UM ANO DEPOIS, A INCLUSÃO DA HOMOTRANSFOBIA NA LEI ANTIRRACISMO
por PAULO IOTTI
O dia 13 de junho de 2019 entrou para a história como aquele em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a homotransfobia como crime de racismo, em legítima interpretação dos conceitos constitucionais e legais dos termos raça e racismo, para acolher o sentido político-social e não biológico, hegemônico na literatura negra antirracismo.
Ao fazê-lo, o STF acolheu uma das principais demandas do Movimento LGBTI+ brasileiro e o fez de forma emblemática: por unanimidade, a Corte afirmou que o Estado tem a obrigação de proteger de maneira eficiente essa população, inclusive pela criminalização específica da homotransfobia, ou seja, das opressões motivadas na orientação sexual ou na identidade de gênero das minorias sexuais e de gênero. Da mesma forma, por elevada maioria de 8 a 3, o Tribunal afirmou que a homotransfobia configura-se como crime de racismo e que, por isso, aplicar-se-ão os atuais crimes de racismo para punir as práticas homotransfóbicas até que seja aprovada uma lei específica criminalizando-a.
Tendo a homotransfobia sido reconhecida como crime de racismo, é mais do que evidente que o crime de injúria racial também se aplica para punir práticas homotransfóbicas, ao contrário do que certa resistência inacreditavelmente quer defender. É absolutamente sem sentido e de manifesta ilegalidade a tese que afirma que algo configura “racismo”, mas não poderia se configurar como “injúria racial”.
Obviamente, o Legislativo pode aprovar uma lei específica, mas é importante consignar que
ele não pode fazer uma “criminalização de mentira”: houve um projeto de lei que queria apenas aumentar penas de homicídios e lesões corporais (que já constituem crimes), mas nada falando acerca de discursos de ódio e discriminações contra pessoas LGBTI+, práticas que muito assolam a comunidade e não constituem crime no Código Penal, mas apenas na Lei Antirracismo (7.716/89).
Se uma lei tal vier a ser aprovada no Legislativo, ela só poderá ser aplicada para aquilo que expressamente prever, como lei especial. Mas práticas outras não-criminalizadas deverão continuar sendo punidas pela Lei Antirracismo e pelo crime de injúria racial, se não houver previsão específica para a injúria homotransfóbica.
Vale aqui uma breve explicação sobre os fundamentos constitucionais e legais que justificam a decisão, tornando-a juridicamente correta.
Nossa Constituição Federal adotou uma concepção de Direito Penal como mecanismo de proteção dos direitos humanos, em linha idêntica à jurisprudência da Corte Interamericana, que determina aos Estados o dever de tipificar criminalmente determinadas condutas para a proteção de grupos vulneráveis, fornecendo-lhes mecanismos de segurança e luta contra as opressões que lhes assolam. Assim, quando determina a criminalização de condutas, pretende proteger grupos oprimidos.
Isso não “restringe” direito nenhum: na acepção liberal, fundante das democracias ocidentais, consagrada na célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pós-Revolução Francesa, “liberdade” significa fazer o que se quiser, desde que não se prejudiquem terceiros. Opressões a grupos vulneráveis prejudicam suas vítimas, donde não integram do âmbito de proteção do direito de liberdade.
Temos uma Constituição Dirigente, cujas obrigações de legislar, descumpridas, geram a omissão inconstitucional. É o caso da homofobia e da transfobia (homotransfobia), a opressão motivada na orientação sexual ou identidade de gênero, real ou presumida, da vítima LGBTI – Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti, Transexual ou Intersexo. Essa criminalização se enquadra na doutrina do Direito Penal Mínimo, por termos ofensa a bem jurídico indispensável à vida em sociedade (a tolerância – ainda que não respeite, pelo menos não ofenda, discrimine, agrida ou mate) e a ineficácia dos demais ramos do Direito para protegê-lo, como mostra a persistência da homotransfobia mesmo nos poucos entes federativos que possuem leis antidiscriminatórias não-penais (como São Paulo e sua Lei Estadual 10.948/01).
Inexiste ofensa à liberdade religiosa aqui, pois jamais se prenderão padres e pastores por dizerem que a homossexualidade seria “pecado”. O que se criminalizará são os discursos de ódio, como vincular homossexualidade à pedofilia, pregar periculosidade ou segregação de pessoas LGBTI em geral e condutas afins.
Há duas ordens constitucionais de legislar que abarcam a homotransfobia. Uma é inconteste: o art. 5º, XLI, aduz que a lei punirá toda discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais. A homotransfobia atenta contra os direitos à livre orientação sexual e livre identidade de gênero, materialmente inviabilizados, na prática, pela verdadeira banalidade do mal homotransfóbico que nos assola, decorrente da prevalecente ideologia de gênero heteronormativa e cisnormativa que impõe a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsórias, punindo física e moralmente quem ousa viver sua vida de outra forma – tudo ratificado pelo Min. Celso de Mello, em seu histórico voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 e no Mandado de Injunção 4733 (inclusive a pertinência do conceito de banalidade do mal, no sentido de Hannah Arendt).
