Inspirado livremente nas paisagens naturais do Rio de Janeiro, o carioca Henrique Ludgério lançou no último ano um dos melhores registros musicais produzidos durante a pandemia. “Radiocereja”, segundo álbum do cantor e compositor, mergulha em camadas de sintetizadores com canto despretensioso e romântico, em meio a letras por vezes sensuais e outras vezes abstratas. O disco funciona como uma espécie de jardim eletrônico, evocando um éden tecnológico, solar e ainda assim melancólico.

Escritor, poeta e musicista, Henrique nasceu em Quissamã, no interior do Rio. Em 2008, foi morar na capital fluminense para graduar-se em cinema. Publicou dois romances e participou de uma coletânea de poemas organizada pelo poeta Ramon Nunes Melo. A carreira musical se oficializou em 2016, com o lançamento do projeto “Ametista”, onde ele e a cantora Gika Vereza se revezavam entre violão, sintetizadores e microfones cantando músicas autorais. Dois anos depois, lançou seu primeiro EP, “A febre azul”, em que dividiu a produção com o carioca Cassius Augusto.

“Radiocereja” tem participações especiais de nomes que circulam pela cena de artistas independentes do Rio de Janeiro, como Paulo Camões, Gabriel Pessoa Guerra, Podeserdesligado, o próprio Cassius, entre outros. O disco conta com referências variadas, transitando entre o pop eletrônico criado no início dos anos 2000 pela australiana Kylie Minogue e passando também pela poesia marcante de Caetano Veloso, enquanto Henrique dá luz a um registro extremamente original e impressionante.

A Híbrida conversou com o artista sobre seu processo criativo, sexualidade e a cultura do cancelamento:

Henrique Ludgério: "Sinto que queria poder desejar e poder dizer que eu desejo" (Foto: Rômulo Soares)
Henrique Ludgério: “Sinto que queria poder desejar e poder dizer que eu desejo” (Foto: Rômulo Soares)

HÍBRIDA: Que feito seu até agora te deixa mais orgulhoso?

HENRIQUE LUDGÉRIO: Gosto muito do “Radiocereja”, foi um álbum que passei dois anos fazendo. E assim, eu me envolvo em projetos de diferentes áreas. Já estive mais escritor, já trabalhei com cinema e produção… Agora tem sido divertido fazer música. Parece que há cada vez mais possibilidades. Já produzi pra outras pessoas, fiz trilha sonora de um espetáculo de dança, instalação. De alguma maneira, o “Radiocereja” é só uma parte do que sinto que posso fazer com música, mas é uma parte importante. E acho que a minha preferida (risos).

H: Como a sua sexualidade influencia seu trabalho?

HL: Engraçado que, quando li a pergunta, logo pensei nas minhas letras, se de alguma maneira elas conseguem elaborar diretamente algo no campo da sexualidade. E não, não é sobre isso, – ainda que algumas letras do novo álbum sejam um pouco mais diretas. É sobre vivências, estética, de como meu corpo se projeta numa teia social de possibilidades. Nossa sexualidade é constituída de desejos paralelos né, não sei – estou viajando? Se eu penso em como me vejo, acho que tem muito de Cat Power ou de Caio F. De Abreu, de PJ Harvey ou de Renato Russo, de John Maus ou Ana C, de Nico, de Milton ou de Adriana Calcanhotto. Acho que tudo isso tá no trabalho. Toda uma referência de sofrência. E que não consigo desvencilhar da experiência com a minha sexualidade.

H: “Radiocereja” é uma surpresa extremamente agradável da cena indie brasileira. De onde veio o título do álbum e como foi o processo criativo por trás dele?

HL: Eu tinha uma banda que se chamava Radiofoguete. A gente ensaiou por um ano e meio, mas acabou não rolando porque eu ainda não tinha certeza do que eu queria pro meu som e pensava, ‘Poxa, mas eu gosto tanto da sonoridade de Radiofoguete’. Não dava pra usar mais, porque eu não ia aproveitar um nome de outro projeto, com aquelas pessoas, um outro momento da vida. Na época do “A febre azul”, parti pra outras referências. Quando tava fazendo esse último álbum, percebi que me encaminhava para um momento mais solar, mais suave, e queria que as pessoas se conectassem com isso. Pensei em como queria que o álbum fosse: como uma playlist bem-feita, que você dá play e ‘entra numa’. Tipo entrar no uber e a rádio estar na estação certa. Brinquei com essa ideia tropical das frutas. Já falei que tenho um devir tropicalista que não me deixava usar cereja? Tanta fruta mais Brasil pra usar. Só que nenhuma ficava tão boa no nome quanto Radiocereja. Pra mim, é um nome que evoca uma sensação. Me parece pouco tentar explicar. Lendo, você sente.

Já sobre a outra pergunta, esse álbum surgiu logo depois da eleição do [Jair] Bolsonaro. Entrei numa fase de escrever e produzir músicas que fossem como um Éden pra mim. Tem essa coisa que o fascismo mata o desejo, não é? Eu sinto que queria poder desejar e poder dizer que eu desejo. Junto com isso, entrei numas leituras de Walter Benjamin ou Didi-Huberman, Preciado ou Octavia Butler. Era uma mistura de distopia, história do fascismo e valorização da experiência dos sentidos. Em vários desses autores, encontrei a mesma afirmação escrita de maneiras diferentes, a de que toda forma de imaginar é uma forma de fazer política. Então era o Éden, o fim do mundo, o desejo e a imaginação.

H: Você já disse que se inspirou em Cat Power, John Maus, Milton e Adriana Calcanhoto. Quais foram as referências sonoras e visuais que compõem a paisagem estética de “Radiocereja”?

HL: Eu estava fascinado pelas obras do Henri Rousseau, e por um álbum da Midori Takada, “Through the looking glass”. O interessante no Rousseau era que ele, francês, nunca tinha conseguido conhecer um país tropical e pintava aquelas obras estudando livros de botânica, indo ao jardim botânico de Paris. Ou seja, um trabalho de imaginação, um tanto exótico às vezes, mas impressionante. Na mesma época, um amigo me mostrou o trabalho do Júlio Martins da Silva, um pintor brasileiro de origem humilde, que teve uma vida simples e algum reconhecimento mais pro fim da vida. Era cozinheiro e nas horas vagas pintava jardins, muitas vezes casas enormes e fazendas, um trabalho de paisagens oníricas.

Acho que fiquei com essas imagens na cabeça. Queria um cenário que fosse um delírio-floresta-sol. Também ouvi muito Rita Lee e Francis Bebey, Dalto, Echo & the Bunnymen, Gal Costa, Tim Hecker e Marina Lima, pirando nos primeiros álbuns do Kid Abelha e um monte de referência de música eletrônica que sempre coloco no meu trabalho. Acho que o resultado é uma mistura dessas imagens e sons todos.

H: Temos vivido um pulsante debate ao redor disso que se chama “cultura do cancelamento”. O que você pensa sobre isso e como esse tipo de comportamento te atinge enquanto artista?

HL: É um tanto maluco, porque lá na segunda pergunta eu ia citar The Smiths como uma banda que constituiu definitivamente meu alter ego de gay poeta sofredor (risos). Mas aí eu lembrei das asneiras que o Morrisey tem dito e fiquei pensando se citava ele. Ele merece ser cancelado. Mas deveria eu cancelar a obra também? Não sei responder. Acho que estamos todos aprendendo a ter mais cuidado. E isso é bom.

H: O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre você que elas ainda não sabem?

HL: O que eu quero que elas saibam, dou um jeito de dizer né. Na última vez que disse, saiu o “Radiocereja”.