CASA 1: ACOLHIMENTO PARA OS “EXILADOS SEXUAIS” DE SÃO PAULO
por JOÃO KER e LEON FERRARI
Para muitas pessoas LGBTI+, abrir a porta do armário significa cruzar, por definitivo, a porta de casa. A migração por motivo de gênero ou orientação sexual pode ocorrer em busca de mais liberdade ou de um lugar mais seguro para se viver. Àqueles que migram para fugir de um local violento e perigoso dá-se o nome de exilado sexual, e à sua nova moradia, de sexílio.
O Brasil, a nível internacional, era visto como um possível sexílio na América do Sul. Entre 2010 e 2016, o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) recebeu ao menos 369 solicitações de refúgio com base em orientação sexual e identidade de gênero, conforme levantamento do Ministério da Justiça e do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
Para se ter uma ideia, pelo menos 68 nações ainda proibiam relações sexuais entre pessoas do mesmo gênero em 2019, enquanto outras duas criminalizavam o ato, de acordo com o relatório Homofobia Patrocinada pelo Estado, da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA).
No Brasil, a criminalização das relações homoafetivas não é mais uma realidade, mesmo que ela ainda seja sonhada e amplamente defendida por alguns ativistas e governantes de extrema-direita. Já em 2014, o País marcava sete dos oito pontos possíveis no Índice Global de Reconhecimento Legal de Orientação Homossexual (GILRHO, na sigla original) – que avalia o quão inclusivo é um país conforme suas políticas públicas e garantias de direitos à população LGBTI+.
O GILRHO, no entanto, não mede a eficácia dessas legislações ou o quão os países aos quais atribui notas de zero até oito são inclusivos de fato. No interior dessa nação a apenas um ponto do máximo da “excelência” na inclusão, brasileiros LGBTI+ precisam abandonar suas cidades graças ao risco de segurança que correm apenas por suas orientações sexuais ou identidades de gênero.
Em São Paulo, Casa1 é referência para “exilados sexuais”
Na região central de São Paulo, a Casa 1 tem espaço para receber hoje 20 pessoas LGBTI+ vulneráveis, além de oferecer uma série de serviços e assistências que vão desde a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e roupas à população em situação de rua ao acompanhamento psicológico e regularização e retificação dos documentos de seus moradores. “Obviamente é muito difícil. A gente lida com a vulnerabilidade, com todos os problemas que, enquanto sociedade, fomos criados pra ignorar”, conta Iran Giusti, fundador e diretor do espaço, dividido hoje em três imóveis com clínica social e centro cultural/galpão.
Formado em Relações Públicas e trabalhando como jornalista, Iran conta que a Casa 1 foi nascendo aos poucos, como um sonho que é regado diariamente até crescer e tomar forma. O primeiro passo pra essa realização foi quando ele abriu as portas da sua própria casa para receber pessoas LGBTI+ no sofá. Em um dia, a publicação da ideia recebeu cerca de 100 pedidos.
“Eu pensei ‘É uma demanda que não vou conseguir resolver sozinho'”, lembra Iran, hoje com 32 anos. Alguns meses e dois “inquilinos” depois, ele resolveu abrir a Casa 1 através de um financiamento coletivo. Foi aí, ele conta, que o perfil de quem buscava abrigo mudou.
“Quando a gente abre efetivamente a casa, muda completamente o perfil socioeconômico, com pessoas bastante vulneráveis. A expulsão de casa se dá em outros formatos, que não apenas a suspensão de grana”, comenta.
Fachada da Casa 1, no centro de São Paulo
Foto: Vinícius Martin (@viniciuspontomartin)
Sexualidade como fator migratório
As pesquisas migratórias tradicionais usavam como base uma versão de migrante heterossexualizado e motivado, apenas economicamente; com os estudos feministas, pós-coloniais e queer, a abordagem passou a analisar fatores subjetivos referentes à sexualidade, de acordo com Marcelo Augusto de Almeida Teixeira, no artigo “Metronormatividades” nativas: migrações homossexuais e espaços urbanos no Brasil. “Ser mulher, transgênero ou homossexual imbrica-se em ser migrante para além das necessidades econômicas” escreveu o doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).
Teixeira aponta que as metrópoles passaram a representar o espaço das “sexualidades não normativas” já no século passado e ilustra essa memória com a canção Go West, de 1979, do Village People, propagando a mensagem de que em São Francisco, na costa oeste dos Estados Unidos, homossexuais encontrariam liberdade sexual. Com o passar dos anos, foi-se cristalizando um imaginário migratório no qual o espaço urbano significava a única possibilidade para uma pessoa LGBTI+ viver plenamente sua sexualidade.
