“MÁSCARAS DE OXIGÊNIO (NÃO) CAÍRÃO AUTOMATICAMENTE” MOSTRA A HISTÓRIA OCULTA DA AIDS NO BRASIL
por LÍVIA MUNIZ
Nova investida da HBO no mercado brasileiro, Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente se passa na década de 1980, quando o mundo mergulhou em uma das epidemias mais devastadoras da história recente com a Aids, infecção causada pelo HIV. Produzida em parceria com a Morena Filmes, a série é baseada livremente em histórias reais de comissários de bordo que contrabandeavam o antirretroviral AZT para dentro do Brasil, numa época em que o medicamento ainda não estava disponível no país
Mergulhada na cena carioca oitentista, a minissérie é estrelada por Johnny Massaro, Bruna Linzmeyer, Ícaro Silva e Kika Sena que, ao longo de cinco episódios, mostram como a Aids se alastrou pelo Brasil, como uma sentença de morte que trouxe consigo terror e um preconceito que estigmatizou toda a comunidade LGBTQIA+ (ou GLS, como era conhecida na época).
Ainda sem uma data certa de estreia, Máscaras de Oxigênio terminou suas gravações no último mês e deve chegar ao streaming em algum momento deste ano. A direção-geral é de Marcelo Gomes (Paloma), que divide o comando dos episódios com Carol Minêm (Todo Dia a Mesma Noite). Os dois estavam presentes nas gravações feitas na AGYTO, casa noturna que ocupa o antigo CEP do icônico Teatro Odisseia, na Lapa, centro do Rio. O prédio de três andares serviu de cenário para dar vida na ficção à Paradise, boate central da série, que também usou a fachada da antiga Le Boy, em Copacabana, para filmar cenas adicionais.
Durante uma das diárias na Lapa, a Híbrida esteve presente para acompanhar as gravações em meio à luz baixa do ex-Odisseia, com dezenas de figurantes performando hits como “Girls Just Want To Have Fun” (Cyndi Lauper) e “Freedom” (George Michael). E, claro, aproveitamos pra falar com o elenco principal, que Marcelo e Carol fizeram questão de ser majoritariamente LGBTQIA+ – ainda que os roteiristas Patrícia Corso (Samantha!) e Leonardo Moreira (João Sem Deus) frisem, corretamente, que o vírus é e sempre foi indistinto, afetando também as vidas de mihões de pessoas héterossexuais e cisgêneras.
“Máscaras de Oxigênio (Não) Caírão Automaticamente” é estrelada por Johnny Massaro, Brunza Linzmeyer e Ícaro Silva, que contam a história dos comissários de bordo que contrabandeavam AZT para o Brasil nos anos 1980 [Foto: HBO | Divulgação]
NANDO, O FIO CONDUTOR
O primeiro caso de Aids no Brasil foi registrado em 1982 e, apesar de ser pioneiro na testagem de anticorpos na América Latina, o país proibia a venda do AZT até 1987. Quando Fernando (Johnny Massaro), o chefe da cabine de comissários, descobre que foi infectado pelo vírus, sua rotina de glamour na ponte aérea entre Rio e Nova York se torna uma oportunidade de salvar sua vida e as de outras pessoas com o transporte ilegal do antirretroviral.
Nando é o protagonista de Máscaras de Oxigênio, uma trama inspirada na história real de comissários da Varig que faziam o mesmo na década de 1980. Durante dois meses, Massaro se preparou quase diariamente para viver o personagem com filmes, vídeos no Youtube e a consultoria de Marcia Rachid, médica que é uma das maiores referências do Brasil no tratamento e assistência de pessoas com HIV.
“Assim como a pandemia de Covid e outras epidemias, o momento da epidemia de Aids/HIV é muito relevante para a história da humanidade, porque ensinam a gente a reconhecer nossa própria vulnerabilidade”, diz Massaro, que em Os Primeiros Soldados (Rodrigo de Oliveira, 2022) já tinha abordado a epidemia dos anos 1980. “É um momento que marca mesmo, e acho muito importante a gente poder resgatar isso não só pela história, mas para a gente atualizar, colocar o tema na boca da sociedade e ter o entendimento de que não é preciso morrer”, disse Johnny.
Ele se refere às mais de 10 mil mortes por Aids que o Brasil registrou em 2022, frisando que quem é soropositivo não precisa desenvolver necessariamente a doença. “Esse tipo de informação pode salvar vidas. Não tem cura, mas tem tratamento. Se as pessoas morrem é por falta de informação ou preconceito.”
