“Me chama de Bauer!”. Era tudo o que pedia Vera, a personagem título do longa-metragem de estreia do diretor Sérgio Toledo. O filme, de 1987, também revelou no cinema a atriz Ana Beatriz Nogueira, então com apenas 20 anos de idade, em uma interpretação que lhe rendeu o Urso de Prata de melhor atriz no Festival Internacional de Cinema de Berlin.
Na história, após completar a maioridade, o discurso da personagem em enfatizar o seu gênero de identificação como masculino ganha força quando ela é convidada a se retirar do internato em que cresceu. Com a ajuda de seu professor, Paulo (Raul Cortez), Bauer consegue trabalho e um quarto para viver. A partir daí, ele começa uma dura jornada, insistindo para que todos ao seu redor o tratem como o homem que é. Seu pedido é visto com estranheza por uns e com deboche por outros, pois apesar de viver como Bauer, os documentos e sua linha do tempo dão conta de que ele nasceu e cresceu como Vera.
O drama de Bauer está em seu duelo com uma sociedade que entende como “invencionice” a identificação de gênero e crê, com base na biologia, que o sentimento trans não tem o mínimo de valor para que eles sejam aceitos pelo que são. Algo que, lamentavelmente, ainda é comum na batalha da comunidade transgênero pela afirmação social.
Na época de seu lançamento, era comum que “Vera” fosse lido como uma narrativa cinematográfica lésbica, pois Bauer se envolve afetivamente com Clara (Aída Leiner), uma colega do trabalho. A repulsa de Bauer pelo próprio corpo é posta na relação, que acaba estremecida. No jogo sexual com Bauer, Clara deseja retribuir suas carícias, mas há uma forte resistência dele em aceitar o mesmo tipo de afeto por ainda renegar o próprio corpo.
Ao contrário de Clara, Bauer não apresenta comportamento sexual definido como lésbico. Ele propõe uma relação de submissão da mulher em relação ao homem e não somente no sexo. Em várias situações, ele age como um homem machista agiria, se apoiando em piadas misóginas e defendendo o protagonismo masculino na sociedade. Bauer não deseja apenas ser tratado como homem, mas também adota posturas tipicamente masculinas e misóginas para que assim possa afirmar sua identidade.
Cabe observar esse comportamento analisando o contexto histórico da época que o filme retrata. Sabemos que então havia um movimento de certa visibilidade LGBT. Afinal, no fim da década de 1980 tínhamos Rogéria na TV, Cláudia Wonder no celebrado clube “Madame Satã” e tantos outros nomes que davam a cara a tapa no período pós-ditadura e desafiavam o conceito binário de gênero na mídia.
Mas até hoje, na nossa própria comunidade, há quem ainda se confunda sobre o que separa a sexualidade da identidade de gênero. Veja que, em “Vera”, Bauer poderia perfeitamente se envolver com um rapaz ao invés de Clara. Mas o personagem é apresentado como um homem trans e heterossexual e é assim que ele se comporta no filme do início ao fim. O problema é que com a sua falta de apropriação do termo “homem trans”, a representação da sexualidade acaba confundindo-se com a de gênero.
Na época, a precarização do discurso sobre a diferenciação entre gênero e sexualidade leva o espectador a crer que os conflitos da personagem protagonista estão relacionados à sua orientação sexual, quando tudo nos mostra que os elementos apresentados associam estes embates à aceitação do seu gênero. Apesar dos recursos controversos e condenáveis que Bauer utiliza para se valer como homem perante a sociedade, ele emula o comportamento de um homem cisgênero em busca de sua aceitação.
Em “O segundo sexo”, Simone de Beauvoir refuta a ideia da perpetuação do gênero feminino desde o nascimento e suas explanações vão além da máxima autoexplicativa “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Para ela, o sexo é atribuído por uma norma binária – homem e mulher – da civilização e vários pontos de suas obras reforçam que o gênero feminino é algo construído ao longo do tempo.
Sem querer se apropriar ou deturpar o pensamento de Beauvoir, mas aproveitando o contexto, podemos refletir que a construção da identidade de gênero não é uma particularidade da pessoa trans, mas reverbera nela quando é quebrado o padrão da identidade binária à qual estamos habituados.
Sendo assim, assumir-se um homem transgênero, além de todas as particularidades conferidas aos processos de identificação, autoaceitação e transição, poderia contribuir com a mesma visibilidade social dada ao homem cisgênero. A professora e pesquisadora Guacira Lopes Louro, reforça em suas obras sobre identificação de gênero que, independente da sexualidade, as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento e muito menos definidas por aspectos biológicos.
O cerne da tese de Guacira propõe que, como ocorre com a sexualidade, a nossa identidade de gênero é descoberta e redescoberta ao longo da nossa linha do tempo. Em “Corpo, gênero e sexualidade”, ela defende que “as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento”.
Não se trata apenas de chamar Vera de Bauer, mas sim do intento de visibilidade social da pessoa trans. A personagem afirma todo o tempo que se identifica com o gênero masculino, por seu discurso, comportamento e a forma como tenta se posicionar na sociedade. Apesar disso, alguns personagens não reforçam esse seu sentimento, tratando-o como Vera todo o tempo. O próprio título do filme faz isso.
Há um paradigma complexo na relação do casal do filme, que parte do princípio de que a minha sexualidade depende da minha identidade de gênero. Se eu sou ou me sinto mulher e estou numa relação com outra mulher, estou numa relação homossexual. Mas se sou mulher e minha parceira é ou se sente um homem, estou numa relação heterossexual.
É possível que Clara acredite estar em uma relação homossexual, pois apesar de Bauer enfatizar seu gênero masculino, seu corpo nu traz códigos femininos e sugere que para sentir um prazer completo, ela deseja tocar o parceiro do mesmo modo que é tocada. Para Bauer, há uma situação desconfortável. Baixar a guarda para ser tocado enfraqueceria sua masculinidade, já que independente do que seu corpo diz, ele é um homem e está em um relacionamento hétero.
Para estabelecer a diferença entre a identidade de gênero e a sexualidade, é importante endossar as características que definem um e outro em todas as suas variações. Ainda que a terminologia LGBTQIA+ refira-se a um setor marginalizado na sociedade, é fundamental refletir sobre os aspectos que definem cada sigla. Não porque vá se prevalecer um grupo em relação ao outro, mas para alinhar o discurso de representatividade.
Nos anos 90 a terminologia GLS simplificava tudo que não se encaixava no contexto de gênero binário e desfavorecia a diversidade que de forma alguma se encaixa apenas em “simpatia”. O que não conhecemos ou não entendemos problematiza a nossa aceitação.
A insistência de Bauer no decorrer de “Vera” pode beirar a histeria sob a ótica de quem se identifica como cisgênero na sociedade. E é esse debate que apresenta para o público geral o quanto pode ser angustiante tentar fazer valer a sua identidade quando ela não se enquadra em conceitos binários pré-estabelecidos. Para amenizar todo esse sofrimento, se você quer saber se alguém é homem ou mulher, talvez seja melhor simplesmente perguntar do que supor.