Judith Halberstam batizou essa ideia de que a vivência sexual não-normativa se limitava ao urbano, enquanto o ambiente rural era homofóbico e opressor, como metronormatividade. Já Teixeira questiona como o corpo LGBTI+ ocupa o espaço urbano da metrópole. Para isso, ele mergulha em teóricos da Sociologia Política e propõe que, nas grandes cidades, há uma hierarquia inter-racial baseada no capital sexual.
“Com a globalização dos campos sexuais emergem os campos sexuais inter-raciais, nos quais os corpos migrantes são posicionados de acordo com hierarquias de desejo conformadas por discursos acerca de raça, etnia, gênero, sexualidade e nacionalidade”, escreve Teixeira, citando James Farrer e Sonja Dale.
Seja pela hierarquia sexual ou pelos recortes e demandas de classe, cor e gênero, a chegada à “cidade grande” nem sempre funciona como um conto de fadas. Uma vez exposta a essas castas, a pessoa LGBTI+ acaba desenvolvendo compulsoriamente quatro mecanismos principais de sobrevivência: resignar-se e aceitar a posição marginalizada; resistir; adaptar suas performances sexual e de gênero ao local onde vivem; ou conformar-se aos costumes locais, uma espécie de “adaptabilidade racial”, como descreve Teixeira.
Entrada do galpão da Casa 1, um dos três imóveis em que a iniciativa funciona, também no centro de São Paulo
Foto: Vinícius Martin (@viniciuspontomartin)
Desde o primeiro dia que a Casa 1 abriu as portas, Iran conta que são dois os perfis principais de quem procura acolhimento no espaço: lésbicas, gays e bissexuais cujas convivências familiares se deterioram por uma mistura de dificuldade financeira e preconceito; e pessoas transexuais e travestis, que foram efetivamente expulsas de casa ao assumirem suas identidades de gênero ou começarem a transicionar.
“Muitos casos que a gente recebe são do tipo ‘Eu trabalhava, só que fiquei desempregado e minha mãe ou meu padrasto me botou pra fora’. Muita violência física e psicológica. Já no caso de pessoas trans, não. São muito ‘Minha família lidava até ok com o fato de eu ser gay, mas quando comecei a transicionar me botaram pra fora’. E era a expulsão clássica, do tipo: ‘você não vai ser isso aqui, pra fora’.”
Além da vulnerabilidade compulsória, ele conta que também não são raros os casos de jovens LGBTI+ de outros Estados que veem a chance de um futuro melhor em São Paulo, numa metrópole “supostamente mais aberta e supostamente mais plural”, onde os sonhos podem se tornar realidade.
Não por coincidência, a Casa 1 precisou adotar uma política de não abrigar pessoas de fora da capital paulista e, quando o contato é feito de forma online, encaminhar o indivíduo para a unidade de acolhimento mais próxima, de acordo com uma rede mapeada pelo Brasil afora.
Ponto de virada
Em março de 2019, a Casa1 chegou perto de fechar as portas e Iran anunciou em suas redes sociais que o centro de acolhida só tinha verba para funcionar até dezembro daquele ano. “Naquele momento, tive uma frustração muito grande da perspectiva de não ter conseguido ir mais adiante. Mas ao mesmo tempo, me trouxe uma sensação de ‘A gente fez o que conseguia fazer. A gente fez o que deu e tá tudo bem’. E aí vem a Indianarae [Siqueira] assim na minha cabeça, sabe? Eu não vou conseguir ser ela. Apesar de eu ser completamente a favor, não tenho essa força e essa frente”, lembra, rapidamente emocionado ao recordar aquele período.
O financiamento coletivo que permitiu a inauguração da Casa 1 foi feito inicialmente para pagar apenas “o valor cravadinho” do primeiro ano de aluguel. “Eu era um jornalista, mas trabalhava com gestão de projetos e então tinha noção de algumas coisas, mas zero de sistemas público e social, administração, contabilidade, gestão de empresa, negócios etc.”, explica. “Na minha doce e ilusória cabeça, foi assim: vamos fazer um financiamento coletivo pra eu alugar a casa durante um ano e aí a gente faz um centro cultural com uns cursos, consegue uma graninha e paga as contas. Obviamente, não aconteceu”, ri.
Iran tinha entregado seu apartamento e morava na Casa 1, dividindo o banheiro com 180 pessoas e com uma equipe de três funcionários. Com dois patrocínios que conseguiu da Pepsi e da Doritos Rainbow, ele alugou um galpão para expandir a atividade socioeducativa e oferecer atendimento psicológico aos moradores e ao público geral que passou a frequentar o espaço.
O aluguel da Casa 1 até estava pago, mas ainda faltava verba para comida, produtos de higiene pessoal, roupa, bem estar, remédio e uma série de situações e necessidades inusitadas que uma pessoa vulnerável demanda. “Isso numa completa vida-louquice, ignorando todo o sistema burocrático, contábil, financeiro e fiscal da coisa. A gente nunca fez nada errado, mas a gente nunca tinha conseguido fazer by the book porque é caro”, lembra Iran. Foi quando Dona Alvina Cirilo, assistente social da casa, avisou que faltava até o arroz com feijão para dar aos moradores.
O desabafo que Iran fez no Facebook viralizou e logo eles conseguiram a ajuda suficiente de empresas e doadores para se estabilizarem e “botar ordem na casa”. A equipe, o espaço, a programação e as parcerias aumentaram, a ponto de a Casa 1 fechar o ano passado com R$ 3,5 milhões em caixa, o suficiente para mais um ano de funcionamento. Desse valor, Iran frisa, mais de 70% vem de doações individuais, onde cada R$ 5 importa.
Iran Giusti, fundador da Casa 1, fotografado em frente ao galpão do espaço
Foto: Vinícius Martin (@viniciuspontomartin)
Dona Alvina Cirilo, assistente social da Casa 1, fotografada no galpão do espaço
Foto: Vinícius Martin (@viniciuspontomartin).
“A gente fala que junho é o nosso Natal, quando guardamos o dinheiro e dividimos pelo resto do ano. Hoje, em ação de marcas, das pequenas às multinacionais, a gente tem 42 acontecendo. Nunca foi uma coisa tipo ‘vamos sentar, falar tudo que a gente faz, pensar como que a gente se articula’. E, agora, conseguimos fazer isso durante a pandemia”, conta. “Queremos chegar num lugar que tenhamos grana suficiente não só para a gente se manter, como também para lançar editais e financiar outros projetos.”
Definindo o espaço hoje como uma “república de acolhida”, ele conta que os moradores e moradoras têm chaves da casa, entram e saem na hora que querem, mas também têm a responsabilidade de zelar pelo espaço. “A nossa ideia é ser uma malha de contenção dessa população LGBTI+, pra ela não chegar à situação de rua.”
No atendimento e coordenação dos moradores está Dona Alvina, que aos 57 anos diz que não gosta de ficar muito parada e tratou logo de se formar em Assistência Social assim que entrou para a equipe da Casa 1. Antes, ela trabalhava em um centro de acolhida para adultos da Prefeitura.
No dia a dia, é Dona Alvina quem faz as compras da casa, puxa a orelha, aconselha, conversa e vai acordar o pessoal para dizer que “é segunda-feira, São Paulo está bombando!”.
“É um prazer muito grande fazer o que eu faço”, confessa, acrescentando que mora na região há 38 anos e, desde o início, conversa com a vizinhança para calibrar os ânimos. “Teria que ser natural, né, principalmente por ser uma casa que acolhe jovens. Mas, pelo menos aqui, eles estão seguros. É muito triste saber que em outros lugares não é assim.”
Dona Alvina conta que às vezes o celular toca no meio da madrugada com mensagens de algum morador falando que “deu ruim”. Com jeito de mãezona, ela diz que é “a chata da máscara, da escola, do currículo, da saúde”, mas comenta com orgulho do pessoal que conheceu ali.
“Boa parte dos jovens vêm de famílias conservadoras e religiosas, com muito conflito e relacionamentos abusivos. Eles precisam lidar muito cedo com todas as consequências de um jovem que mora sozinho e é LGBTI+. Não é fácil, precisa ter muita força.”
O tempo médio de estadia para cada morador da Casa 1 é de quatro meses, mas também pode variar de caso a caso. Ao longo do período, eles recebem atendimento psicológico e um trabalho em conjunto para a reinserção social, seja na vida escolar ou no mercado de trabalho. Paralelamente, os outros imóveis que pertencem à Casa1 continuam distribuindo alimentos, cestas, oferecendo curso e programação cultural.
Abaixo, ouça no podcast “Passagem só de ida”, produzido pela Casa 1, as histórias de pessoas que se mudaram para São Paulo em busca de mais oportunidades:
LEON FERRARI
Aquariano com ascendente em virgem, Leon Ferrari é natural da pequena Frederico Westphalen, no Rio Grande do Sul, mas reside em Florianópolis, capital catarinense, onde estuda Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina. Já passou pelo TechTudo e pela Assessoria de Comunicação da Defensoria Pública da União em SC, atualmente é trainee do Estadão.