Uma noite de resistência, representatividade e aplausos, muitos aplausos. Assim foi a estreia na cena carioca do espetáculo Manifesto Transpofágico, escrito e encenado por Renata Carvalho e dirigido por Luiz Fernando Marques, o Lubi. Entre os mais de 300 espectadores que lotaram o Teatro Firjan SESI Centro, estavam nomes importantes da comunidade LGBTQIA+ como Indianarae Siqueira, Rodrigo França, Orlando Caldeira, Tom Grito, entre outros amigos e personalidades transvestigêneres.

Esse é o retorno da atriz e transpóloga ao Rio de Janeiro, após a apresentação histórica de O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu na Fundição Progresso, em 2018. Mas só depois de quase quatro anos da estreia de Manifesto Transpofágico, que já rodou pelos palcos de Itália, França, Holanda, EUA, Uruguai, Espanha, Irlanda e Chile, é que Renata traz a peça à cidade que representa a cura para ela.

“Eu sempre quis vir para o Rio com essa peça, mas é muito difícil chegar aqui. Depois de toda aquela questão com o Evangelho Segundo Jesus e a comoção que houve, vir agora no SESI, pela primeira vez depois de 27 anos de carreira, é um momento especial. O espetáculo está mais maduro, e eu estou mais madura também. Estou muito feliz com esse momento, a gente tá com muita expectativa para essa temporada. Por favor, vocês que estão lendo, venham participar desse experimento”, diz Renata em uma conversa exclusiva com a Híbrida logo após sua primeira apresentação.

Manifesto Transpofágico tem uma narrativa baseada em comunicação não-violenta, por isso a música é intencionalmente mais baixa, as luzes são acesas gradativamente e o tom de voz entoado por Renata prevalece calmo e agradável na maior parte do tempo. Tudo para romper com o estereótipo da travesti agressiva que foi impregnado no inconsciente coletivo ao longo dos séculos.

Renata Carvalho leva 'Manifesto Transpofágico' ao Rio: 'Uso ferramentas para compreender, ter paciência e ainda devolver em arte' (Foto: Nereu Jr. | Divulgação)
Renata Carvalho leva ‘Manifesto Transpofágico’ ao Rio: ‘Uso ferramentas para compreender, ter paciência e ainda devolver em arte’ (Foto: Nereu Jr. | Divulgação)

“Por ser minha volta depois de Jesus, havia uma cobrança, uma expectativa. Então cada palavra foi muito bem escolhida, não são acusatórias. Tudo para não abalar a fragilidade cisgênera, para que não coloquem uma cortina de fumaça dizendo que sou violenta. Uso todas essas ferramentas para compreender, ter paciência e ainda devolver em arte”, destaca.

O monólogo é dividido em dois atos. O primeiro, mais tenso e até doloroso, tem a palavra TRAVESTI piscando enquanto várias histórias são contadas sem que o público saiba se são ficcionais ou não, sobre Renata ou outres. Na segunda parte, a atriz já usa todo seu humor e desenvoltura para construir uma ponte e conversar com a plateia, quase como se comandasse um programa de auditório que promove discussões e reflexões sobre os vários graus de transfobia permeados na sociedade. É nesse momento que ela se permite perguntas e falas que seriam vistas como preconceituosas, mas autorizadas no momento da educação e usadas de antídoto para educar a plateia.

“O grande barato do Manifesto, que aprendo cada vez com ele, é que nós precisamos dialogar, precisamos aprender a escutar o divergente. Se estou dentro do teatro, aquela pessoa veio me assistir, saiu de casa… como eu não posso acolher? Claro que pode aparecer alguém que não quer ser desconstruído e caiu de paraquedas, mas a grande maioria quer. Então, quando a gente tem a oportunidade de discutir, debater, tirar dúvida etc., é um momento também de expansão, de alargamento. É um momento didático que tem o seu papel”, explica a atriz.

O engajamento da plateia, com todas suas possibilidades, desafios e surpresas, se torna assim uma ferramenta necessária para o andar do espetáculo. “Se eu barrar esse diálogo, for rude ou julgar o que a pessoa tá falando, de certa forma vou bloquear essa pessoa. E aí, aquela que está escutando pode ficar com vergonha de falar também porque estão rindo da outra”, observa.

“Quando você abre para a pessoa falar, seja qual absurdo for, ela pode ter o momento de aprender. É um convite ao diálogo para a gente desconstruir a imagem que se tem sobre as travestis. É quase uma limpeza, uma faxina na palavra ‘travesti'”, explica Renata. “Quero que as pessoas não tenham medo de falar, e que as pessoas trans não tenham vergonha de se assumirem travestis.”

'Manifesto Transpofágico' marca o retorno de Renata Carvalho aos palcos cariocas após a série de ataques que sofreu com a peça 'o Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu' (Foto: Danilo Galvão | Divulgação)
‘Manifesto Transpofágico’ marca o retorno de Renata Carvalho aos palcos cariocas após a série de ataques que sofreu com a peça ‘o Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’ (Foto: Danilo Galvão | Divulgação)

A temporada carioca de Manifesto Transpofágico é uma forma de Renata Carvalho vestir sua própria pele com calmaria e tranquilidade, depois da série de ataques que sofreu por ter “ousado” representar Jesus Cristo em O Evangelho. Não só isso, mas também pelo lançamento do coletivo MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans) e da campanha Manifesto Representatividade Trans de combate ao transfake (quando atores e atrizes cisgêneos interpretarem personagens transgêneros).

“Os anos de 2016 até 2019 foram muito difíceis, de corpo e mente adoecerem. Eu era ameaçada de morte todos os dias, e quando digo todos os dias, são mesmo todos os dias, durante quatro anos”, lembra Renata. “Mas o teatro foi o lugar que me disse: ‘Você pode ser quem você é’. Então venho ao teatro todos os dias, para ele não se esquecer de mim. Porque ele não precisa de mim, eu que preciso dele.”

Abaixo, confira as fotos de convidados do espetáculo:

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Com a plateia transgenere [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Com a plateia transgenere [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Indianare Siqueira e Renata Carvalho [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Indianare Siqueira e Renata Carvalho [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Renata e a Casa Nem [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Renata e a Casa Nem [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Com Jaqueline Gomes de Jesus, que assina o prefácio do livro da Renata [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Com Jaqueline Gomes de Jesus, que assina o prefácio do livro da Renata [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Auditório lotado [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Auditório lotado [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Renata e Rodrigo França [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Renata e Rodrigo França [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Renata sorrindo [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Renata sorrindo [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Indianare na plateia [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]
Indianare na plateia [Foto: Danilo Galvão / Nereu Jr]

Serviço:

MANIFESTO TRANSPOFÁGICO
Teatro Firjan SESI
Endereço: Av. Graça Aranha, nº 1 – Centro
Em cartaz e 17 de abril a 30 de maio
Segundas e terças-feiras, às 19h
Ingressos: R$ 30 (inteira) / R$ 15 (meia-entrada)
https://www.sympla.com.br/
Classificação indicativa: 16 anos

Renata Carvalho apresenta 'Manifesto Transpofágico' no Teatro Firjan SESI do Centro até 30 de maio (Foto: Divulgação)
Renata Carvalho apresenta ‘Manifesto Transpofágico’ no Teatro Firjan SESI do Centro até 30 de maio (Foto: Divulgação)