Marquezine, Camila Pitanga, Taís Araujo, dentre outras, aderiram à campanha “mexeu com uma, mexeu com todas” em suas redes sociais, um movimento que foi aderido não apenas pelas atrizes, mas também por todo o staff feminino do Projac, de diretoras e roteiristas a editoras e assistentes. Encurralada, a assessoria da emissora acabou tendo que se pronunciar sobre o assunto, declarando: “Temos conhecimento dessa iniciativa e ela é bem recebida, pois está absolutamente alinhada com as crenças e os valores da empresa. Nós, assim como nossos funcionários, defendemos a transparência, a liberdade de expressão e a mobilização para as causas nas quais acreditamos. Nossos funcionários e funcionárias que vierem vestidos com a camiseta terão como companhia nossos executivos e diretores. Com ou sem camiseta, o respeito é uma causa comum a todos. Não tem como ser diferente”.

O ator, que antes da notícia estava escalado para a próxima novela de Aguinaldo Silva, “O Sétimo Guardião”, foi afastado do folhetim e suspenso de atividades na Rede Globo por tempo indeterminado. “A Globo reafirma o teor da nota divulgada na última sexta-feira, quando afirmou que o caso foi apurado e que as devidas providências estavam sendo tomadas. Esta convicção foi reafirmada para um grupo de atrizes, diretoras e produtoras, reunidas no domingo à noite, quando a emissora informou que, apurado o caso, tomou a decisão de suspender o ator José Mayer de produções futuras por tempo indeterminado. A Globo lamenta que Susllen Tonani tenha vivido essa situação inaceitável num ambiente que a emissora se esforça cotidianamente para que seja de absoluto respeito e profissionalismo. E, por essa razão, pede a ela sinceras desculpas”, divulgou a emissora.

O paralelo entre o Projac e Hollywood mostra uma realidade similarmente deplorável, mas que ao mesmo tempo tem chances de ser mudada daqui em diante. No passado, homens como Weinstein, Mayer ou qualquer outro figurão em posição de poder não tinham o que temer: eles influenciavam não apenas estúdios, diretores e produtoras, mas também os meios de comunicação, onde o clube do bolinha também sempre reinou pelas redações, tanto no Brasil quanto nos EUA. O que esses dinossauros não poderiam prever é que as redes sociais surgiriam e, com elas, o poder para que todo e qualquer discurso seja divulgado e potencializado. E quem tem voz, tem chance.

Graças ao poder da internet, talvez figuras importantes para ambas as indústrias, a televisiva e a cinematográfica, tiveram os meios e a coragem de aderirem a um movimento que se tornou maior do que a denúncia inicial. Sim, os dois casos foram divulgados previamente por jornais. Mas graças a ferramentas como Twitter, Facebook e Instagram, grande parte das vítimas de Weinstein e do casting global teve como se pronunciar publicamente sobre o ocorrido, quisesse/permitisse a imprensa tradicional ou não. Juntas, essas redes levaram a mensagem central para bilhões de pessoas – um alcance que nenhum impresso ou emissora conseguiria ou sequer tentaria atingir, não fosse a repercussão prévia e inegável na esfera online. É uma lástima que algumas pessoas tentem usar essa arma com desperdícios como fake news ou bullying em pleno 2017, porque as possibilidades de mudanças efetivas que elas proporcionam são grandes e necessárias.

UPDATE

No domingo (15/10), embalada pela dimensão alcançada pelo caso de Weinstein, a atriz Alyssa Milano iniciou um movimento no Twitter buscando alcançar visibilidade a respeito da prática de assédio sexual. Milano escreveu em seu perfil: “se você foi violentada ou abusada, escreva ‘Eu Também’ como resposta a este tweet” acompanhada duma imagem que dizia: “Eu também. Sugerido por uma amiga: ‘Se todas as mulheres que foram violentadas ou abusadas escreverem ‘Eu também.’, talvez consigamos dar às pessoas um senso da magnitude do problema.'” Em seguida, milhares de mulheres – incluindo famosas como Anna Paquin, Lady Gaga, Evan Rachel Wood, Debra Messing e Sophia Bush – começaram a publicar a mensagem em suas redes sociais, com algumas contando relatos pessoais de assédio demonstrando como esse tipo de violência é mais comum do que se imagina.

A mensagem da atriz Alyssa Milano em seu perfil do Twitter