Temos acompanhado uma intensa tentativa de impedir que jovens trans passem pela transição social em um ambiente acolhedor e com acesso a cuidados em saúde, como bloqueadores de puberdade e hormonização. Essa movimentação avança no Brasil e no mundo, desrespeitando até diretrizes de órgãos regulatórios, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), ou evidências científicas internacionais , apoiadas por entidades como a American Medical Association, a American Psychological Association, a American Psychiatric Association, a American Academy of Pediatrics, a American Academy of Child and Adolescent Psychiatry (AACAP) e a Endocrine Society.

Em abril, o estado do Arkansas se tornou o primeiro dos Estados Unidos a proibir médicos de administrar hormônios ou medicamentos para retardar a puberdade em pessoas trans com menos de 18 anos — ou seja, depois de elas já terem passado pela puberdade (!). A medida foi batizada como Lei para Salvar Adolescentes da Experimentação (SAFE) e replicadas em outros estados e países, como o Reino Unido e o Brasil. Ao mesmo tempo, ela vai contra as evidências científicas de que os bloqueadores da puberdade e tratamentos hormonais são seguros, sim, e salvam vidas.

Os bloqueadores da puberdade são uma classe de medicamentos que amortecem/evitam os efeitos dos hormônios sexuais produzidos pelo corpo, e  têm sido usados com segurança por décadas para retardar a puberdade, seja por pacientes endocrinológicos cisgêneros ou em transgêneros que sentem desconforto com o desenvolvimento de características sexuais indesejáveis.

Em jovens transgêneros, os medicamentos são usados para prevenir o desenvolvimento de características sexuais do gênero designado no nascimento, até que a pessoa tenha consciência de sua condição. Eles também são ferramentas importantes no processo terapêutico de cuidado e acompanhado por especialistas, que possam entender melhor a demanda de cada pessoa, seja para cancelar o uso dos bloqueadores e deixar a puberdade seguir seus efeitos, ou para iniciar a hormonização no momento indicado.

Hormônios usados nesse processo— testosterona ou estrogênio — geralmente não são administrados na infância. Eles promovem o desenvolvimento de características sexuais diferentes daquelas do sexo que o indivíduo teve designado ao nascer. E, no Brasil, podem ser usados apenas a partir dos 16 anos, de acordo com normas rígidas do CFM, que também estabelece um acompanhamento obrigatório por especialistas.

A discussão que pretendemos levantar é sobre o quanto iremos permitir que essas pessoas sigam sofrendo pelos efeitos de uma puberdade que muda seus corpos de uma maneira não desejada e sem assistência médica especializada. Diante dos efeitos reconhecidos pelo bem estar que proporcionam à população trans, dentre eles a diminuição dos riscos de suicídio e melhora na qualidade da saúde mental como um todo, podemos afirmar que pessoas trans nunca deixarão de usar hormônios. Especialmente, porque estes têm se mostrado seguros e eficazes.

Cabe a nós decidir se esses jovens terão acesso aos cuidados de saúde ou se vamos seguir empurrando essas pessoas para a clandestinidade, recorrendo à automedicação ou à aquisição de medicamentos no mercado ilegal — o que aumenta ainda mais os riscos de complicações e pode levar inclusive ao óbito, tornando-se um risco ainda pior às suas vidas..

Pensando nisso, elaborei algumas questões sobre os principais mitos que vêm sendo colocados como forma de impedir que Estados e sociedade entendam a importância desse cuidado específico demandado pelas pessoas trans, e também seus impactos na vida dessa população.

1º – Jovens trans são forçados a tomar decisões médicas que não entendem

Na verdade, o que acontece é exatamente o oposto: agentes da sociedade estão tentando, insistentemente, fazer com que não tomemos essas decisões e não transicionemos. É muito importante não homogenizar as experiências trans quando formos discutir questões sensíveis às nossas vidas, assim como não é prudente generalizar a (in)capacidade de consentimento de cada pessoa, já que esse é um processo extremamente delicado, subjetivo e pessoal.

2º – Crianças recebem terapia hormonal e/ou cirurgias de afirmação de gênero

Há quem pense que um indivíduo pode simplesmente ir ao consultório médico e dizer “sim, sou trans e me dê meus hormônios”. Mas isso não acontece. Para crianças antes da puberdade, não há intervenções médicas. No Brasil, as cirurgias só são permitidas a partir dos 18 anos e a hormonização desde os 16 , mas nesse caso precisa  de consentimento dos responsáveis e acompanhamento médico especializado.

3º – Bloqueadores da puberdade são irreversíveis

As pessoas geralmente colocam bloqueadores de puberdade e a hormonização na mesma categoria, mas eles são dois tratamentos completamente diferentes. Quando você tira o medicamento que retarda a puberdade, esta começa novamente, e é por isso que os médicos dizem que os bloqueadores da simplesmente colocam “pausam” o processo. Eles são considerados 100% reversíveis, de acordo com os estudos mais recentes.

4º – Hormônios ou bloqueadores da puberdade são equivalentes à “castração química”

A castração química é normalmente usada para pacientes com câncer de próstata ou ainda como penalização para criminosos sexuais. Essa comparação é uma falsa simetria, diante dos benefícios que a hormonização traz às pessoas trans que optam pelo seu uso. Nem todas as pessoas trans fazem hormonização, e aquelas que se submetem a esse tipo de intervenção têm total ciência dos seus efeitos, inclusive dos adversos. São comuns casos de pessoas em hormonização que não se tornaram inférteis.

5º – Bloqueadores da puberdade causam danos aos ossos

Uma pesquisa recente da British Society for Paediatric Endocrinology and Diabetes mostrou que a hormonização pode ter efeitos de longo prazo na densidade óssea. Mas o risco de diminuição da densidade óssea com o uso de bloqueadores da puberdade ainda é incerto, e os dados coletados podem apontar para “tendências individuais” desse efeito, não-relacionadas à terapia hormonal.

6º – A taxa de “desistência” em adolescentes trans é maior do que a opção por continuar os cuidados

A U.S. Transgender Survey descobriu que a maioria das pessoas que iniciaram os bloqueadores e depois pararam, ou se “arrependeram” de terem começado a terapia hormonal, se sentiram assim “não porque foi a decisão errada para eles, mas por causa de pressão dos pares, da família, social, medo da discriminação, e discriminação real”.

7º – Projetos de lei anti-trans não farão nenhum dano se adolescentes trans não estiverem recebendo cirurgia ou hormônios até os 16 anos

Projetos assim promovem a transfobia, a ignorância e a violência direta, física e estrutural contra pessoas trans. Eles institucionalizam o sofrimento que a puberdade causa e seus efeitos altamente danosos da disforia de corpo, com impactos diretos na saúde física e mental de pessoas trans que ficam sem perspectivas de cuidado e pensam que suas existências não são válidas.

Todas essas questões têm efeitos diretos e indiretos na vida e na saúde dessa população, especialmente entre os mais jovens. Na verdade, um estudo de 2020 publicado na revista Pediatrics descobriu que jovens trans com acesso a bloqueadores da puberdade apresentam um risco significativamente menor de ideação suicida e problemas de saúde mental.

Não podemos ser responsáveis por impor ainda mais sofrimento e adoecimento psíquico a essa juventude. Projetos de lei anti-trans estabelecem precedentes perigosos de inserir o governo em decisões médicas, pessoais e privadas. Eles ainda têm se baseado em mitos ou estigmas negativos sobre os cuidados de saúde para transgêneros.

Projetos de lei que proíbem ou criminalizam a assistência médica para jovens trans são parte de uma tendência assustadoramente negacionista de rejeitar a assistência médica de pessoas marginalizadas em nome de marcar pontos políticos. Eles também trazem a marca de rejeitarem a ciência, adimitindo uma postura nitidamente transfóbica, sem amparo legal ou ético, e causando riscos reais à vida das pessoas trans.