Enquanto o resto do mundo procurava formas dignas e apropriadas de celebrar as figuras femininas neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o deputado bolsonarista Nikolas Ferreira (PL/MG) achou de bom tom atacar a população travesti e transexual durante um discurso na Câmara. Munido com a peruca mais barata que encontrou, ele disse que, hoje, “se sente mulher”, responde pelo nome “Nikole” e teria “local de fala” para ser ouvido na data.

“As mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres. Para vocês terem ideia do perigo que é isso, eles estão querendo colocar a imposição de uma realidade que não é a realidade”, disse Nikolas, seguindo uma linha de raciocínio tão incoerente que faria inveja a J. K. Rowling. O deputado justificou a transfobia alarmista como uma forma de defender “um pai não querer que um marmanjo de dois metros de altura entre no banheiro da filha sem ser considerado um transfóbico”.

Logo após a sessão, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL/SP) disse que o partido vai apresentar uma com uma notícia-crime ao STF pela transfobia praticada por Nikolas. Tabata Amaral (PSB/SP) afirmou ainda que vai pedir ao Conselho de Ética da Câmara a cassação do mandato do parlamentar. Na mesma tarde, o Ministério Público Federal pediu que a Casa também apurasse a conduta do bolsonarista por “suposta violação de ética”.

A fala de Nikolas Ferreira foi um desrespeito à população trans, cuja expectativa de vida segundo dados do IBGE é de apenas 35 anos (metade da média nacional), mas teve requintes especiais de crueldade com as deputadas Erika Hilton (PSOL/SP) e Duda Salabert (PDT/MG), primeiras parlamentares trans eleitas para o Congresso e vítimas constantes de ameaças de morte e violência política.

Poucos momentos antes e depois, Erika e Duda subiram à mesma tribuna para discursar, mantendo o decoro que se espera de parlamentares e sublinhando a importância de a Casa do Povo refletir as nuances dos brasileiros e das brasileiras. Duda, por sua vez, já havia apresentado dois anos atrás uma queixa-crime contra o deputado quando este a chamou de “ele”. Em fevereiro, o TJMG acolheu a denúncia e transformou Nikolas em réu por conduta transfóbica, racismo e injúria racial. Ela disse que agora vai entrar também com uma representação contra o deputado, por quebra de decoro parlamentar.

Além de ofensivo e ignorante em todos os níveis, o discurso do deputado é também perigoso e capaz de impulsionar crimes de ódio contra a população LGBTQIA+ do Brasil. A afirmação não é exagero e basta olhar para o que está acontecendo neste exato momento pelos Estados Unidos, onde há uma onda crescente de projetos de lei sendo aprovados contra a comunidade, graças aos estados onde o parlamento tem maioria conservadora.

Apenas as proibições de drag queens se apresentarem, de pessoas trans serem incluídas nos esportes e de a diversidade de gênero e de orientação ser debatida nas escolas já é grave. Mas esse pânico alarmista tem contribuído para o aumento dos assassinatos de pessoas LGBTQIA+ nos EUA, onde ainda em dezembro um atirador terrorista invadiu uma boate do Colorado voltada à comunidade e disparou a esmo, matando ao menos cinco pessoas e ferindo outras 18.

Mulheres trans não se identificam como tais apenas porque decidiram colocar uma peruca, ainda que a passabilidade desempenhe um papel importante em suas autoestimas. O que a ciência mostra, na verdade, é que os primeiros sinais aparecem ainda na infância e, como mostrou um estudo publicado na revista Pediatrics, dificilmente essas pessoas (aproximadamente 6%) se arrependem da decisão e tentam revertê-la quando enconteam um ambiente acolhedor.

Não faz tanto tempo, mas a sociedade já evoluiu a ponto de entender que práticas como o blackface e outras formas no mínimo ultrapassadas de se referir às pessoas pretas não são apenas ofensas e piadas, mas configuram crimes de injúria racial. Já passou da hora de o mesmo respeito ser deferido à população transgênera, que merece dignidade social para não ser reduzida a uma peruca, principalmente em um local público e por uma pessoa cuja função é defender a cidadania.

Os instrumentos legais para o início dessa virada de chave já existem. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal entendeu finalmente que a discriminação com base em identidade de gênero e orientação sexual equivale ao racismo e deve ser tratado como tal. Ainda em janeiro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reforçou a decisão e decretou que crimes desse tipo são inafiançáveis, imprescritíveis e podem resultar em uma pena de 2 a 5 anos de reclusão.

“Qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos”, diz a lei sancionada. Resta ver se ela valerá para todos.