Quando Danilo Carreiro lançou o podcast HQ da Vida (atualmente Hora Queer) em 2016, as pautas tratadas nos episódios eram majoritariamente ligadas à comunidade LGBTI+. Dois anos depois, com a criação da persona drag Dimitra Vulcana, o professor ampliou seu escopo pelas redes sociais através do canal Doutora Drag, onde aborda questões de gênero, sexualidade, raça e classe sob uma ótica anticapitalista e marxista.
Seu repertório é variado: de Georg Wilhelm Friedrich Hegel à cultura gamer, Dimitra consegue abordar até o esvaziamento de pautas sociais nas eleições (disseminando o conceito da“Síndrome de Clodovil“ pelo caminho, diga-se de passagem ), ajudando a romper a despolitização com bom humor e uma bagagem invejável de referências e look impecável.
Morando em Montes Claros, Dimitra se define como “uma drag queen professora falando sobre temas que às vezes são espinhosos” e diz que usa a persona para militar, inclusive nos fervos de Paradas do Orgulho e festas de carnaval. “Aproveito o espaço para deixar algumas palavras interessantes sobre a conjuntura política que estamos vivendo”, conta em entrevista exclusiva à Híbrida.
Dimitra explica de onde veio sua forma de fazer drag, por que se identifica com o marxismo, a importância de RuPaul’s Drag Race e como a pandemia tem escancarado os problemas sociais presentes no país. Confira abaixo:
HÍBRIDA: Como e quando surgiu o desejo de se montar? E como veio a vontade de falar sobre política via podcast e youtube enquanto Dimitra?
DIMITRA VULCANA: Ela nasce de um podcast que tinha com amigos para comentar RuPaul’s Drag Race. Na medida em que fazíamos este projeto, demos um nome drag para cada participante. Só que a brincadeira estava tão legal que no Carnaval me montei pra ver como ficaria e acabei gostando muito. Daí, nasceu a Dimitra e veio a ideia de usá-la como instrumento para fazer um canal no Youtube.
Prefiro usá-la como instrumento político, então acaba que nas paradas LGBTs, por exemplo, aproveito o espaço para deixar algumas palavras interessantes sobre a conjuntura política que estamos vivendo. No Carnaval de minha cidade, saio pelos blocos politizando no microfone. Sempre estou usando ela mais como uma voz que como performance de uma drag queen. Acho que como é uma arte muito plástica, a gente estende os limites do que é ser drag queen pra cada um.
H: Qual a inspiração por trás do nome “Dimitra Vulcana”?
DV: Eu era bailarina, dancei durante a minha adolescência e parei na época de entrar na faculdade, quando minha mãe faleceu e tive de cuidar de dois irmãos. Mas voltei há 5 anos, querendo um nome russo. “Dimitra” veio em 2017, enquanto trabalhava apenas com a pauta LGBT no Hora Queer. Algumas pessoas acham que o nome é por conta de uma questão bolchevique, mas não foi, embora tenha sido uma feliz coincidência que ela tenha se radicalizado e se tornado uma marxista ecossocialista. “Vulcana” é porque eu gosto muito de ficção científica. Assisti tudo que existe de Star Trek e peguei este nome do planeta do Spock.
Sempre estou usando [a Dimitra] mais como uma voz que como performance de uma drag queen
H: Como foi a sua identificação com o marxismo?
DV: Eu acompanhava um podcast chamado Revolushow e gostava muito, mas ainda era imbuída daquela lógica de comunista que é muito comum no mundo capitalista. Em 2018, conheci a Sabrina Fernandes, do canal Tese Onze e comecei a fazer leituras através das indicações que ela passava. Fui me interessando pelo marxismo e percebendo que era incoerente só lermos sobre as coisas, mas não agirmos na realidade. Isso fez com que eu me envolvesse e me organizasse em coletivos, para militar na busca de uma transformação de mundo.
H: Quais os maiores obstáculos que você enfrenta enquanto artista abordando esses temas?
DV: Ser drag e ser uma drag comunista pode fazer com que as portas nem sempre estejam abertas, já que a lógica dominante é uma lógica muito anticomunista. Ao mesmo tempo, também tem um movimento interessante de acessar uns espaços, justamente por ser drag e marxista, que normalmente eu não acessaria.
H: Isso que você disse me faz pensar no quão incrível é o trabalho que vocês fazem pelas redes sociais, mostrando como o marxismo não é – e nem deve ser – um “clube do bolinha”. Dar mais pluralidade pras vozes diversas que se identificam com a luta revolucionária.
DV: Acho interessante pensarmos que a ideia de produzir conteúdo pela internet é formar politicamente as pessoas – já que tudo na nossa vida é político. Estar no Youtube é ocupar esse espaço sendo da esquerda radical. E a pluralidade é justamente isso: quanto mais tiver, melhor ainda. Especialmente as trocas que existem entre nós.
Sou uma drag que fala de política, mas assisto um reality que normaliza a ideologia liberal, o imperialismo americano, o exército e até o anticomunismo
H: Há alguns dias, no Twitter, vi que você comentou sobre a meritocracia existente em cenas de temporadas passadas de RuPaul’s Drag Race. Como você lida e enxerga essa questão no universo drag?
DV: Lidar com o universo drag e a questão liberal é uma questão um pouco complexa, mas faz parte das contradições que convivemos dentro do próprio sistema capitalista. Sou uma drag queen que fala sobre política, mas assisto um reality que normaliza totalmente a ideologia liberal, o imperialismo americano, o exército e até o anticomunismo. Ao mesmo tempo, traz ideias interessantes sobre o sentimento de comunidade, especialmente a LGBTI+. Só sou drag queen porque assisto a esse programa e só consegui alcançar as pessoas porque utilizei desta arte como ferramenta. É uma contradição interessante de se pensar.
Viver no sistema capitalista, no fim das contas, é se deparar com todas essas contradições. Quando Karl Marx falava que a ideologia de uma época é a ideologia da classe dominante não é só sobre poder econômico, mas também de criar subjetividades nas pessoas. E acho muito interessante ser uma drag queen que fala sobre isso.
H: Você disse que é drag também por conta do programa. Como foi o impacto dele na sua vida?
DV: Acho interessante falar da importância de RPDR porque o que vimos foi a mídia espalhar drag pra tudo quanto é lugar e isso é muito bonito, dá um insight pra gente. A primeira vez que me montei foi com a ajuda de uma amiga, porque sozinho era muito difícil, achava que não ia dar conta (risos). Mas eu tinha um propósito muito firme e fui insistindo.
Porém, é legal demarcar que, apesar de popularizar e espalhar bastante a arte, as pessoas acham que drag é só o que está em RuPaul, e não é bem assim. É uma arte diferente, elástica e que muda regionalmente.
H: O que está achando da nova temporada?
DV: Eu tô amando que tenha um homem trans [Gottmik]!
H: Como você enxerga a visibilidade sobre a arte de ser drag no Brasil? Acredita que passamos por algum avanço ou retrocesso com relação ao reconhecimento e respeito do público?
DV: Olhando de uma forma bastante materialista, o que existe são números e eles são tristes. Por mais que pareça que as coisas estão melhores – e de fato estão em algumas esferas -, os nossos números não estão legais. Então, ainda não vejo um avanço material. O mundo drag é também parte da comunidade LGBTI+ e é interessante, entre a gente, celebrarmos essa cultura. Mas é muito triste ver que os números ainda não refletem essa parte da realidade midiática ou através de nossas bolhas.
H: Enquanto Danilo, você tem doutorado na área de ciências da saúde, certo? Diante desta bagagem, como tem sido para você lidar com este período de pandemia pelo qual estamos passando?
DV: Sim, meu doutorado é na área de Ciências da Saúde e atuo em bioestatística, auxiliando pesquisas na epidemiologia. Os lugares que acesso, por questões de classe, não criam conflitos, mas de certa forma existe sim uma homofobia velada nos discursos e tudo o mais. Porém, uma coisa que tenho percebido nas drags que conheço é que a forma delas de sustento, que eram nas noites e nas baladas, tem tido grande impacto.
Ver colegas e pessoas que admiro desempregadas e outras perdendo a vida por conta da ineficiência na gestão da pandemia pelo nosso governo é muito complicado. Inclusive, é bom pontuar que muitos dos nossos problemas são problemas logísticos da área da saúde e que, historicamente, os militares teriam muitas condições – segundo a área da logística, claro – de lidar com isso e não deram conta e nem querem. Essa pandemia escancara todas as nossas questões sociais que precisam ser pensadas, inclusive até outros temas que se cruzam, como o feminicídio – que, como sabemos, aumentou.