“Tinta Bruta” chegou ao 20º Festival do Rio cercado de expectativas. O longa já fez história ao conquistar dois dos prêmios mais importantes do Festival de Berlim no começo deste ano – o Teddy Award, dedicado a filmes LGBT, e o CICAE – Art Cinema Award, concedido pela Confederação de Salas de Cinema de Arte da Europa. Na noite desta terça, 6, antes da estreia no circuito do festival, a Híbrida conversou com os diretores Filipe Matzembacher e Marcio Reolon sobre o retorno aos sets, as vitórias internacionais e cinema queer em um Brasil que elege Bolsonaro.
Descrevendo o filme como “uma expressão muito íntima” e “o resultado de um longo tempo de discussão e de reflexão”, os diretores comentaram sobre o prazer da vitória no Teddy: “Foi uma surpresa muito bonita e um retorno maravilhoso, tanto pelo valor e destaque que a premiação tem dentro do cinema, como também pela relevância da questão queer e da valorização da comunidade LGBT”.
Trabalhando sobre temas queer desde o começo da carreira, Filipe e Marcio também são os realizadores de “Beira-Mar” (2015), longa que trata da descoberta sexual de dois adolescentes gays e que foi premiado no Festival do Rio, no Cine Guadalajara, no México e na mostra For Rainbow, no Ceará. Sobre a expectativa de como o público brasileiro poderá receber o filme, dado o atual contexto político ultraconversador do país, Matzembacher afirma: “Será interessante perceber como o filme vai tocar as pessoas para além dos festivais e como o brasileiro vai se sentir representado, ou não, na tela”.
Levando em consideração a atmosfera introspectiva de “Tinta Bruta” e sua inserção em um contexto onde “resistência” é a palavra de ordem para a comunidade LGBT brasileira, Matzembacher argumenta que a exploração das intimidades e das individualidades é sim uma ferramenta de afirmação política. “Uma vez que sofremos opressões não de uma única atitude, mas que acontecem o tempo todo, a simples existência de um indivíduo cuja presença pode agredir a norma é uma resistência. Também temos que pensar em como a gente vai utilizar o nosso íntimo para ter forças de resistir”, explica.
Como um recorte na vida de Pedro (Shico Menegat), “Tinta Bruta” mostra seu protagonista enfrentando um processo complicado de investigação criminal, no qual responde por ter agredido seu assediador. Sem a ajuda dos pais, ele também precisa lidar com a mudança da irmã (sua única companhia) para o outro lado do país e aprender a se bancar sozinho.
Para ganhar dinheiro, Pedro faz performances eróticas diante da webcam, exibindo-se para um público desconhecido e exigente. Durante os “shows”, ele se pinta com tintas fluorescentes, encarnando GarotoNeon, um personagem dentro dele mesmo, que o distingue na infinita seara erótico-pornográfica da internet. As tintas permitem que o protagonista se envolva em uma espécie de casca grossa, colorida e sedutora, que lhe permite lidar com o próprio corpo, sua sexualidade e seus observadores, tão íntimos quanto anônimos.
Em dado momento, Pedro descobre o bailarino Leo (Bruno Fernandes), usuário do mesmo site e que copia sua “marca registrada”: a tinta neon. Em um espaço temporal de uma música, os dois vão de rivais a colegas de performance. E de colegas de trabalho a amantes. Um sentimento que é tão disruptivo quanto envolvente, a relação de Pedro e Leo é, ao mesmo tempo, uma paixão jovial, quase ingênua em sua espontaneidade; e também um relacionamento marcado pela maturidade de quem está correndo atrás da vida e sabe que cuidar do outro é tão importante quanto (tentar) cuidar de si próprio.
Ambientados com uma trilha sonora deliciosa, é um prazer sensorial acompanhar as cenas do casal. A telona se transforma em uma webcam gigante e o tradicional jogo do voyeurismo que o cinema pode estabelecer com seus espectadores ganha uma fluidez contemporânea, mais emocional, ruidosa e envolvente. A sensação de estar sendo constantemente vigiado e julgado é o gatilho central do filme – e de nossas vidas. Nossos corpos no espaço público (offline ou online) estão sujeitos a todo tipo de violência, inclusive a silenciosa: aquela que se dá através de olhares. E o olhar é aquilo que Pedro tem de mais expressivo, o que acaba configurando um desafio para o ator que o interpreta. Pedro quase não fala, mas tem muito a expressar.
Assim como o próprio título, o filme tem um certo aspecto “bruto”, no sentido de que poderia ser lapidado. De modo geral, a insistência em uma estética “ousadinha e modernete”, com tipos representantes de uma juventude antenada que sempre quer ir embora para Berlim, já deu. Da mesma maneira, os diálogos tendem ao robótico, com frases de efeito que são quase sempre respondidas com sim e não evasivos. Como se trata de um contexto de performance, dança, sexualidade, experimentação e descoberta, o filme poderia ter se apoiado em um trabalho amplamente corporal, dando espaço para o silêncio como interdito. Mas isso não acontece e o silêncio, às vezes, parece falta de recurso/assunto (ainda bem que a trilha sonora é tão boa).
De qualquer forma, “Tinta Bruta” merece ser visto. E aplaudido. A homossexualidade de Pedro não é o mecanismo gerador de conflito na narrativa. Assim, o dispositivo de naturalização da sexualidade homoafetiva é um de seus grandes méritos. Os deslizes não fazem do filme uma experiência menos intensa. E devem ser entendidos no contexto de uma filmografia em franca expansão.. Com distribuição da Vitrine Filmes, o longa estreia no circuito comercial dia 6 de dezembro. Assista ao trailer abaixo: