Um grupo de 20 drag queens se uniu para bater cabelo no clipe de “Piridrag”, funk que marca a estreia de Ohana Azalee após um longo período se apresentando pela noite carioca. No vídeo, carro-chefe para o EP que ela deve lançar ainda esse semestre, as meninas descem até o chão, fazem coreografia, dão close pelo cenário e até disputam – de forma saudável – a atenção de um boy, impulsionadas pela letra sobre uma novinha abusada que quer o namorado alheio. A música, diga-se de passagem, é inspiradíssima em um caso real.
“Hoje nós somos muito amigas”, já avisa Ohana sobre a moça que inspirou seu clipe. “Mas toda vez que eu chegava com meu marido na balada, ela tentava ficar com ele e depois dizia que era por causa da bebida. Teve um dia que ela quase conseguiu, mas ele tirou o rosto dela de perto. Eu fui pra casa muito puta da vida, queria matar aquela menina, e acabei escrevendo ‘Piridrag’. Foi assim que a música nasceu”, lembra em tom bem humorado.
Apesar do tom raivoso da música, Ohana garante que não tem nada contra piridrags, inclusive era uma quando ainda estava solteira. “Tem problema nenhum ser piridrag, gente, sejam piridrags. Mas respeitem o relacionamento alheio! Você não tem como saber as regras estipuladas entre o casal, tem que respeitar”, avisa.
A sua história com a música começou meio que ao acaso, fazendo covers no Youtube e durante suas performances no “Queens”, o concurso de drags que ocupa o TV Bar, em Copacabana, semanalmente. É também no bairro onde Ohana trabalha durante o dia como Wallace Oliveira, o tatuador que tem seu próprio estúdio de frente para a Av. Nossa Senhora de Copacabana.
Wallace conta que sua jornada para chegar até Ohana e toda a desconstrução social que a personagem lhe ensinou veio após ter sido “convidado a se retirar de casa”, quando se assumiu gay, ainda na adolescência. Vindo de uma familia religiosa, sua orientação não foi aceita nem pelos amigos que conheceu na igreja e, isolado do convívio social, o rapaz acabou vendo-se sozinho.
Mas nada de remorso. Apesar dos apertos no percurso, o isolamento prematuro fez com que ele saísse de casa e ganhasse o mundo, mais especificamente o Rio. Hoje em dia, ele conta que está em paz com a família e que eles passam por um processo de desconstrução similar ao que ele teve quando decidiu criar a Ohana. “Ela nasceu porque eu era uma pessoa muito ruim e precisava melhorar”, brinca, admitindo com um fundo de seriedade.
A primeira vez que ele se viu representado foi há cerca de dois anos, no Gaymado das Afeminadas. “Quando eu cheguei lá, vi um monte de bichas muito afeminadas e pensei ‘meu deus, esse não é o meu mundo!'”, conta. Passada a surpresa, o sentimento de Wallace foi a libertação de, finalmente, ter encontrado a sua tribo. “Na verdade, eu sempre quis ser essa bicha que tem orgulho de ser bicha”, admite.
Eu sempre quis ser essa bicha que tinha orgulho de ser bicha
A escolha por manter sua barba veio meio que ao acaso, mas também como uma forma de reforçar toda essa desconstrução recente que ele queria causar em si mesmo e nas pessoas. “Minha drag mistura características masculinas minhas, como Wallace, com características que a sociedade entende como femininas. Mas eu não tiro pêlo nem barba, porque entendo que a existência deles não caracteriza a masculinidade, assim como eu entendo que a ausência deles também não significaria feminilidade”, explica.
Claro, Ohana não é a primeira artista cuja estética transita entre os gêneros masculino e feminino. Mas ver a figura de uma drag com cabelos longos, espartilho, salto e barba ainda é algo que deixa meio mundo confuso, vide a reação coletiva quando Conchita Wurst surgiu no palco da Eurovision há apenas quatro anos.
Outro indicativo de que a escolha ainda causa estranhamento mesmo entre as drags veio quando Milk foi criticada por suas colegas ao entrar na passarela da 6ª temporada de “RuPaul’s Drag Race” com uma barbicha grisalha, apenas para ser reverenciada mais tarde pela escolha. Mesmo no Rio, onde a cena queer tem se fortalecido nos últimos anos e a efervescência da arte drag tem ocupado festas, teatros e programas de TV, são poucas as meninas que arriscam manter os pêlos no rosto.
Ohana conta que até mesmo na comunidade drag ela chegou a sofrer um tipo de preconceito velado (e muito shade) por manter a barba. “As coisas que eu vou fazendo como drag acabam interferindo na forma como eu enxergo a sociedade. Quando vi que as pessoas tinham dificuldade de aceitar uma drag de barba, foi quando tive mais certeza ainda que iria manter esse visual”, explica.
De uma forma ou de outra, o público ainda terá muito tempo para se acostumar com a barba e os pêlos de Ohana. A cantora, que acaba de lançar “Piridrag” no início do ano, está nos estágios finais de seu primeiro EP, no qual ela assina composição e produção, e promete transitar entre gêneros com músicas para pensar e para dançar. “Eu queria que tivesse uma mensagem de militância, mas que não desse pena de dançar. Quero que as pessoas sintam a letra e rebolem muito. Meu intuito é esse: dar muita farofa, mas no meio disso passar a mensagem certa”.
Dentre as faixas que ela já adianta, estão “Batom esfumado”, sobre uma garota que se apaixona por um boy padrãozinho, é rejeitada e, em seguida, vai esfumaçar seu batom na boca de outras pessoas pela balada afora; e “Te enlouquecer”, que ela gravou “só porque queria uma música para sexo”, como explica. “Ela tem um arranjo bem sexy, para fazer lap dance, e a letra fala total sobre isso: vou te deixar muito louco e vou embora”, ri.
Enquanto Pabllo Vittar domina o Brasil e o mundo com seu estilo fishy – isto é, tradicionalmente “feminino” -, o surgimento de estilos como o de Ohana abre um horizonte para novas formas de expressão não só da arte drag, mas também de um entendimento mais amplo sobre feminilidade e fluidez. E se há algo que precisamos mais do que nunca é de pessoas que nos ajudem a sair da zona de conforto, ideológica ou não.
Assista à nossa entrevista com Ohana abaixo: