A forma como gays se tornaram estrelas num torneio de queimado da Cidade de Deus atraiu o olhar do cineasta Rodrigo Felha e fez com que ele trocasse os planos de seu próximo filme para criar “Favela Gay”, documentário no qual investigou a vida de pessoas LGBTQ nas favelas cariocas. “Era o momento mais esperado do jogo. Ali, eu pensei ‘preciso falar daquelas pessoas’. Precisava mostrar como elas são na sua essência. Elas têm as suas dores, mas também mostram muita alegria”, explica o diretor por telefone à Híbrida.
O filme ganhou o aval do público carioca e levou o prêmio de Melhor Documentário pelo júri popular no Festival do Rio de 2014. Agora, seis anos depois, Rodrigo expande o conceito e a investigação originais de “Favela Gay” para periferias de todo o Brasil, na série homônima de dez episódios exibida pelo Canal Brasil às quartas-feiras, com reprises às segundas e terças.
Apesar do título, não se engane. “Favela Gay – Periferias LGBTQI” explora muito mais do que as nuances de homens cisgêneros, em favelas de cinco estados do país. Histórias pessoais de aceitação e rejeição, assim como as dinâmicas de seus personagens em relações familiares e afetivas são costurado por temas maiores como acesso ao mercado de trabalho, vícios, prostituição e opressão religiosa.
“Sempre filmei coisas inéditas. Às vezes, elas são coisas normais na favela, mas surpreendentes no asfalto”, observa Rodrigo. Além da carreira no cinema, o diretor ainda mantém Os Arteiros, grupo de teatro que coordena com Ricardo Fernandes na CDD, com aulas de pré-vestibular, ioga, debates e uma programação pensada para o acesso do jovem periférico à cultura. Pelo coletivo, eles têm participado de um grupo formado por instituições sociais que têm arrecadado doações para o combate ao coronavírus na comunidade (saiba mais aqui).
Abaixo, Rodrigo fala com a Híbrida sobre a produção da série filmada em 2018, o que significa ter contado com o apoio da Agência Nacional do Cinema (Ancine) para o projeto em meio a um governo declaradamente homofóbico e o traço comum que encontrou entre LGBTQs das periferias brasileiras.
HÍBRIDA: Qual foi o ponto de partida para expandir o universo do filme em uma série?
RODRIGO FELHA: Foi uma questão de estratégia. Tive uma equipe sensacional de pesquisa, que entendeu o que eu queria. As informações incompletas era o que me chamavam mais atenção. Na função de diretor, eu vejo isso como algo atrativo, então usei a meu favor. Faz parte da minha função descobrir e passar confiança com o entrevistado. A maioria deles eu conheci no set. Porém, existia a contemplação de poder conversar e mostrar que eu não buscava só sugar o que pudesse e ponto. Era uma conexão feita para a vida, tive certeza disso. O aperto de mão e o abraço valem mais.
H: A série começa com a história de dois personagens trans, Raffa e Isa, e depois descobrimos que são um casal. Como foi a busca por esses personagens e o que você quis mostrar na variação em cada episódio?
RF: Fomos para cinco estados, com dois entrevistados como fios condutores. Em Belém, especificamente, a gente tem duas pessoas casadas e elas se doaram completamente. No meio da gravação, tive a ideia de filmar paralelamente para, na montagem, mostrar que elas eram um casal.
Existe um sofrimento velado, mas uma luta constante, minuto a minuto pela sobrevivência
H: O que encontrou nas periferias do Brasil de mais distante e mais próximo da realidade que já conhecia no Rio, mais especificada na CDD?
RF: Existem fatores que formam uma unidade, seja onde você estiver. Existe um sofrimento velado, mas uma luta constante, minuto a minuto pela sobrevivência. Isso é muito ruim, porque você precisa lutar pela vivência, pela forma como você quer.
Quem tem que abraçar, não abraça – os familiares. Porém, existe um fator que eu prezo no filme, que são as histórias. Apesar do sofrimento e de todo o preconceito, essas pessoas conseguem ter metas para a vida. É onde você, de fato, tem a reflexão sobre o outro ser, que é considerado hetero cis e é o mais abraçado pela sociedade em geral porque está como o “certo” e ponto final.
H: Você é um cineasta heterossexual. O que te instigou a explorar o universo LGBTQ?
RF: Foi eu ter o olhar de ver aquelas pessoas e achar que elas são tristes, mas entender que não é só isso. Se eu penso assim, estou contaminado pela sociedade. Então, preciso me desconstruir e, a partir disso, tentar desconstruir também. No Festival do Rio, foi legal ver pessoas irem à sua segunda sessão e levando outras. Como diretor, sinto que estou contribuindo e concluindo a missão à qual o filme veio.
H: Muitos depoimentos falam sobre o embate que os personagens têm com as igrejas, seja dentro de casa ou na rua. Como você avalia a presença de religiões neopentecostais, normalmente as mais agressivas contra a população LGBTQ, em periferias e os efeitos que isso tem para a comunidade?
RF: Existe um extremismo radical e muitas dessas pessoas que estão na igreja foram muito mais pecadoras do que o próprio LGBTQI que tentam colocar na parede. Parece que ela, para se colocar como é hoje, precisa tacar pedra em alguém. É onde essa comunidade é muito afetada.
H: A série foi desenvolvida com apoio da Ancine. Acha que se o projeto fosse pautado hoje, ele seria aprovado?
RF: Tudo vem no momento certo. Temos que dar resposta em meio a um governo que não faz nada a favor e ainda consegue ir contra. Ter um produto desses sendo exibido com o atual governo é uma vitória. E, reforçando, dentro desse meio político, eu sinto um pouco do Paulo [Aleijada Hipócrita], amigo da Leona [Vingativa], que retrata a mãe dele como evangélica, mas que em primeiro plano vem o amor. Quando retrato isso, quero que outras pessoas evangélicas extremistas coloquem o amor em primeiro plano também e continuem louvando seu deus.
É o que quero trazer de reflexão. No filme, o pai da Rafaela não abre a boca pra nada e ela, que é transexual, o cita achando que ele ia agredi-la. Mas ela explica que o cara mais compreensível é o cara que não tem estudo, mas teve afeto. Às vezes, a pessoa tem faculdade, como existem aos milhares por aí, e ainda é racista e é preconceituoso.
Falar que LGBTQIs são mais respeitados na favela também não significa que eles estejam no nível que merecem
H: Como você enxerga, hoje, a aceitação de pessoas LGBTQs nas periferias cariocas?
RF: A favela, na última década, passou por essa transformação. Eu tenho 40 anos, então na minha adolescência eu tinha receio de parar perto de um gay porque pensava que se me vissem com ele iriam achar que a gente era um casal. Isso foi quebrado nas favelas.
Hoje, a gente vê as pessoas conversando com nossos amigos LGBTs, como sempre deveriam ter conversado. Foi um crescimento grandioso. Ao mesmo tempo, falar que são mais respeitados também não significa que eles estejam no nível de respeito que merecem.
“Favela Gay – Periferias LGBTQI+” é exibida pelo Canal Brasil toda quarta-feira, às 19h30, e reprisada às segundas (12h30) e às terças (7h30). Os dez episódios estão disponíveis no Canal Brasil Play sempre após a exibição na TV.
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