“A gente botar luz nesse assunto pode evitar que as pessoas morram”
Pelo perfil das primeiras vítimas da Aids no Brasil (majoritariamente gays e travestis), ela também foi usada por políticos, líderes religiosos e outros fundamentalistas para defender que a epidemia era um castigo divino contra os “pecados” da população. “A gente também diz que a doença caiu como uma luva nesse sentido, porque reforçava o próprio preconceito que a sociedade queria viver – e ainda quer de muitas formas”, reforça Johnny.
Abertamente gay, o ator de 32 anos também refletiu sobre a responsabilidade de interpretar um protagonista homossexual em uma história brasileira, além da possibilidade de trabalhar com um elenco composto em sua maioria por artistas LGBTQIA+, falando sobre a própria comunidade. “O André Reis, produtor de elenco da HBO, falou que era muito forte ouvir o elenco falando, porque todos têm muita consciência de seus lugares políticos, e isso deixa a coisa mais forte ainda”, avalia.
“De muitas formas, a gente carrega para nossas interpretações e atuações tudo que a gente passa na vida. Acredito que isso vai deixar a coisa mais potente”
“Tem algo de muito intuitivo nisso tudo porque muitas vezes a gente não passou pelas experiências que os personagens estão passando. É um meio do caminho entre intuição, trabalho e experiência”, explica Johnny, que dispensou as dietas radicais e mostra a evolução da Aids na figura de Nando através do trabalho corporal e da caracterização.
Outro aspecto indispensável para contar a história é, claro, a sexualidade propriamente dita de Nando. “O personagem reproduz um ser humano, é a performance do humano, e os humanos têm corpos, os humanos transam, então por que o personagem seria diferente disso?”, explica Johnny, que há três anos já protagonizou cenas mais explícitas em Verdades Secretas 2. “Aqui na série, pela primeira vez eu tive contato com uma diretora de intimidade, foi muito interessante ter esse diálogo – e funcionava como uma ponte para o que a gente não estava confortável de fazer.”
“Ele é um animal muito sexual, então naturalmente tive que me propor a isso. Por que eu vou ficar me tolhendo tanto, ter tanto pudor de mostrar algo?”
Desde que falou publicamente sobre sua sexualidade há três anos, Johnny seguiu em alta acumulando trabalhos importantes na dramaturgia, como o personagem Daniel de Terra e Paixão, sucesso de audiência na Globo. Algo que seria impensável há alguns anos, quando artistas eram tolhidos de viverem abertamente suas sexualidades com medo de represálias.
“Quando eu tinha 15,16 anos eu jamais imaginei que pudesse ser um ator assumido, que fizesse personagens que fossem personagens, inclusive héteros. Eu vivi uma transição e, de certa forma, consegui ser agente dela. É muito fantástico estar vivo agora, poder ser quem eu sou e continuar trabalhando. Uma produção como essa (Máscaras de Oxigênio) corrobora essa sensação de que a gente tá evoluindo sim.”
LÉA: DOÇURA, ALEGRIA E VIDA EM MEIO AO CAOS
A principal parceira de Nando na missão de contrabandear AZT para o Brasil é Léa, interpretada por Bruna Linzmeyer. Na trama, a comissária de bordo vive seu próprio drama pessoal quando se apaixona por um homem casado e acaba engravidando. Ainda assim, a personagem carrega uma doçura que é reforçada pela atriz.
“A Léa é uma personagem de afirmação da vida, que apesar de muitas durezas, de ser solitária, do melhor amigo Nando correr o risco de morrer a qualquer momento, de se apaixonar por um cara casado que não tá nem aí para ela, de ter um filho sozinha, ela em nenhum momento desmorona. Ela está sempre afirmando a vida, a alegria da vida”, descreve a atriz. “Existe uma doçura nela, uma alegria no sorriso que é um ponto de vida. Quando muitas coisas estão desmoronando em volta, ela segue com fé.”
“Apesar de a gente atravessar e ver de perto a morte muitas vezes, essa é uma série que fala sobre a vida”
A rotina, as pessoas e as particularidades da aviação é um dos pontos centrais em Máscaras de Oxigênio. No Brasil daquela época, as companhias aéreas eram luxuosas e traziam para suas cabines um glamour que já se perdeu com o tempo. Como a história é inspirada em um caso real da antiga Varig – que na minissérie leva o nome de Fly Brasil -, Bruna foi atrás de ex-comissárias para entender melhor como elas viviam nos anos 1980.
“Encontrei algumas comissárias que trabalharam na Varig e me ajudaram muito com o gestual, porque é uma performance muito específica dentro do avião – como para, como senta, como tá o pé, como é o cabelo e a maquiagem…”, explica. “Era uma outra vivência do que a gente tem hoje, mesmo vendo vídeos do que é uma primeira classe internacional.”
Aos 31 anos, Bruna Linzmeyer se tornou uma referência nos movimentos feminista e LGBTQIA+, ao mesmo tempo em que é considerada uma das atrizes mais versáteis de sua geração. Agora, para além da chance de expandir seu ativismo para os mais de 2 milhões de seguidores que tem nas redes sociais, ela celebra a oportunidade de trabalhar com um enredo focado na comunidade LGBTQIA+.
“Fiquei muito honrada de contar essa história enquanto cidadã, artista e sapatão. As pessoas ainda entendem que histórias como essa são de nicho, e não são”
“Essa é uma história principalmente de gays e de transfemininas. Acho que ainda existe uma resistência muito grande das instituições de entender o sucesso que histórias como essa fazem”, avalia. “A série para mim talvez seja um ponto de virada nesse sentido, de entender que as histórias queer, as histórias sapatão, as histórias LGTBQIA+ não são só para a comunidade. A gente tá falando de personagens que são universais, de morte e vida, amor, relações de afeto. Isso atravessa todos os corpos.”
Com a exposição, Bruna inevitavelmente foi alvo de ataques lesbofóbicos online, mas a atriz diz que isso é apenas “sintomas da sociedade e do outro” e que prefere focar “no outro lado, que é muito especial”.
“O preço da liberdade, da alegria e do tesão é imensurável. Eu nunca abriria mão disso”
“Nunca pensei que eu fosse me tornar essa referência, eu só estava vivendo. E eu fico feliz que o mundo tenha feito uma curva, ao mesmo tempo que fiz essa curva na minha vida”, conta. “Você fala que eu inspiro as pessoas, mas as pessoas me inspiram muito – quem eu encontro na rua, no cinema, as sapatonas que falam comigo, que vêm tirar foto, que contam uma história. Isso me alimenta. As pessoas me fazem ter coragem de continuar sendo quem eu sou, de fazer as escolhas que vêm do coração, da minha verdade, da minha fé, mesmo que o mundo fale ‘não’ e me deixe com receio.”
RAUL E O DESPERTAR COMPULSÓRIO PARA A CONSCIÊNCIA POLÍTICA
A conexão entre os universos da aviação e a noite queer carioca acontece através de Raul, personagem de Ícaro Silva que é apresentado como um “faz tudo” da Paradise: segurança, ajudante, hostess e também performer. Com o grande sonho de ser artista, ele cria a drag queen Susie Lee, que se apresenta nas noites do Rio. Mas é através do seu relacionamento com Nando que ele também se torna um ativista para levar o AZT contrabandeado pelos comissários até as pessoas soropositivas.
“Ele acaba se tornando a figura central na luta pela vida das pessoas que o cercam. Embora ele não viva com a doença, é uma das pessoas que mais tá no front lutando. Ele descobre na vulnerabilidade do Nando a vocação dele de cuidado”, explica Ícaro sobre o personagem. “Ele vive por esse coletivo, por essas pessoas que se unem para serem uma alternativa contra o HIV.”
Ator, escritor, músico e cantor, Ícaro é mais que um artista multifacetado e, aos 36 anos, tem usado sua arte, sua voz e seu espaço para trazer visibilidade às “bichas pretas”, como ele mesmo se definiu na TV aberta há alguns anos.
“Uma boa parte dessa comunidade ainda é invisibilizada hoje. Ainda é um triunfo quando a gente vê um beijo gay numa novela”
“Não estamos nem perto de ter um protagonista gay ou transexual. Então, é fundamental que as comunidades contem suas histórias. Tenho muito orgulho da minha comunidade e de poder contar histórias dela, orgulho de saber que a gente pode honrar o legado de quem fez tanto, mas segue invisibilizado”, diz, observando também a vulnerabilidade específica de pessoas negras em relação ao HIV. De acordo com o Ministério da Saúde, pretos e pardos representam 6 em cada 10 mortes por Aids registradas no Brasil.
