Em 2015, após ter sofrido uma agressão homofóbica, Emerson Pontes tomou uma decisão: o armário que ele já havia destruído virou cinza e dos restos daquilo nasceu Uýra Sodoma, uma drag-entidade amazônica cujos conceito e estética são completamente feitos com elementos naturais. Folhas, conchas, frutos, ossos, raízes, flores, espinhos e sementes são extraídos da Floresta Amazônica e aplicados no corpo do biólogo paraense: “Uýra floresceu ao mundo e nunca mais baixei a cabeça às agressões. Pelo contrário, busco desarmá-las pela autoafirmação de ‘SIM, EU SOU!’. Uýra é um grito em carne de bicha e planta. Uma árvore que anda”, define.
Contrapondo os aprendizados da biologia, a preocupação ambiental – atenuada pela geografia do Amazonas – e a arte drag, Uýra passa pelas ruas do centro de Manaus ecoando seus gritos de protesto pela noite, enquanto causa espanto e comoção. “Gosto de ouvir as pessoas e senti-las. O que sinto é canalizado por ela, que grita. Necessito gritar sobre a desigualdade, o ódio e os crimes da sociedade contra as mulheres e as populações LGBT+, Negra e Indígena”, explica o biólogo, que defende também a sua escolha estética.
Inspirada em nomes que vão de Bethânia, Ney e Dona Onete até Bowie, Rita Lee e Elke, passando por Vera Verão, Divine e Alma Negrot, Uýra não procura atingir nenhum ideal de beleza com sua arte: “Para muitas pessoas, a arte deve ser bonita e quase sempre suave, agradável e bem palatável. Penso, sinto e me expresso diferente. Não poupo dureza para falar sobre a realidade, pois é nela que me encontro e também é algo sobre o qual poucas pessoas querem falar”.
Em outubro, Emerson teve mais um motivo para seguir adiante e ter a certeza de que sua arte-protesto estava sendo percebida e apreciada. Na edição manauara do Rival Rebolado, o teatro de revista e concurso de drag queens comandado por Karina Karão, Leandra Leal e Luís Lobianco, Uýra saiu como a grande vencedora do Les Artistes Café. “Fomos lá, conhecemos o diretor, Fabiano de Freitas, e tivemos uma vivência delícia em oficina. Ganhar foi contagiante! Não pelo prêmio em si, mas por sentir nas pessoas a satisfação pelo que viram e receber delas o reconhecimento do trabalho que faço – que é também somar com a diversidade monxtruosa ao cenário drag”, comemora.
Abaixo, Emerson explica como surgiu o conceito de Uýra, como as interseções entre drag e biologia ajudam a moldar o conceito e a estética de sua personagem, como essa entidade pretende somar às causas ambientais e por quê ele pretende continuar circulando de drag pelas ruas e ônibus de Manaus. Sempre com a máxima: “Na vida não há normalidade, mas sim diversidade“.
Híbrida: Em que momento você teve o estalo de unir o conhecimento da biologia com a arte drag? Houve um momento ou uma pessoa que te ajudou a impulsionar isso ou foi um processo em construção?
Uýra Sodoma: Tudo começou desde a infância, no interior do Pará, onde a floresta me presenteava com acessórios e brinquedos únicos. Mais tarde, já biólogo, as atividades de pesquisa nas matas tornaram-se momentos de apreciar mais de perto a grande variedade de tamanhos, cores e formas da Vida que existem ali. Há uma visualidade infinita! Também fui aprendendo processos biológicos complexos e fantásticos, organismos com histórias e estratégias que precisam ser contadas ao mundo: fungos que infectam formigas e as transformam em zumbis; árvores que andam no bosque da floresta em busca de luz do sol; morcegos cuja atividade é afetada pela Lua; animais que se disfarçam de plantas; plantas que se disfarçam de animais; anfíbios e aves que realizam verdadeiros espetáculos de dança em rituais de acasalamento.
A Amazônia deve ser o lugar do mundo onde coexistem de forma mais expressiva a Beleza e a Estranheza – e Uýra nasce disso. Também existe nela o misticismo amazônico, do qual fazem parte narrativas de origem de tudo que existe (lendas) e mitos sobre seres encantados como Iara, Curupira, Mãe-da-Mata, Mapinguari, etc. Uýra é um corpo onde estes seres habitam.
H: O que você acredita que a Uýra traz de diferente para a cena drag nacional?
US: Drags costumam ser personagens baseadas nas experiências particulares das pessoas. Na minha relação com Uýra ocorre algo um pouco diferente. Obviamente, Uýra nasceu de mim, mas também sinto que ela veio primeiro.
H: Como se dá a sua pesquisa no meio artístico tanto para a forma como você se monta quanto para as performances que realiza?
US: A montação de Uýra é um processo principalmente instintivo, mas os estudos influenciam o instinto. Ocorre com materiais físicos que coleto e guardo para a montação, ou no momento dela. Também vou guardando elementos na memória, daí um dia lembro-me deles e, se der, os coleto para uso. Gosto muito de ficar observando coisas e pensar em como posso utilizá-las. Quanto às performances, elas nascem de leituras e sentimentos frutos de vivências. Na produção acadêmica, no discurso dx outrx, na rua, no mato. Busco trazer para Uýra as partituras corporais dos bichos e plantas, enquanto sigo experimentando as vocalizações animais. Olho para as marcas do meu corpo e dos corpos que conheço para tentar entender o motivo de elas estarem ali, o que representam, se ainda doem ou se já cicatrizaram.
Uýra anda pelas ruas e, silenciosamente, diz: “Vocês estão vendo? Isso é carne, folhas, suór, cores…tudo isso somos nós! Somos natureza!”
H: Como você acredita que Uýra Sodoma pode somar na luta pelas questões ambientais?
US: Vivemos a maior crise ambiental da humanidade. Uýra anda pelas ruas e, silenciosamente, diz: “Vocês estão vendo? Isso é carne, folhas, suór, cores…tudo isso somos nós! Somos natureza!”
Junto com os barcos dos invasores europeus, veio também um pensamento dito “moderno” de que o ser humano não faz parte da natureza, que ele está acima dela, é seu dono e deve consumi-la (pitada do velho Gênesis 1:29). Assustados, não com os bichos e plantas do Novo Mundo, mas principalmente com o pensamento dos nativos que acreditavam fazer parte da natureza, os europeus concluíram que seriam donos deles também. Por isso a dominação, a escravidão e os genocídios.
A humanidade vai seguindo e as ideias fascistas da supremacia branca se instalam e subjugam, escravizam e assassinam populações negras, judias, indígenas. A Era Industrial vem e aumenta o efeito estufa, contamina ecossistemas, mata seres e fortalece uma mentalidade de que somos feitxs de plástico. O natural ficou pra trás, o mundo agora é industrial: tudo é produzido, consumido e descartado. Pra somar ao quadro de desastres, pensando gênero como sexo, a sociedade cria e sustenta uma ideia de superioridade do homem em relação à mulher, gerando misoginia, medo e feminicídios. São exemplos de buscas por um “normal” que passam pela Cultura, Política, Sociedade, Religião, mas todos esses eixos envolvem um ser biológico: o ser humano, onde não há um normal, mas sim um diverso. Diverso porque é Natureza – ela, que é esquecida. Uýra existe para não esquecermos de nós.
H: Você acha que a Uýra teria nascido se você não morasse em Manaus? Como é a sua relação e a relação dela com a cidade?
US: Uýra nasceu num lugar fantástico. Manaus é uma metrópole com mais de 2 milhões de pessoas no meio da maior floresta tropical do planeta. Aqui, o urbano com seu ritmo frenético, aceso a néon, barulhento e apressado se mistura aos fragmentos florestais, sua paz e sua vida. Toda essa diversidade de nichos energéticos foi e é importante para Uýra. Em outro lugar, seria diferente.
H: Você, assim como Uýra, se identifica como não-binário. Quando e como chegou a esse entendimento e se sentiu certo o suficiente para afirmar isso?
US: Eu dificilmente estive ou vou estar certx o suficiente sobre coisas da minha vida, e gosto dessa liberdade. O não-binarismo em mim sempre existiu, mas foi através do contato com pessoas, principalmente transgêneras, que pude me perceber e reconhecer como NB. Hoje sou assim: sendo tudo que sou, que desejo e posso.
H: De acordo com a sua vivência, o que causa mais estranhamento entre as pessoas heteronormativas: uma bicha não-binária ou uma drag queen amazônica? Como você lida com isso? Que tipo de situações já passou em relação a esse preconceito e como faz para quebrá-lo?
US: Uýra assusta mais que Emerson, mas não tanto assim (risos). São performatividades diferentes, mas que se assemelham, porque nossas visualidades podem gerar leituras sensíveis à ignorância e intolerância das pessoas. Uýra, por exemplo, assusta muitas pessoas por não terem conhecimento e compreensão sobre os nossos mitos e lendas. Quase todas elas foram educadas para lerem tudo como o Diabo: O Diabo-Puta, o Diabo-Trans, O Diabo-Bicha que não se encaixa em gênero e o Diabo-Drag, de cara colorida e coberta de mato, muitas vezes relacionada pejorativamente aos Orixás e outra entidades das religiões de matriz africana.
A Natureza assusta as pessoas. Quando não se compreende algo, parece ser mais fácil evitá-lo ou eliminá-lo. Circulo montada e o busão da ZL (onde moro) ao centro tem muitas histórias. A rua me interessa. Filhe de Oxóssi, né… Se é perigoso? Sim, infelizmente. Mas, “me dei de presente a vulnerabilidade, ganhei junto a Liberdade” – como disse Ollivia Leo recentemente à Revista Híbrida.
H: Quais seus próximos passos como drag? Tem algum projeto ou ideia em mente que esteja produzindo?
US: Tenho pensado e começado a planejar (junto com colaboradorxs) a produção de um material fotográfico/audiovisual sobre as águas zumbis que cortam as cidades. Fora isso, tô concluindo uma série sobre os Elementais da natureza, organizando mais uma oficina de maquiagem e na expectativa de um projeto para levar arte sobre seres encantados à juventude dos beiradões da Amazônia.