Dirigido pelo italiano Marco Calvani, Maré Alta (High Tide) estreou na programação do 26º Festival do Rio neste sábado (5) sob aplausos e elogios do público. O romance conta a história de Lourenço, um imigrante brasileiro interpretado por Marco Pigossi que vive sozinho em Provincetown, um reduto LGBTQIA+ no litoral do Massachusetts, nos Estados Unidos, depois de ser abandonado pelo namorado americano.
Além de ser o primeiro longa-metragem do diretor italiano, Maré Alta também marca a estreia do ator brasileiro em uma produção dos EUA, onde mora desde 2018, quando largou as novelas da Globo para engatar várias participações em séries gringas de diferentes streamings. Juntos desde 2020, Pigossi e Calvani se casaram no fim do ano passado.
Assim, Maré Alta é um romance filmado de forma intimista, em que a química entre ator e diretor transborda na tela. Na sessão de estreia do filme, ambos afirmaram que a relação de parceria e confiança na vida pessoal teve um papel importante para atingir o resultado final do trabalho.
“Eu tinha uma visão muito clara de como queria contar a história, mas a confiança e o respeito que temos um pelo outro me permitiram chegar bem perto dele, fisicamente, com a câmera”, disse Calvani à Híbrida. “Com outra pessoa, não sei se teria atingido a mesma intensidade e pureza que ele mostrou.”
Como Lourenço, Pigossi entrega a sua performance mais vulnerável até aqui, expondo seu corpo e sentimentos de forma que o público brasileiro ainda não tinha visto nem com suas muitas participações em filmes, séries e novelas. Quando aparece com os ombros retraídos num jantar, o olhar perdido na praia, o rosto suado na balada ou a nudez exposta no mar, ele lembra o público toda hora do desconforto e da confusão interna que atravessam constantemente o personagem.
Lourenço é um contador criado em uma família evangélica de Itu, no interior de São Paulo. Sem nenhuma perspectiva de viver abertamente sua homossexualidade, ele decide abandonar tudo e se mudar para Provincetown atrás de um homem por quem se apaixonou durante uma viagem de trabalho ao Rio de Janeiro, mas é largado de uma hora pra outra e precisa sobreviver como faxineiro/faz-tudo nos EUA.
“Foi um projeto que a gente pegou embaixo do braço e foi apresentar para as produtoras para conseguir financiamento”, contou Pigossi, que é o responsável por detalhes específicos da história, como o fato de Lourenço ler Oswald de Andrade e ser visto pela maioria das pessoas como um objeto sexual.
“A gente passa por essas situações. Existe na cabeça do americano um estereótipo do que é o brasileiro, mas o brasileiro é tão plural que não dá pra colocar no papel”, explicou o ator. Antes de o filme começar, ele disse ao público que o trabalho era dedicado “a todos os Lourenços que precisaram sair do seu país e das suas famílias porque não conseguiram ser compreendidos e amados simplesmente por serem quem são”.
“Marco Pigossi está pelado em Maré Alta“
Na cerimônia de abertura do 26º Festival do Rio, a Híbrida perguntou a Marco Calvani por que o público deveria assistir a Maré Alta. “Porque Marco Pigossi está pelado no filme!”, respondeu, rindo e obviamente em tom de brincadeira.
De fato, Pigossi já aparece completamente nu nos primeiros dez segundos de Maré Alta, o que certamente é um fator que deve atiçar a curiosidade do público. Mas a maior parte do filme se passa, afinal, em uma praia nudista, um cenário que também não é muito improvável de encontrar pessoas LGBTQIA+.
É exatamente o que acontece com Lourenço. Seus mergulhos diários são a única válvula de escape do personagem. É durante um desses episódios que ele conhece Maurice (James Bland) e seus amigos abertamente queer. Através deles, o personagem acaba encontrando uma comunidade LGBTQIA+ que lhe apresenta um mundo de liberdade sexual, orgulho, vida noturna e experiência que ainda eram inéditas durante suas vidas no Brasil e nos EUA.
Maurice é o primeiro homem que oferece a Lourenço algum tipo de segurança, constância, cuidado e afeto desde que seu ex sumiu sem deixar rastros. A conexão dos dois é quase imediata: enquanto o brasileiro se sente isolado em um país onde não conhece ninguém, o americano passa pela mesma experiência de ostracização por ser um homem preto.
Ao longo do filme, Lourenço e Maurice vão se apaixonando aos poucos, sempre com um pé atrás enquanto entendem os limites emocionais e físicos um do outro. Uma das cenas mais emblemáticas desse alinhamento de expectativas é quando o brasileiro se surpreende ao descobrir que o americano é versátil e não apenas um “garanhão” (“stud”) ativo.
Nesse e em muitos sentidos, Maré Alta é aberta e descaradamente queer. Sem se preocupar em explicar ou detalhar vários aspectos do estilo de vida gay, o filme passeia despreocupado por referências como a iconografia atemporal de Tom of Finland, a hiperssexualização de homens pretos, a dinâmica do cruising, o uso de PrEP e chega até a citar diretamente clássicos como Priscila – A Rainha do Deserto e Perdidos na Noite.
Boa parte desses tópicos, inclusive, é desconhecida do próprio protagonista, ainda que sua rede de apoio nos EUA seja exclusivamente formada por pessoas queer. De Scott (Bill Irwin), o proprietário gay da casa de hóspedes que aluga, a Miriam (vivida pela incrível Marisa Tomei), uma artista que precisou abandonar seu para encontrar as “cores” da vida em um romance lésbico, Lourenço só encontra conforto quando está entre membros da comunidade LGBTQIA+.
“Eu realmente precisava fazer esse filme para me aceitar. Acho que temos medo, não apenas como homens queer, mas como seres humanos, de sermos vulneráveis. Espero que essa seja uma lição que o público tire do filme”, disse Calvani. “Se nos permitimos ir devagar, sentir e olhar para o outro, então acho que podemos construir um mundo melhor.”
Para Pigossi, Maré Alta “é um filme sobre pertencer a alguém, a uma comunidade, a um país”. “Todo imigrante sente isso quando muda para outro país e isso é muito presente na nossa comunidade queer, de encontrar a sua família, que não necessariamente tem seu sangue, mas que vai cuidar de você pra sempre.”