“Quando você fala de vulnerabilidade, exclusão, marginalização, sempre a maioria das pessoas serão negras. Isso não tem necessariamente a ver com o HIV, a Aids e o preconceito que circula, mas com a vulnerabilidade que é histórica”, aponta, observando que a série busca retratar “com realismo” as “mazelas sociais” do Rio. “A gente tem diversas personagens que são transexuais, que são forçadamente marginalizadas, e entendemos que a maior parte das pessoas à margem são pretas.”
“Não acho que é uma série de denúncia, nem se propõe a ser documental, mas se coloca como documento porque fala de algo que não é falado”
Entre os diferentes núcleos da minissérie, os autores naturalmente apontam para a formação de famílias ditas não-tradicionais: os amigos que se casam para cuidar um do outro, a esposa e a amante do mesmo homem que se unem na dor, a irmandade de drags e travestis…
“Para mim, essas famílias são muito mais tradicionais, porque tenho a sorte de reconhecer a família pelo afeto, não pela lógica cristã, política ou social. Então,tenho a ousadia de dizer que estamos falando sim de famílias tradicionais”, defende o ator. “A gente está reinventando uma tradição.”
O PALÁCIO DAS PRINCESAS DE FRANCESCA, UMA MATRIARCA REAL
É na Paradise que Máscaras de Oxigênio mostra a cultura queer do Rio de Janeiro dos anos 1980. O local, mais do que uma balada, acaba funcionando também como ponto estratégico para a distribuição do AZT contrabandeado pelos funcionários da Fly Brasil. No topo dessa cadeia de comando noturna está Francesca, personagem da atriz Kika Sena.
“Na minha criação, Francesa parte de um lugar de empoderamento. Ela já sofreu muito, sofreu de solidão, de medo, de porrada. No sentido emocional, eu tento me imbuir de experiências que eu também já vivi que são parecidas com as que imagino que ela viveu”, conta a atriz. “Ela é uma pessoa que perdeu muita gente, então ela não se cristaliza num sofrimento eterno por causa das perdas. Francesca é uma mulher forte pra caralho. Ela se mantém firme e de cabeça erguida diante das situações. Acho que a vida dela é muito de sobrevivência”, analisa.
Se o ponto central da série é baseado em um fato real, a função da Paradise também foi inspirada em um episódio conhecido na história da comunidade LGBTQIA+: o Palácio das Princesas comandado por Brenda Lee. Em 1987, plena ditadura militar, a Polícia Civil de São Paulo deu início à “Operação Tarântula”, que usou o combate à Aids como justificativa para perseguir trans e travestis pelas ruas da capital paulista.
Foi nesse cenário que a casa de acolhimento criada pelo “anjo da guarda das travestis” se tornou o principal ponto de apoio para pessoas da comunidade que viviam com HIV.
“Em algum momento, a gente precisa se libertar e se mostrar para o mundo”
“A travestilidade, de um modo geral, vem muito no reconhecimento do outro. A gente se constrói no acolhimento, a gente é expulsa de casa”, afirma Kika. “Eu penso nos anos 80 e na falta da liberdade de expressão de pessoas LGBT, em que você ia para a boate se expressar, se permitir ser o que você é, porque era proibido andar na rua sendo quem você era. Hoje em dia, a gente tem muitas políticas públicas, mas ainda assim sofremos esses tipos de violência que são muito parecidos com os de 20, 30, 40 anos atrás.”
Em Máscaras de Oxigênio, Kika tem a oportunidade de reeditar a parceria com Marcelo Gomes, que a dirigiu no aclamado filme Paloma. Graças ao longa, ela se tornou a primeira mulher trans a vencer a categoria de Melhor Atriz no Festival do Rio, e a alagoana comemora poder trocar novamente com o cineasta.
“Marcelo é gênio, uma pessoa de extrema sabedoria, sensibilidade e generosidade. Parece que a gente brinca junto. A arte de fazer cinema, teatro, é arte coletiva, de brincadeira, e acho que Marcelo sabe brincar, sabe se comunicar, porque ele tem anos de vivência, e sabe lidar com humor. É uma pessoa de escuta, que vê o outro e vê as potências do outro. É um grande professor, no sentido paulofreiriano de olhar para o outro e aprender com o outro, não só de transmitir o que acha que sabe. Eu aprendo tanto com ele no mesmo movimento que ele se propõe a aprender comigo.”
[Foto: HBO | Divulgação]