O dispositivo encontra-se na parte penal do art. 5º e, ademais, o princípio da proporcionalidade enquanto vedação de proteção insuficiente exige a punição criminal da opressão homotransfóbica. O Min. Alexandre de Moraes trouxe outro fundamento relevante: o dever de coerência do Legislativo, que sempre que considera uma opressão intolerável, a criminaliza, mesmo que a Constituição de 1988 não diga expressamente que a punição deve ser penal. O Min. Luís Roberto Barroso também apontou que a população LGBTI é o único grupo vulnerável que não recebe proteção penal do Estado. O Min. Edson Fachin, por sua vez, explicou como o Direito Internacional dos Direitos Humanos demanda a criminalização da homotransfobia.
Outra ordem de legislar aplicável, tese principal das ações acolhidas pelo Supremo Tribunal Federal, está no dever de criminalização do racismo (art. 5º, XLII). No célebre Habeas Corpus 82.424/RS, o STF considerou o antissemitismo como racismo – discriminação por raça, e não “por religião”, rechaçando a tese de que seria um “crime de discriminação não-racista” que estaria prescrito. Ante o Projeto Genoma, que acabou com a crença de que a humanidade seria formada por raças “biologicamente distintas” entre si, e pela diferenciação constitucional (art. 3º, IV) e legal (Lei 7.716/89) de “raça” e “cor” (como a lei não possui palavras inúteis, “raça” não pode significar apenas “cor”), para não se tornar “crime impossível”, o STF firmou o conceito político-social de raça para afirmar que o racismo é qualquer inferiorização de um grupo social relativamente a outro.
Se este é o conceito constitucional de racismo, então a homotransfobia nele se enquadra. Conceito este que é referendado pela literatura negra antirracismo, que afirma ser raça um dispositivo político de poder, donde razões ideológicas e artificiais elegem um grupo como dominante, afirmando-o como “natural, neutro, de bem e modelo de pessoa ideal”, detentor de privilégios sociais, e outro como dominado, afirmando-o como “anti-natural, ideológico, perigoso e longe da pessoa ideal”, socialmente discriminado, em um sistema de relações de poder, caracterizado por discriminações estruturais, sistemáticas, institucionais e históricas.
A crença religiosa nunca será criminalizada, mas a incitação ao ódio, ao preconceito e à discriminação não são protegidas pela liberdade religiosa e de expressão
Mesmo com essas condicionantes, que defendi em minha sustentação oral no citado julgamento, a homotransfobia se enquadra neste conceito ontológico-constitucional de racismo, para entender a população LGBTI+ como um grupo racializado e, assim, vítima de racismo pela forma como é socialmente tratada (e oprimida) pela sociedade heteronormativa e cisnormativa.
Como se vê, reconhecer a homotransfobia como racismo não implica em “legislar” nem aplicar “analogia”, como os oito votos majoritários explicaram. Implica em interpretar os crimes raciais, no sentido político-social de raça e racismo. Ou seja, os crimes praticados “por raça” abarcam a homotransfobia, como o do art. 20 da Lei 7.716/89, que pune a conduta de “praticar, induzir ou incitar o preconceito e a discriminação por raça” e demais crimes da referida lei, além do delito de injúria racial do Código Penal. Respeita-se o limite do teor literal (Roxin), a moldura normativa (Kelsen), e não por um ato (arbitrário) de vontade, mas por um conceito de racismo já afirmado em precedente histórico do STF e referendado pela literatura antirracismo. Logo, algo dentro das competências do Poder Judiciário.
Ressalte-se que não há prejuízo nenhum à liberdade religiosa. Dizer que uma conduta constitui “pecado” não é nem nunca poderá configurar crime, à luz do direito fundamental à liberdade religiosa. Por outro lado, discursos de ódio não são protegidos pelas liberdades religiosa e de expressão, como afirmar que pessoas LGBTI+ seriam “perigosas”, “degeneradas”, pretendem “destruir a família e/ou a sociedade”, são “pedófilas” e outros absurdos impropérios do gênero, preconceitos estes lamentavelmente ainda muito comuns. Isso foi expressamente reconhecido pelo STF: a crença religiosa nunca será criminalizada, mas a incitação ao ódio, ao preconceito e à discriminação não são protegidas pela liberdade religiosa e de expressão.
Como se vê, trata-se de uma decisão dogmaticamente correta e que merece ser festejada, tanto no aspecto simbólico quanto prático: simbolicamente, foi mais uma emblemática afirmação do STF acerca da igual dignidade das pessoas LGBTI+ em relação a pessoas heterossexuais e cisgêneras, merecedoras de igual respeito e consideração relativamente a estas.
Em termos práticos, forneceu mecanismos penais à população LGBTI+ para combater as opressões homotransfóbicas, lembrando-se que as condutas de discriminar alguém e proferir discursos de ódio, que muito prejudicam pessoas LGBTI+, não constituem crimes no Código Penal, mas apenas na Lei Antirracismo, de sorte que só com a decisão do STF passaram a incidir para punir a homotransfobia (sendo, assim, equivocada a tese de que o Código Penal seria suficiente para proteger a população LGBTI+).
REFERÊNCIAS:
—> VECCHIATTI, Paulo Roberto iotti. STF não legislou nem fez analogia ao reconhecer homofobia como racismo
—> VECCHIATTI, Paulo Roberto iotti. Racismo homotransfóbico e população LGBTI como grupo racializado
Para saber mais sobre o assunto, confira o livro “O STF, a homotransfobia e seu reconhecimento como crimes de racismo”, de Paulo Iotti (clique aqui).
PAULO IOTTI
Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Advogado e Professor Universitário. Diretor-Presidente do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero.